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Notas de Porto Velho: o trabalho como objeto da política

III. Entre mapas, retratos e diários: o cotidiano político da rede

5. Notas de Porto Velho: o trabalho como objeto da política

Entro na grande sala oval reservada para a reunião do grupo113. O espaço era pequeno para tanta gente: mais de quinze pessoas, em torno de uma grande mesa. A sala não tinha janelas e era impessoal, como costumam ser os espaços de hotel destinados a eventos. A opulência amazônica ficaria para mais tarde. [...] S. Lino (Adec), avaliava: „O que é a Justa Trama? Às vezes até para falar aos nossos associados é difícil. Então, precisamos desses debates e desses demonstrativos todos; fica mais fácil.‟ Chagas (Adec) sugere: „Podemos fazer um gráfico envolvendo a Justa Trama todinha.‟ Os comentários tratavam da necessidade de alcançar uma visibilidade maior de todo o processo produtivo da rede. Algo que o grupo vem buscando ao longo dos anos, como veremos. Nelsa (Univens) apresenta a tarefa que o grupo teria pela frente: definir prioridades para os próximos três anos nos seguintes temas: gestão, comercialização, produção e representação política. Chama a atenção o método escolhido pelo grupo para aquecer o debate: um tempo para reflexão para, em seguida, cada um apresentar suas contribuições aos respectivos temas. Trata-se de um estímulo à fala de todos, não apenas das „lideranças‟. [Diário de Campo, Porto Velho, 01/04/2011]

Fenômeno observado em outras reuniões, os trechos seguintes dão outras mostras de como os temas da gestão e da comercialização, por exemplo, são tratados como objetos de discussão política pelo grupo. Ao tomá-los em consideração, os trabalhadores da Justa Trama problematizam suas práticas cotidianas sem, para isto, recorrer a modelos prontos. O método é eminentemente político. Por meio de debates prolongados, elencam prioridades, a partir do vivido no cotidiano, e redefinem escolhas, ou melhor, atualizam opções políticas, num processo orientado pela revisita aos valores historicamente definidos por eles como centrais.

5.1 Assembléia Geral Ordinária da rede: uma banda afinada e sem maestro

Enquanto presenciava os debates a seguir, uma imagem inusitada ganhava corpo: parecia estar diante de uma banda, uma banda afinada e sem maestro. A impressão advém de certa cadência política que o grupo parece ter desenvolvido nos anos de gestão democrática da Central. Um pegava a palavra, passava para o outro, que dava continuidade ao debate, até alcançarem o consenso.

Tema: gestão. O grupo define por objetivo desenvolver ações que tornem os elos mais ativos na gestão e na circulação da informação. Dalvani (Açaí): „Temos que tornar a Justa Trama mais técnica, contratar alguém para tocá-la nos empreendimentos. Isso é importante para

113 Para chegar à cidade, enfrento mais de vinte horas de viagem. Mais tarde soube que parte do grupo tampouco havia dormido. Chegaram pela manhã e já às 9h deram início às atividades. Novamente percebo que sem querer experimentei, no trajeto até aqui, uma amostra das dificuldades porque passam, com freqüência, os representantes dos elos que trabalham na coordenação política e administrativa da rede. Mais tarde confirmaria que não são incomuns as noites de pouco dormir, as reuniões de finais de semana inteiros, a substituição das refeições por lanches rápidos, entre um ponto de pauta e outro.

permitir que as pessoas fiquem mais na produção e nas ações políticas.‟ Ismael (Fio Nobre) propõe que seja alguém do próprio empreendimento, remunerado para isso. Patrícia (Univens) diz que também considera isto importante para manter as informações atualizadas e melhorar a comunicação. Já Dolores (Açaí) entende que a gestão é tocada pela direção: „quem está à frente é quem tem que tocar. Se tiver que fazer um curso, por exemplo, podemos ajudar.‟ Antônia (Açaí) aponta a busca por projetos que auxiliem os empreendimentos nas suas necessidades de gestão. Chagas (Adec) por sua vez diz que é preciso qualificar os elos nas próprias reuniões, que sugere, sejam trimestrais. Também aponta a necessidade dos grupos divulgarem seus balanços e de disponibilizar as atas para todos. Lino (Adec) sugere definir a agenda anualmente. Também propõe um plano de marketing desde a produção até os elos finais. Nelsa (Univens) sugere alimentar mensalmente as planilhas alusivas ao estoque, à produção e à movimentação financeira, como também definir pessoas responsáveis por isso em cada elo: „Precisamos olhar pra isso e pensar: „puxa, se fizermos isso nós vamos melhorar bem a nossa gestão!‟ Patrícia (Univens) concorda: „Vai melhorar e a gente vai seguir buscando. Tem que tentar.‟ Lino (Adec) propõe e todos concordam: „podíamos começar as reuniões com a leitura da ata do encontro anterior. Partir do que foi feito, mas de forma registrada, organizada.‟ [Diário de Campo, Porto Velho, 02/04/2011]

