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Notas de Pará de Minas: diferenças e desigualdades entre os elos

III. Entre mapas, retratos e diários: o cotidiano político da rede

3. Notas de Pará de Minas: diferenças e desigualdades entre os elos

Apresentamos a seguir episódios selecionados da viagem a Pará de Minas, interior de Minas Gerais, realizada em novembro de 2010. Acompanhamos uma visita rápida, de dois dias, ao elo local (Coopertêxtil), feita por duas diretoras da Justa Trama: Nelsa, da Univens, e Idalina, da Fio Nobre (respectivamente diretora-presidente e diretora-secretária da rede). Tratou-se de uma missão política, com o objetivo de atualizar o contato com este importante empreendimento da rede.

Foto 24. Pela fábrica, com Nelsa, Idalina e José Ribeiro 3.1. Palestra a estudantes de moda no sindicato dos trabalhadores têxteis

Chegamos no meio da tarde à pequena e charmosa cidade. Demos uma passada rápida pela fábrica. Conheci Íris, Geraldinho e reencontrei Zé Ribeiro – momento curto mas alegre. Pareceram contentes em revê-las. Fomos informadas de como seriam os próximos dias. Seguimos para a sede do sindicato dos trabalhadores têxteis, para um evento com estudantes e professores de moda de faculdades da região. Houve também concessão de entrevistas para a imprensa local (rádio e jornal). Tive a impressão de que o evento foi uma surpresa tanto para elas quanto para mim. [...] A fala de abertura, feita por José Ribeiro foi contundente: „A Justa

Trama é mais que uma cadeia. É um modo de viver.‟ As cooperadas da Fio Nobre e da

Univens imantam a atenção dos presentes com suas apresentações, perspicazes e bem articuladas politicamente. Com apoio de slides por elas preparados, citam dados sobre o alto índice de agrotóxicos usados no cultivo de algodão e dos malefícios implicados. Em seguida falam sobre agroecologia. Entre os primeiros princípios da Justa Trama, lê-se o combate à desigualdade social. Nelsa: „Nós temos que reinventar o trabalho‟ [...] Idalina aponta outra questão: „que desenvolvimento a gente quer, que sustentabilidade?‟ Pergunta da platéia: „Onde a sustentabilidade encontra a tecnologia?‟ Resposta de Idalina: „Depende do que fazemos com as tecnologias e o que esperamos delas‟. Nelsa e Idalina falam um pouco de como começou a organização da rede: „Nos lugares de participação política, nos fóruns de Economia Solidária, nos encontramos. Depois outros disseram: „mas vocês estão é doidas!

Isso leva todo um processo de cinco anos de planejamento, de estudos’. Nós dissemos: ‘não temos esse tempo todo, nós queremos comer, trabalhar e mudar o que está aí’. Isso foi em

fins de março de 2005, já em outubro, estávamos subindo o Morro do Cantagalo (no Rio) para a festa de inauguração.‟ Idalina. „Nossa proposta é essa: fazer revoluções.‟ [Diário de Campo, Pará de Minas, 25/11/2010]

3.2. Reunião entre a diretoria da cooperativa e as diretoras da rede

A reunião entre representantes das diretorias do elo e da rede deixou mostras de que, ao menos naquele momento, a Justa Trama não era uma prioridade para a cooperativa local – o que pode ser reflexo do baixo impacto econômico que ela representa ali96:

