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IV. Valores, parcerias e outros marcos do percurso: sobre a história da rede

6. Pactuando princípios e modos de fazer

Outro fenômeno típico do cotidiano político da rede é a constante re-discussão de seus princípios e valores capitais, por parte de seus associados. Ao constatá-lo, nos dedicamos a compreender as razões que poderiam justificar este fato. Dalvani trata desta repetição abaixo, justificando-a pela necessidade política de atualizar as práticas cotidianas do grupo sem perder de vista seus valores primordiais, o que poderia descaracterizá-lo. Num contexto adverso, como é o mercado capitalista no qual a rede encontra-se inserida, este cuidado revela-se ainda mais necessário:

É muito aprendizado, porque esse vai-e-vem [discussão dos valores], no caso da construção da Justa Trama, é muito bom. Às vezes tem pontos que tu esqueceu, e que quando voltam, você vê que aquilo estava ali desde o início. Só tem que adequar à nossa realidade agora, mas ele já estava no início. – Dalvani (Açaí)

Em outros trechos deste texto comparecem exemplos dessas discussões políticas, muitas vezes travadas junto a temas que poderiam parecer, à distância, apenas pragmáticos, próprios da gestão, como a definição dos preços das peças:

quando a gente foi definir qual era o preço justo de uma peça a ser vendida. Foi lá no Rio de Janeiro [...] o Dário, que é um agricultor, lá do Ceará, falou exatamente isso, que a gente incorporou: o preço justo era um valor que quem produz pudesse adquirir aquele produto. E isso eu acho que é muito importante porque a classe trabalhadora faz produtos que não são pra ela. Na maioria das vezes não são. Os bons produtos não são pra ela. Então eu acho que a gente teve a clareza de definir isso, sabe? Uma clareza que é questionada, mas que o coletivo, a Justa Trama, tem essa clareza. – Nelsa (Univens)

A gente sempre fala que os princípios que a gente tem são a questão da preservação do meio ambiente [...] de uma distribuição justa de renda e também os princípios do próprio comércio justo, de verdade; que a gente possa se preocupar com quem está consumindo como com

quem está no processo de produção. [...] Você não quer fazer e que alguém consuma só pra melhorar a tua vida aqui, como um produto qualquer. – Nelsa (Univens)

Dirigimos, pois, aos entrevistados a seguinte questão, relevante para o tema da pesquisa: Quais são, afinal, os princípios ou valores da Justa Trama? Para Agnes Heller (2008), trata-se de questão fundamental, já que ela compreende o decurso da história como o processo de construção dos valores ou do declínio de um ou outro valor. Estes, por sua vez, são enunciados pela autora como “tudo aquilo que faz parte do ser genérico do homem e contribui, direta ou mediatamente, para a explicação desse ser genético” (p. 15). Nas respostas dos trabalhadores da rede, salta aos olhos, sem dúvida, a prevalência de valores políticos orientados por interesses humano-genéricos. Eles parecem, de certa forma, informar as práticas econômicas do coletivo, não sem questionamentos, como veremos a seguir:

Os princípios são claros. [...] transparência, que é importante. O que vale é o „fio do bigode‟ [confiança], não é qualquer documento que a gente tenha. [...] A gente decide no coletivo. [...] E, às vezes, isso é muito burocrático, é muito demorado, porque nós somos muito enxutos. Não temos dinheiro pra liberação das pessoas em cada lugar. Não temos dinheiro pra circular nas pontas [...] Tem o princípio da agroecologia, do meio ambiente, da seguridade alimentar, isso não tem o que discutir. Princípio de luta contra a desigualdade social... – Idalina (Fio Nobre)