Foto 30. Assembléia Geral Ordinária da Justa Trama

Tema: comercialização. Marina (Açaí) sugere abrir mais pontos de comercialização e divulgar mais a rede por meio também de um plano de marketing. Dalvani (Adec) propõe investir mais no site da Justa Trama e dos elos que fazem produtos da rede (como uma loja virtual). Também sugere investir em embalagens mais chamativas: „temos que pensar em outro tipo de catálogo também, que diga mais sobre a Justa Trama, que não mostre apenas os produtos, mas que mostre também o que é a cadeia. Por que nós não somos só os produtos. Nós somos muito mais do que isso. Por ex., se for aqui, tem que mostrar a palmeira, o tucumã, a coleta, o processo.‟ Ismael (Fio Nobre) propõe ocupar mais espaço no mercado convencional, por meio de parcerias com lojas e feiras. Segundo ele, a Justa Trama é muito institucional e pouco comercial. Sugere profissionalizar a comercialização e manter um bom estoque-mínimo para pronta-entregas. Já Patrícia (Univens) aponta a necessidade de trabalhar a identidade visual da Justa Trama em feiras e outros espaços de comercialização. Resgata a idéia de um „kit-feira‟, composto por banners, decoração e até vestimentas adequados para quem vai vender produtos da Justa Trama nestes espaços. Arlete (Açaí) frisa a importância de oferecer produtos com tamanhos adequados nas feiras, condizentes com os biotipos mais encontrados na população brasileira; sugere mais produtos de apelo regional também. Antonia (Açaí) concorda com a companheira e acrescenta a necessidade de divulgações mais específicas nos locais de venda quando se tratar de feiras e de eventos. Chagas (Adec) sugere locais adequados para comercialização de produtos da rede em cada elo. „Pensei em algo como „sou um Ponto Justa Trama‟. Lino (Adec) fala que há que se atualizar de acordo com certas tendências da moda. Nelsa (Univens), por seu turno, propõe ocupar mais espaço em lojas multimarcas, principalmente do comércio justo: „porque a gente não vende só roupa, vende uma ideia.‟ E o debate prossegue tratando, por exemplo, de peças defeituosas. O que

fazer com elas? Surgem várias sugestões: tingi-las naturalmente, customizá-las com bordados etc. Muito rica e interessante a participação de todos, em especial, de Arlete, Dalvani (artesãs) e Chagas (agricultor), dando ótimas idéias aos elos finais (costureiras). [Diário de Campo, Porto Velho, 02/04/2011]

Durante o tempo de convívio com o grupo assistimos a poucas votações, exceto na eleição de representantes. Quando ocorreram, estavam associadas a questões periféricas, onde o consenso, além de desimportante, é de fato mais trabalhoso. Exemplos disto foram os processos de escolha de estampas e frases para a nova coleção da rede: após breve debate sobre o caráter geral que deveriam ter imagens e dizeres, o grupo optou por realizar uma votação em três turnos para definir a questão. Este recurso também é utilizado como consulta, ou seja, quando os trabalhadores podem ou precisam reunir a opinião do maior número possível de associados sobre um tema específico. Neste caso, a ampla consulta, em geral feita pela Internet, ocupa o lugar do debate ou o precede.

As cenas acima relatadas revelam ainda a presença de opiniões divergentes entre os associados na Assembléia. Mais: nota-se a expressão de leituras distintas de como deve ser a gestão da Central e a não-adoção de um modelo pronto, como dissemos, alheio às suas escolhas e princípios. Estas diferenças, no entanto, não acarretam grandes conflitos nas reuniões do grupo. Mais que isto, pensamos que podem ser vistas como indícios de um cotidiano político orientado por princípios democráticos.

E é de fato impressionante - ainda mais para quem presencia a cena - a habilidade e a rapidez com que o grupo organiza e executa um planejamento de processos variados e complexos. Durante estes dias, avaliaram projetos anteriormente definidos, as relações de cooperação em andamento, reviram custos, estoques, modelos de produtos. Também foi possível perceber nessas situações os ganhos com as experiências anteriores, o desenvolvimento de vários métodos por parte do grupo para a realização das tarefas e a grande participação dos presentes, em fala e em escuta: agricultores, artesãs, costureiras, todos bastante afinados na execução desta composição coletiva.

A gestão cotidiana do trabalho da rede aparece, portanto, como uma prática política, como propõe, de fato, a autogestão como modo de organização democrático de trabalho. Uma organização sempre provisória, promovida pelos trabalhadores, a partir dos recursos de que dispõem, entre o possível das circunstâncias e o desejável de seus projetos.