A reunião tarda a começar. De início, o presidente da Coopertêxtil atualiza alguns dados da fábrica, fala da aquisição de novas máquinas e da exigência crescente de capacitação. Em seguida, resume as intenções políticas com a Justa Trama, ao menos naquele momento: „O que queremos de vocês é uma ajuda com relação ao cooperativismo. O que segura a cooperativa é o pessoal com mais de 40 anos‟. [...] „E a formação como está?‟, pergunta Nelsa. Um dos presentes comenta: „O que acontece com a cabeça do trabalhador que assumiu de empregado para cooperado? Ele antes funcionava na base da ameaça, do desemprego. Depois o que o mobiliza?‟ Nelsa problematiza: „Bem, você pode fazer isso por duas vias: pelo bolso ou pela consciência. Ou ainda, pelos dois. Pela consciência, tu vai ter outros ganhos, para os dois lados. [...] Quantas atividades de formação vocês fazem normalmente?‟, pergunta ela. „Desse tipo já faz tempo. De resto, só assembleia‟, diz um dos diretores. „Nós que somos poucos, e estamos sempre conversando, temos problemas, imagine vocês!‟ comenta Idalina. „Nós fazemos assembléias mensais, reuniões direto, e também temos dificuldades. É um processo sem fim‟, fala Nelsa. Ao final da reunião, um diálogo curioso. O gerente de produção fala do problema da baixa qualidade do algodão agroecológico: „É muita rama e semente. A semente tem oleosidade, a casca não roda na carda..‟ „De que cor ele é?‟, pergunta Nelsa, desconcertante. „Ele é meio mesclado; bege, marrom.‟ „Então ótimo, vai ficar lindo‟, responde, para riso geral. „É isso aí! Dificuldade é nosso sobrenome‟, completa Idalina. Pouco depois, elas mostram fotos de uma das regiões onde se produz aquele algodão, comentando em que condições isto acontece. O impacto é notável: „Agora estou achando que aquele algodão não está ruim, não.‟ [Diário de Campo, Pará de Minas, 26/11/2010]

Ao final da viagem, saímos agradecidas pela acolhida que tivemos na casa de familiares de um dos cooperados. Também se destacou, como resultado da viagem, o fato das representantes da rede não terem tido acesso a um grande grupo de trabalhadores da Coopertêxtil, ao pessoal do “chão-de-fábrica”. A participação da Coopertêxtil na cadeia, por ora, talvez seja “uma aposta de futuro”, como refere Cruz (2010), ou ainda, um meio de ampliar a visibilidade e a participação política da Coopertêxtil:

O poder público de Pará de Minas, a Prefeitura, os órgãos de defesa ambiental, depois que ficaram sabendo deste trabalho [da Justa Trama], têm nos convidado freqüentemente pra participar de eventos municipais, estaduais. [...] As pessoas valorizam isso e vêem que isso tem um valor muito forte hoje e amanhã também. [...] Nós já participamos de audiência pública sobre meio ambiente; nós já participamos de debates em faculdades e na própria Câmara Municipal, para falar sobre a economia solidária, e um pouco também sobre essa preocupação com o meio ambiente e o agronegócio. – José Ribeiro (em entrevista)

96 Conforme explicou José Ribeiro, cooperado da Coopertêxtil, “nós processamos em torno de 200, 250 toneladas de fio/mês, na produção normal. E a Justa Trama costuma mandar pra gente em torno de 2 e 3 toneladas/ano. Então é uma proporção muito pequena.” (em entrevista. Porto Alegre, 05/11/2011).

Em resumo, esta viagem nos fez pensar em como a Justa Trama pode parecer maior ou menor, a depender de que elo a contemplamos. Ou, em outros termos, que há não apenas diferenças, mas também desigualdade entre os diferentes grupos que a compõem.

Foto 25. Idalina (Fio Nobre), Heleno (Coopertêxtil), Nelsa (Univens) e José Ribeiro (Coopertêxtil).

3.3. Pouco tempo depois, uma aguda mudança no eixo das relações elo-rede

Já havíamos mencionado, no relato da viagem a Fortaleza, a ocorrência de uma grave crise de desabastecimento de algodão, em 2010. Ela afetara os elos iniciais da Justa Trama e, entre eles, a Coopertêxtil:

Essa crise particular do algodão, desse ano, foi uma coisa que nos pegou de surpresa, pegou o país de surpresa, porque foi uma coisa totalmente atípica - o algodão foi comercializado na bolsa e desabasteceu o mercado. Pegou a indústria nacional, realmente, totalmente despreparada. A importação naquele momento era impossível porque se o mercado internacional veio buscar o algodão brasileiro é porque ele não encontrava em outros países, essa disponibilidade. – José Ribeiro (Coopertêxtil)

Pouco tempo depois, a Justa Trama serve de inspiração e participa da organização de uma grande rede, a cadeia solidária binacional do PET, envolvendo empreendimentos de dois países, Brasil e Uruguai, inclusive a Coopertêxtil. Na próxima seção trataremos em detalhe deste fenômeno. Por ora, destacamos a sensível mudança ocorrida no eixo das relações entre a Coopertêxtil e a Justa Trama, suscitada por este fato:

