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Notas de Itajaí: entre o vigor da política e a fragilidade da economia

III. Entre mapas, retratos e diários: o cotidiano político da rede

7. Notas de Itajaí: entre o vigor da política e a fragilidade da economia

Em julho de 2012 fomos a Itajaí, cidade portuária do litoral norte catarinense, para visitar a Fio Nobre, cooperativa responsável pela confecção final das peças da rede, em conjunto com a Univens. Esta viagem foi uma exceção diante da escolha de orientar as incursões pela agenda política da Justa Trama. Consideramos importante ir até lá por dois motivos: a Fio Nobre era o único empreendimento-fundador da rede não visitado até então; e a recente crise porque passara o grupo exigia atenção e parecia articular-se com as questões centrais da pesquisa.

Após um período difícil, marcado por reiterados prejuízos e conflitos, a configuração do grupo de trabalhadores da Fio Nobre mudou. À época da viagem, novas cooperadas haviam se unido às fundadoras remanescentes em um grande esforço para re-organizar política e economicamente o empreendimento123.

Cheguei ontem; Idalina buscou-me no aeroporto e de lá fomos para a casa dela, onde fui generosamente hospedada, por ela e seus dois filhos. [...] Hoje cedo fomos ao Centro Público de Economia Solidária de Itajaí124. Queria conhecer a instituição, referência em

comercialização solidária, organizada a partir da atuação de lideranças da Fio Nobre, como Idalina e Márcia. [...] Depois do almoço partimos para uma roda-de-conversa com professores, técnicos e estudantes, por sinal, muito proveitosa, na universidade onde Idalina também trabalha (ITCP / Univali). [Diário de Campo, Itajaí, 09/07/2012]125

Foto 37. Peças da Justa Trama à venda no CEPESI

123 A Fio Nobre é portadora de uma história antiga, de resistência, que data de 1986. Reúne em seu quadro lideranças de atuação protagonista não apenas na rede, mas também no movimento da Economia Solidária. Apesar de interessante, não analisaremos aqui a história do empreendimento, uma vez que o foco da pesquisa está voltado aos fenômenos da rede como um todo.

124 Para mais informações, sugerimos consultar http://www.cepesi.org.br/wp/, acessado em 15/07/2012.

125 Este trecho ilustra o quanto incursões como esta nos conduzem a um campo mais amplo daquele configurado pelos limites físicos do empreendimento visitado, ainda mais quando se trata do universo da Economia Solidária.

Elegemos relatar duas passagens desta incursão: a conversa com um casal de cooperados da Fio Nobre e a visita à sede do empreendimento. Ambas revelam as marcas deixadas pela instabilidade econômica vivida pela cooperativa (em esforço de recuperação). Ou seja, mesmo participando de uma das experiências mais exemplares da Economia Solidária brasileira (a Justa Trama), o grupo não está imune frente às dificuldades porque passam os pequenos empreendimentos do setor. As passagens a seguir também sugerem um possível desequilíbrio entre as dimensões do trabalho e da política no interior da rede. Para alguns associados, a esfera econômica não acompanha o vigoroso desenvolvimento experimentado pela rede no plano político.

7.1 „A política na Justa Trama é fantástica, mas o econômico não foi assumido do mesmo

jeito’

No almoço gentilmente oferecido pelo casal de cooperados, tomamos contato com as reflexões dos trabalhadores a respeito da crise econômica porque passara recentemente a cooperativa. Leituras perspicazes, de forte senso crítico, contribuíram muito para pensar os equilíbrios sutis entre as diferentes dimensões da autogestão na rede, aspectos dos quais trataremos posteriormente:

