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Quando o campo é plural: um aparte sobre etnografia multissituada

II. Os meios no centro: o método e o trabalho de campo

3. Quando o campo é plural: um aparte sobre etnografia multissituada

Como vimos, os processos cotidianos da Justa Trama não estão reunidos num único e contínuo território. Este fato, aliado à adoção da etnografia como referencial metodológico, nos colocou diante de um grande desafio: como fazer etnografia quando o campo é plural? Neste processo, o encontro com a proposta de uma etnografia multilocal ou multissituada60,

amplamente divulgada por George Marcus (1995; 2001; 2004), foi um importante achado, do qual trataremos brevemente aqui61.

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Sabe-se que tradicionalmente os estudos etnográficos baseiam-se na observação e na participação, intensas e prolongadas, sobre uma única localidade, desde a clássica mise-en-

scène malinoswskiana (Marcus, 2004). Ao mesmo tempo, e também tradicionalmente, o

etnógrafo recorre a outros métodos e técnicas para estabelecer as devidas relações entre a situação pesquisada e seus contextos maiores, como a consulta a arquivos documentais e a obras de “teóricos do macro” (Marcus, 1995). Não há dúvidas, para o autor, que tais estudos têm produzido importantes contribuições, por exemplo, para a compreensão dos mecanismos de dominação histórica de povos tradicionais, a partir das múltiplas formas de ação da economia capitalista (Marcus, 2001).

No entanto, há outros modos, menos usuais, de empreender etnografias. A etnografia multissituada, por exemplo, foi formalmente proposta por Marcus (1995) nos anos 90, mas é praticada por diversos estudiosos das Ciências Sociais há décadas, em distintos matizes, como Pierre Bourdieu (Wacquant, 2006)62. Ela propõe a saída do pesquisador de uma dada situação local para seguir objetos localizados num tempo-espaço difuso (Marcus, 2001):

Esta clase de investigación define para si un objeto de estudio que no puede ser abordado etnograficamente si se permanece centrado en una sola localidad intensamente investigada. En

60 Devemos a referência à etnografia multissituada e sua relação com a presente pesquisa ao Professor José Guilherme C. Magnani (Antroplogia – FFLCH / USP).

61 George Marcus, em companhia de colegas como James Clifford, são expoentes da chamada Antropologia crítica ou pós-moderna. Clifford e Marcus (1986) escreveram juntos Writing Culture, obra que se tornou representativa de um movimento crítico no interior da disciplina, que já se havia nutrido do Orientalism, de Edward Said (1978/2007). Dirigidas a aspectos tradicionais da prática etnográfica, associados a modos naturalistas de representação do outro e com a “autoridade inconteste do etnógrafo”, tais críticas alicerçaram, entre outras proposições, formas não-eurocêntricas ou não-ocidentais de alteridade, baseadas em postulados como o da reflexividade e da cumplicidade (Marcus, 1995; 2004).

62 Loïc Wacquant (2006) recorda os primeiros estudos de Pierre Bourdieu, desenvolvidos concomitantemente na Cabília (Argélia colonial) e em sua aldeia natal, Béarn (sudoeste da França), e afirma: “Utilizando, assim, os mesmos instrumentos de observação e perseguindo questões da mesma natureza em duas comunidades separadas por grandes diferenças culturais e de poder, Bourdieu pode ser encarado como um precursor ímpar da etnografia „multissituada‟ [„multi-sited‟ ethnography], décadas antes desta ser identificada como um gênero metodológico distinto.” (Wacquant, 2006, p. 21). O autor também trata das diferenças entre as concepções de etnografia multissituada contemporânea e a utilizada por Bourdieu, no início dos anos 60.

cambio, desarrolla una estrategia de investigación que reconoce los conceptos teóricos sobre lo macro y las narrativas sobre el sistema mundo, pero no depende de ellos para delinear la arquitectura contextual en la que están enmarcados los sujetos. (Marcus, 2001, p. 111)

Conforme Teresa Fradique (2003), o modelo permite deslocar-se de um paradigma assente num único lugar de investigação para o exame de territórios com múltiplos ancoramentos, na tentativa de encontrar as expressões de certos objetos de estudo. Esta espécie de etnografia móvel ganhou visibilidade nas últimas duas décadas por representar um potente recurso diante de desafios empíricos contemporâneos, próprios de um mundo mais globalizado e fragmentado. Certamente, as novas formas de ocupação do espaço e do tempo na modernidade avançada provocaram a releitura de tradicionais objetos da Antropologia, como territorialidade, diversidade e identidade cultural (Barañano, García, Cátedra & Devillard, 2007; Fradique, 2003; Sciré, 2009). Para muitos etnógrafos, especialmente da antropologia crítica, como Clifford e Marcus (1986), estes fenômenos implicaram também na necessidade de reinventar os modos tradicionais de fazer pesquisas de campo:

La distinción entre mundos de vida de los sujetos y sistema no se sostiene, y el aporte de la etnografía dentro del alcance de lo local, perspectiva cercana, es descubrir originales rutas de conexión y asociación a través de las cuales el interés etnográfico tradicional relacionado con la agencia, los símbolos y las prácticas cotidianas pueda seguir siendo expresado en un lienzo con una configuración espacial diferente. (Marcus, 2001, p. 113)

Por certo, etnografias multissituadas têm sido desenvolvidas no interior dos marcos conceituais clássicos da Antropologia, como nas vertentes marxistas da disciplina ligadas à economia e à história. Mas elas tornaram-se mais freqüentes, nos anos 80 e 90, em projetos e objetos multidisciplinares, como aqueles que tratam das expressões artísticas em contextos urbanos, dos meios de comunicação e dos processos migratórios: “[...] quando as culturas e populações estabelecidas se fragmentaram, tornaram-se móveis e transnacionais, bem como mais cosmopolitas (ou, ao menos, mais invadidas e ingeridas) localmente; a pesquisa de campo teve simplesmente de acompanhar, quando pôde, esses processos no espaço.” (Marcus, 2004, p. 149)