José Ribeiro faz um informe sobre o seu empreendimento, a Coopertextil, com destaque para a Cadeia do PET [tema do próximo texto]. Contam que estão bastante envolvidos e entusiasmados. Verificaram a necessidade de fazer pequenas adaptações em duas máquinas, já que farão o fio e o tecido de todo o processo. Passa a detalhá-lo, demonstrando grande conhecimento técnico. Comenta que eles vão receber o fardo parecido com o de algodão mas, no caso do PET, o aproveitamento é de quase 100%, já que vem sem caroço ou ramas. „A

gente não consegue dimensionar os impactos disso hoje, ainda. É muito pra cabeça da gente! A quantidade, a variedade de possibilidades... E essa cadeia só existe por causa da Justa Trama.‟ diz José Ribeiro. Nelsa por sua vez fala admirada: „Chega a ser emocionante ouvi-los falando: „nós só estamos aqui por causa da Justa Trama. Nós estamos aprendendo com eles‟. E ela prossegue: „A Justa Trama acabou atraindo os olhares da e pra

Coopertêxtil. Pra ela, vai dar uma grande virada na viabilidade dela; nós estávamos

preocupados, desde a última reunião [vide Diário de Fortaleza]. Se lembram da cara de preocupação do Zé?! [...] É uma cadeia que vai envolver mais de 9 mil pessoas, muitos deles

catadores, que estão numa situação muito pior que a nossa.‟ [Diário de Campo, Porto

Alegre, 23/03/2012]

Com efeito, a articulação da Coopertêxtil com a Justa Trama possibilitou a participação do empreendimento mineiro na proposição de um encadeamento político com forte poder de reverberação também econômica. Neste sentido, em menos de dois anos, assistimos a ampliação dos alcances, em ambas as dimensões, desta experiência de intercooperação. Vimos também o quanto uma dificuldade econômica (crise do algodão), vivida nos primeiros elos, inspirou a busca de uma saída política maior, cuja efetivação tem o potencial de não apenas superar a crise, mas de modificar o cenário existente, anterior a ela. Em outros termos, isto parece aportar também contribuições importantes não apenas aos associados da Justa Trama, mas também a outros trabalhadores da Economia Solidária97.

Quanto a buscar uma alternativa, se a gente não fizesse parte da cadeia Justa Trama, a gente não ia vislumbrar isso. Porque a gente, nesse tempo todo de existência, que já vai completar 13 anos, nós não conhecíamos alternativa para o algodão a não ser os produtos sintéticos normais, de mercado. [...] Mas como também são commodities, também são artigos de importação, e como o algodão teve essa crise, os produtos similares também tiveram seus preços elevados. [...] Então não daria pra gente substituir a matéria-prima tradicional da indústria têxtil, que é o algodão e a pluma nacional, por outro, de uma hora pra outra. Os ajustes são muito intensos. [...] Leva tempo. Então isso foi um impacto. E a gente começou a vislumbrar essa nova possibilidade do PET, até num consórcio bi-nacional, não pra agora. [...] Mas pode vir a ocorrer e a gente já está começando a se preparar pra não ser colhido assim, de surpresa, como fomos. – José Ribeiro (Coopertêxtil)

97 Mostra dos impactos políticos deste processo foi a reunião ocorrida, em 19/03/2012, em Belo Horizonte (MG), na sede administrativa do governo estadual mineiro. O evento, coordenado pela Secretária de Desenvolvimento Econômico estadual, Dorothea Werneck, contou com a presença do Secretário Nacional de Economia Solidária (SENAES / MTE/ Governo Federal), Paul Singer, além de secretários estaduais de governo (de MG e RS). Na ocasião, discutiu-se a participação do governo estadual mineiro no projeto da Cadeia Binacional do PET, do qual já participa o correlato gaúcho. Durante a abertura da reunião, Dorothea Werneck destacou a importância do fortalecimento da economia solidária. Ela se comprometeu a ajudar a Coopertêxtil a buscar uma linha de crédito para que a cooperativa consiga construir sua sede em lote já doado pela prefeitura. “A economia solidária é uma estratégia de desenvolvimento que, além de incluir pessoas e distribuir renda, ainda trabalha a favor do meio ambiente‟, enfatizou.” http://www.agenciaminas.mg.gov.br/noticias/governo-de-minas-integra-cadeia- binacional-do-pet-e-quer-fortalecer-a-economia-solidaria/, acessado em 10/04/2012.