Chegamos a Cordeiros, bairro operário à saída da cidade, onde também se situa a cooperativa. O casal mora em frente à sede, numa casa de jardim cuidado e varanda vistosa. É Ismael quem me recebe. Antes das palavras, preocupo-me com sua saúde. Estava visivelmente mais magro: „perdi dez quilos, mas estou bem. É só o ritmo de trabalho mesmo.‟ Havia visto Ismael um ano e quatro meses antes, na assembléia, em Porto Velho (RO). De lá pra cá, vinha trabalhando à noite, em um frigorífico: „Não vou te dizer que estou mal, mas é claro que eu gostaria de trabalhar ali [cooperativa]. Queria dizer que eu vivo da Economia Solidária, de trabalhar com um produto como o da Justa Trama. Mas minha realidade não é esta.‟ [...] A conversa com Ismael segue enquanto ele adianta o almoço, feito em lindas panelas de barro. Os temas surgem entremeados: a experiência do trabalho assalariado noturno aparece entre suas avaliações dos limites e das possibilidades da Fio Nobre, da Justa Trama e mesmo da Economia Solidária: „não sou pessimista nem otimista. Sou realista‟, diz. De fato, e de modo transversal, seu olhar é crítico e calcado no plano do cotidiano. Ismael evita descolar-se rumo ao que ainda não é possível vislumbrar. E fala a partir de uma larga experiência de trabalho e de militância na Economia Solidária: „aprendi a ficar com o que é bom‟. Diz ainda sonhar em voltar a viver da renda gerada na cooperativa, mas já não cultiva grandes expectativas. Ao final, desafia: „é difícil encontrar cooperativas que realmente sobrevivam na Economia Solidária. Que grupos você conhece que estão bem de verdade?!‟ Calei e lembrei de uma companheira da ITCP-USP. Mais experiente nas arenas da vida, cuidava de advertir os estudantes entusiasmados: „o que a gente não pode é vender ilusão.‟ Hoje estendo a mesma preocupação aos resultados desta pesquisa.

Márcia chega, simpática e acolhedora. A comida e a conversa com Ismael vinham adiantadas e ela encontra rapidamente lugar em ambas. Parece concordar com as avaliações do marido. Digo a eles de algumas impressões que venho formando. Entre elas, o descompasso às vezes sentido entre os desenvolvimentos político e econômico da rede. Eles concordam: „a política na Justa Trama é fantástica, mas o econômico não foi assumido do mesmo jeito.‟ Márcia diz

algo que eu já ouvira nas rodas da Economia Solidária: „O discurso é lindo, mas a realidade é diferente. [...] o pessoal que recém-conhece, os estudantes, por exemplo, logo se encantam: „ai, que lindo!‟, dizem. Mas ninguém vive de „ai, que lindo.‟‟ Eles resgatam os sonhos iniciais, as expectativas geradas ao longo do projeto, até mesmo com a criação da rede e a formação da cooperativa, e as cotejam com as frustrações que se seguiram. Logo, contam os novos rumos da Fio Nobre: „não conseguiria olhar para aquele prédio, todos os dias, na frente de casa, se eu não tentasse até o fim, até o último fôlego.‟ Foi o que fez. Reuniu fôlego, outras pessoas e vem tentando reconstruí-la. Do acúmulo de rolos de malha, fizeram mais de duzentos conjuntos de lençóis que, a preços baixos, foram logo vendidos. Com outros tecidos, estamparam camisetas com logos de barcos e levaram-nas às ruas em dias de um grande evento náutico na cidade. Vendeu todas. Feira de Economia Solidária em Santa Maria? „Vamos fazer camisetas do Che Guevara! Vi que venderia todas que levasse‟. Márcia tem tino criativo e comercial: „sou da parte prática. Cada um tem um lado e este é o meu.‟ [...] À saída, sigo com Márcia e agradeço a Ismael. Ele me interpela: „Disse que seria sincero. Pode ser que mude de opinião, mas hoje é isso o que eu penso.‟

Antes da despedida, aponta orgulhoso dois pés-de-algodão mocó, um no jardim da casa, outro ao lado da cooperativa. Ele trouxera as sementes da viagem que fizemos com o grupo a Quixadá (Ceará), em 2010: „Lembra de mim como as sementes lá?!‟ Plantaram-nas sem muita esperança de que vingariam em clima tão diverso ao do sertão. Mesmo desconfiados, Ismael e Márcia insistiram. Semearam, cuidaram, e assim, deram lugar a uma surpresa – duas vistosas árvores de algodão, que contemplei floridas, com mais de dois metros de altura. [Diário de Campo, Itajaí, 10/07/2012]

Foto 38. Sede da Fio Nobre. À direita, o pé de algodão-mocó.