A confiança, o fortalecimento dos elos, a preservação do meio-ambiente e sempre buscar alternativas que possam transformar [...] E no início a gente achava que dava pra ser simples... [...] Não é que vai pra lá oprimir eles [os agricultores]: „me dá o algodão a qualquer preço.‟ [...] Mas pelo contrário, [a Justa Trama] vai lá, resgata, mostra que eles são importantes, que o que eles fazem vale a pena, que a sociedade está pedindo isso aí. [...] Eles começam a ter um despertar político da posição deles. Então, quer dizer, num momento tu encanta, respeita, valoriza. Aí já começa a implementar outra coisa. Daqui a pouco, a própria Adec, o próprio pessoal, os próprios ribeirinhos de Rondônia, que fazem a coleta [das sementes], eles vão ter uma visão política e vão estar fazendo uma intervenção política no próprio território, com os produtos deles. Ele se apropria daquilo e isso é bom demais. Porque aí você vê o impacto que causou a cadeia na tua realidade. Não é uma coisa que a cadeia está causando impacto só a nível nacional, por causa da roupa orgânica. Não. É o que a cadeia está causando de impacto naquela realidade daquelas pessoas. [...] E isso te valoriza. Você já não tem vergonha. A gente tira isso pela Cooperativa Açaí. As pessoas tinham vergonha de dizer que eram artesãos. Os extrativistas tinham vergonha também porque eles são explorados, entendeu? E, agora, a gente está tentando fazer esse trabalho de valorização com a Justa Trama. Então, quer dizer, as pessoas ali já têm orgulho de serem artesãos, as pessoas já estão fazendo intervenção dentro do Estado, construindo centrais, redes... [...] Você começa a ver que a Justa Trama simplesmente plantou uma semente. – Dalvani (Açaí) Outro aspecto que se destaca no tocante aos valores pactuados pelo coletivo da Justa Trama é a promoção de intervenções políticas em seus contextos locais e regionais, como assinalou Dalvani. José Ribeiro e Nelsa confirmam esta leitura nos trechos seguintes, revelando aguçado grau de consciência sobre as circunstâncias políticas e históricas maiores que envolvem a rede: “isso é mexer na estrutura da sociedade. Isso é você, de fato, construir

Depois que eu conheci e comecei a participar da cadeia eu comecei a ver o mercado de uma maneira diferente. Eu comecei a ver também a vida de uma maneira diferente. Porque quando a gente está inserido num mercado capitalista, na concorrência do mercado, a gente começa a viver visando a lucratividade, visando sobretudo o „eu‟ [...] É muito individualismo. Quando a gente começa a ver que o trabalho da gente vai influenciar outras pessoas, outras economias, vai ter um resultado, uma melhoria de vida, a gente começa a enxergar que nós podemos fazer a diferença. Nós podemos ser diferentes fazendo diferença. Apesar de que às vezes o difícil é convencer a nós mesmos. - José Ribeiro (Coopertêxtil)

Provar que a gente é capaz de ter um controle de todo o processo de produção. Os trabalhadores organizados em Economia Solidária, de forma coletiva. [...] Porque isso é mexer na estrutura da sociedade. Isso é você, de fato, construir algo que o capitalismo não te tira, nenhum outro sistema te tira. Poder dizer: „Olha aqui, esses são os que

produzem. Portanto, esses podem ser donos de todo esse processo e definir valores justos pra esse processo.‟ [...] Amanhã eu posso estar aqui de novo porque eu tenho um controle disso. Então é tu passar de uma instância de primeiro grau, que é a cooperativa, que ela prova isso, e que é maravilhoso você viver tudo isso, pra depois você ver que isso pode ter uma dimensão nacional. [...] É importante pra gente, é importante pro mundo. Importante provar pra acreditar nisso. Porque senão o mundo fica muito pequeno, sabe? Eu acho que quando você consegue transformar o local, isso tem que te fortalecer pra sentir que você pode transformar os outros locais próximos. Quando você faz essa transformação, dos outros locais próximos, você tem que acreditar que você pode transformar o seu estado. Quando você transforma o seu estado, você tem que acreditar que você pode transformar o país. E daí você pode acreditar que o mundo pode mudar, não nas belas palavras, mas porque está mudando aqui, e porque também ele está mudando numa dimensão maior. [...] E sempre é importante que ele comece no local, porque senão você faz algo sem pé. Sem estrutura, sem sustentação. E assim, Cris, essa é uma coisa que não te deixa nunca mais ficar tranqüilo, no sentido de acomodado. [...] hoje a gente quer estar nas cinco regiões do Brasil. Porque o fato de tu ter um pé lá no Mato Grosso do Sul, faz com que aquela região pense que isso é possível lá, que eles comecem a sonhar em cadeias como possíveis. [...] Vai quebrando um monte de conceitos que nos é colocado sabe? „Ah, não é possível porque é longe.‟ „Não é possível por isso e isso, sabe?‟ Então tu mexe e consegue derrubar aqueles mitos e provar que, de fato, a sociedade só é desse jeito porque tem ganância, porque tem alguém que está ganhando sobre a exploração do outro. – Nelsa (Univens)