Foto 31. Almoço com artesãos da Cooperativa Açaí

5.2 Para uma dificuldade do cotidiano de trabalho, uma saída política

A modalidade de organização acima descrita sobretudo nos parece um arranjo orquestrado para o enfrentamento das dificuldades do cotidiano. Em alguns casos, notamos que tomar política e democraticamente entre muitas mãos um problema para resolver pode levar ao desenvolvimento de novos recursos simbólicos e materiais para o seu enfrentamento. Muitas vezes, isto altera, mais ou menos sensivelmente, a configuração anterior daquela organização do coletivo e de seu entorno114. Desta mesma reunião extraímos um exemplo disto, bastante trivial, entre os episódios vividos com os trabalhadores da Justa Trama:

Dalvani (Açaí) fala da necessidade de uma oficina de qualificação para o grupo aprender a operar as novas máquinas de costura: „as nossas são do tempo das nossas avós‟. Nelsa (Univens): „Gente, sinto muito, mas não existe este profissional.‟ Patrícia (Univens) completa: „É bem tranqüilo, sabe? O próprio técnico que monta já explica um pouco sobre o uso, a manutenção. Depois tu vai aprendendo com a prática!‟ Nelsa: „A gente podia pensar num intercâmbio entre Univens-Açaí!‟ Arlete (Açaí) sugere: „Já sei! Quando vocês vierem aqui, para as visitas formativas115, podem ficar mais.‟ [Diário de Campo, Porto Velho, 02/04/2011]

A partir deste debate imprevisto, disparado pela fala de Dalvani, o grupo teceu uma proposta para superar o problema por meio da intercooperação entre os elos, utilizando recursos que já dispõem: os saberes das costureiras do sul e os encontros periódicos inter- grupos. Contudo, foram além: propuseram outro formato de encontro, a fusão das visitas

114 Os fenômenos acima relatados e suas respectivas leituras harmonizam-se com a concepção de organização como processo, em vez de matéria, como propõem Peter Spink (1996) e Leny Sato (1999; 2003).

115 Visitas formativas são encontros propostos pelo grupo, com o maior número possível de trabalhadores de cada elo, para “apropriação da Justa Trama”. Na assembleia, os presentes avaliaram as visitas realizadas e elaboraram uma agenda das próximas a realizar.

formativas aos intercâmbios (ambos já existentes), de modo a contemplar as dificuldades, técnicas ou políticas, dos elos ou do conjunto da rede116:

Na discussão sobre os intercâmbios, os associados preocupam-se em trocar experiências não apenas entre si, mas também com outros grupos e instituições da Economia Solidária das regiões visitadas: „Acho importante nesses intercâmbios conhecer outros grupos que trabalhem com outras tecnologias, por exemplo, a Cooperbotões daqui.‟ (Nelsa/Univens) [...]

Próximos intercâmbios (entre os elos e deles com o exterior):

1. Açaí com Univens e Fio Nobre I,passando pela Cooperbotões - oficina sobre acabamentos 2. Univens com Açaí - oficina sobre maquinário

3. Adec com Casas de Sementes Crioulas (RS) - movimento de resistência aos transgênicos 4. Coopertêxtil com Adec - ajustes da produção de fios e tecidos

5. Açaí com Univens e Fio Nobre II – oficina sobre fixação e tingimento natural

[Diário de Campo, Porto Velho, 02/04/2011] O exemplo acima também permite verificar a presença mesclada de demandas políticas e de trabalho. Em meio à necessidade de aprender a operar máquinas novas, é preciso também intensificar a participação do grupo na luta contra a produção transgênica, inimiga da proposta agroecológica, princípio político capital da Justa Trama117. Para isto, o intercâmbio precisa acontecer não apenas entre os elos, mas da rede com parceiros exteriores:

„Estive pensando... nós temos um lado econômico mas também somos outra coisa, um outro modelo, que não é só produção. Somos um movimento também. Podíamos participar mais, de mais espaços, envolver-nos mais na luta contra os transgênicos, na defesa do meio-ambiente e outras lutas. Nós temos um quadro grande e podíamos participar mais, em mais lugares dos que já participamos. (Nelsa/Univens)‟ [Diário de Campo, Porto Velho, 02/04/2011]

Foto 32. À beira do Rio Madeira com associados da rede.

116 Um exemplo das principais atividades da rede em um ano: “O grupo organizava a agenda do período, definindo quem e quantos seriam os responsáveis por cada ação: oficinas temáticas, intercâmbios, feiras nacionais (6) e visitas formativas (7; pelo ao menos uma por elo).” [Diário de Campo, Porto Velho, 01/04/2011] 117 Momentos antes o tema fora tratado na mesma reunião: “S. Lino e Chagas (Adec) falam dos riscos vividos nas lutas locais. Tratam da luta contra os transgênicos na região, da desarticulação dos movimentos sindical e eclesial de base, e assim, revelam um cenário preocupante.” [Diário de Campo, Porto Velho, 02/04/2011]