O relato da segunda passagem fala por si. Apesar do pouco tempo passado na sede da cooperativa, as conversas anteriores, nesta e em outras incursões, falavam de uma crise e de um esforço coletivo de recuperação – „até o último fôlego‟, como descreveu Márcia. Meses atrás, em reunião geral da rede realizada em Porto Alegre, ela e Idalina haviam analisado a situação do empreendimento em seu contexto local e nacional:

„Itajaí é muito complicado! Tem uma confecção em cada esquina. [...] O desenvolvimento econômico do país tem um lado bom e um lado ruim também.‟ Márcia (Fio Nobre) conta que muitas cooperativas estão perdendo parte do grupo para grandes empresas. Diz também que é necessário passar por novos processos de formação [em cooperativismo], para ampliar o quadro de cooperados. [...] „A ideia de ampliar o grupo é para não deixar morrer todo aquele potencial.‟ [Diário de Campo, Porto Alegre, 23/03/2012]

7.2 Visita à sede da Fio Nobre – delicadeza e esperança

Havia estado antes do almoço na sede da cooperativa, com Idalina. Trata-se de uma boa estrutura, que representa o quanto foi investido ali, material e simbolicamente. Em seu interior, é evidente, pulsa uma vida econômica. Várias máquinas e rolos de tecido em uso e muitas referências à Economia Solidária. [...] As horas na Fio Nobre foram mais breves do que gostaria. Mas a conversa prolongada no almoço valeu muito. Assim que chegamos Márcia me apresenta às cooperadas presentes. [...] De início, foi difícil aproximar-me. Recém- chegada, não as conhecia e ainda portava a alcunha de pesquisadora, sobrepeso difícil de neutralizar em poucas horas de convívio. Ao cabo, permaneceu certo desconforto, intransponível, frente ao pouco tempo que dispunha. Mas ele também dizia sobre uma condição daquele campo: além dos aspectos mencionados, tratava-se de um grupo novo - uma delicadeza. Não me senti à vontade para importuná-las com um sem-fim de perguntas. Às poucas que ousei fazer, colhi acanhamento como parte das respostas, seja por desconhecimento sobre a história da cooperativa, por motivos óbvios, seja por falta de legitimidade para falar em nome de um coletivo ao qual recentemente filiavam-se. Sentei-me ao lado delas, após pedir licença. [...] Travamos uma conversa leve sobre temas da cidade e o cotidiano da produção. Depois de algum tempo, me vi esclarecendo dúvidas sobre a Economia Solidária. Fenômeno em princípio curioso, confirmou as impressões iniciais sobre a re-configuração recente do grupo e, de modo amplo, a reunião de novos fôlegos no empreendimento. Após algumas horas, pude conhecer a situação da produção, os planos de participação do grupo em uma grande feira de Economia Solidária e conferir os novos produtos. Também notei certa insegurança por parte das trabalhadoras quanto aos resultados da empreitada, lado a lado com uma boa esperança – co-presenças próprias de investimentos recentes ou atualizados. [Diário de Campo, Itajaí, 10/07/2012]

7.3 Justa Trama: um meio ou um fim em si mesmo?

Se o econômico não te sustenta, o político vai morrendo. [...] Mas o econômico sem o sonho não é solidário. – Idalina (Fio Nobre) As precariedades das condições e das perspectivas de trabalho aqui narradas são, infelizmente, comuns em empreendimentos da Economia Solidária (Leite, 2009; Souza, 2011). Neste sentido, as experiências da Justa Trama (enquanto rede) e da Univens (enquanto empreendimento econômico solidário) não são “casos típicos”.

As situações observadas nesta viagem remeteram a uma discussão recente entre associados da rede, central para a pesquisa: qual o propósito maior da Justa Trama? A geração de trabalho e renda (a rede como um fim econômico) ou a resistência e a transformação social (a rede como um meio político)? Os trechos a seguir ilustram este debate:

Chego em meio à discussão sobre a „missão da Justa Trama‟. [...] Nelsa (Univens): „precisamos saber qual é o nosso foco. É no mercado? Nós nunca olhamos só pra ele.‟ Zé Ribeiro (Coopertêxtil): „nós nunca pensamos como mercado. Nós vestimos a camisa da Justa Trama, mas não dependemos dela. Para nós ela é uma ideologia, um projeto diferente.Chagas: „Não tem que ter a palavra „solidariedade‟ aí não?‟ [no texto da missão]. Nelsa sintetiza o dilema numa frase posteriormente muito mencionada: „Tu podes olhar pra Justa

Trama como um fim ou como um meio’. [...] Patrícia (Univens): „Mas sempre foram as duas

sustentabilidade econômica, nós ainda não conseguimos. Mas não é só isso.‟ [...] Mais tarde, ao definir a redação final da missão da rede, o tema retorna. Chagas: „queremos estar entre as melhores centrais de cooperativas, com atividades que gerem sustentabilidade ambiental e social‟. Dalvani: „A Justa Trama não é um fim, ela é um meio. A gente quer estar em vários locais, mas com regras, com princípios. Para que tudo acompanhe, para que nada fique solto, para que a Justa Trama não se torne um mito vazio‟. Idalina: „É isso, realização dos princípios‟. [Diário de Campo, Porto Alegre, 05/11/2011]

A Justa Trama é „meio‟ enquanto construção [política] - e ela será sempre. Mas ela é fim porque nós criamos ela pra juntar os grupos, comandar o processo todo, ganhar valor e gerar renda com qualidade. Então ela tem um fim comercial fortíssimo! [...] Todos os que sonharam isso pensavam assim: „Bom, agora nós vamos passar a vender mais semente, nós vamos sair do anonimato. Nós vamos vender mais roupa...‟ [...] Isso é comercialização, isso é „fim‟. Ela é „meio‟ quando? Quando ela constrói um projeto político... A política como um meio. [...] Sim, a Justa Trama traz crescimento pro grupo, traz divulgação pro grupo, bota ele pra o Brasil todo, bota ele pro mundo todo, porque nós ganhamos um baita nome. [...] Pra mim ela é meio e fim. [...] Mas nós estamos falando de economia, nós não estamos falando de sociologia! A Justa Trama sociologicamente tem um processo. Mas a Justa Trama é comércio, a Justa Trama é renda, a Justa Trama é trabalho! – Idalina (Fio Nobre), em entrevista.

Pode não dar impacto financeiro, mas o impacto cultural é totalmente imenso. [...] Mas olha, tem que fazer peça, tem que ganhar, é lógico. Mas é como a gente falava hoje, a Justa Trama ela é „meio‟. [...] Porque tu abre outra visão. – Dalvani (Açaí), em entrevista.

Esta questão, na realidade, é um “falso dilema”, já que não se trata de algo unidimensional, e o grupo demonstra saber disso, em práticas e discursos. O debate se inscreve na desigualdade entre as ênfases dadas, nas ações cotidianas dos trabalhadores, às dimensões política e econômica da autogestão da rede. Chamamos a atenção, primeira e simplesmente, à existência deste livre debate entre trabalhadores em seus cotidianos laborais:

“o que é mais importante para nós? A dimensão política ou econômica da rede que construímos?” A esta discussão, aberta e inconclusa no interior do grupo, retornaremos no