Porém, segundo Marcus (2004), os desafios efetivos ao imaginário da pesquisa de campo tradicional não se ancoram apenas nas complexidades do mundo globalizado. Também relacionam-se com o que chamou de “auto-estima da antropologia”:

O problema fundamental aqui é confrontar a política de conhecimento, que qualquer objeto de pesquisa de campo envolve, e a tentativa do etnógrafo de marcar posição em relação a esta política, fazendo do próprio lugar parte do plano de investigação da pesquisa de campo. Assim, desde os anos 80, qualquer antropologia crítica merecedora do nome não apenas tenta falar a verdade ao poder – poder como conceitualizado e teorizado; verdade como subalterna e entendida no interior da vida cotidiana de pessoas comuns

observadas de perto -, mas também tenta entender o poder e suas agências, nos mesmos termos etnograficamente empenhados e nas mesmas fronteiras de pesquisa de campo nas quais o subalterno está incluído. A própria compreensão etnográfica, nos termos de Bourdieu, como um segmento dominado no interior do dominador, sugere uma modalidade alternativa relevante para as circunstâncias da pesquisa de campo atual [...] Sem dúvida, isso é o que mais conta na luta para tornar a pesquisa de campo contemporânea mais multilocalizada e política. (p. 150-151) [grifos nossos]

Segundo Marcus (1995) e Sciré (2009), o pesquisador interessado em compreender mudanças sociais e culturais locais, a outros âmbitos relacionados, deve dedicar-se especialmente ao uso de estratégias e técnicas que lhe permitam ultrapassar o local e as fronteiras e promover conexões em escalas etnográficas distintas. Para tanto, Marcus define pelo menos seis técnicas, compreendidas como práticas construídas por meio do movimento e rastreio, em diferentes cenários, de um fenômeno cultural complexo (Marcus, 1995; 2001). São elas: seguir as pessoas; seguir os objetos; seguir a metáfora; seguir a trama, história ou

alegoria; seguir a vida ou a biografia; e seguir o conflito (Marcus, 1995; 2001)63:

O objeto da pesquisa não é, assim, necessariamente, restrito a determinado grupo situado no interior de um campo de observação. Muitas vezes, o objeto consiste em um determinado fenômeno social [...] e sua construção ocorre ao se fazerem determinados movimentos (por meio de passos já previamente planejados ou oportunistas), seguindo pessoas, histórias, objetos, ao longo de várias cadeias, superpondo situações e verificando os pontos nos quais as intersecções, ressonâncias e associações ocorrem (Sciré, 2009. p. 97). [grifos nossos]

E, ao enunciar o trabalho de campo, bem como suas estratégias e técnicas, enquanto

práticas construídas, o autor assume a filiação, ao menos parcial, da etnografia multissituada

como uma prática atualizada de construtivismo, nas palavras do autor:

La investigación multilocal está diseñada alrededor de cadenas, sendas, tramas, conjunciones o yuxtaposiciones de locaciones en las cuales el etnógrafo establece alguna forma de presencia, literal o física, con una lógica explícita de asociación o conexión entre sitios que de hecho definen el argumento de la etnografía. En realidad, tal etnografía multilocal es una puesta al día de una sofisticada práctica del constructivismo, una de los más interesantes y fértiles ejercicios de representación e investigación del movimiento vanguardista ruso de cambio social, justo antes y después de su revolución. (Marcus, 2001, p. 118)

63 Marcus (1995) aponta também outra modalidade, a etnografia estrategicamente situada. Neste caso, o pesquisador não se desloca literalmente por diferentes locais, mas desenvolve seu trabalho de campo num contexto, por si só, multissituado: “[...] o que ocorre nele não deixa de estar inserido e imbricado em um traçado de redes e no intercruzamento de processos e práticas, mediações, conexões e circuitos. Como estes não permanecem encapsulados em seus contextos imediatos de referência, também acabam sendo considerados. O importante a ser notado é que o entendimento das dinâmicas locais de um determinado fenômeno social supõe (e exige) seguir empiricamente essas linhas entrelaçadas que o compõem, mas que transbordam de maneira ampla o perímetro local, justamente porque fazem o traçado de redes superpostas, de escalas variadas, que atravessam e definem (ou redefinem) cada situação.” (Sciré, 2009, p. 98)

Atualmente, a proposta da etnografia multissituada pode gerar ansiedades, nos termos de Marcus, entre os etnógrafos: preocupações com os limites da etnografia e com a aparente redução do poder do trabalho de campo, por exemplo (Marcus, 1995; 2004). No tocante à segunda questão, o autor argumenta que, na maior parte dos estudos etnográficos, já se atravessa muitas localidades no trabalho de campo, e que a concepção, portanto, de campo e de trabalho de campo, deveria pressupor, ao menos em potencial, uma liberdade maior de movimento do pesquisador pelo espaço de sua empiria: “As normas de pesquisa de campo precisam ser libertadas do enfático e vigoroso estar lá do imaginário clássico.” (Marcus, 2004, p. 149).

Mientras el trabajo se desarrolla, operan principios de selección para alinear el campo efectivo respecto a las percepciones disciplinarias tradicionales sobre qué debe ser el objeto de estudio. Así, el trabajo de campo, tal como es percibido y practicado habitualmente, es en si mismo potencialmente multilocal. (Marcus, 2001, p. 114) [grifos nossos]

Desde a Psicologia Social, Peter Spink (2003) também discute a concepção de campo como um “complexo de redes de sentidos que se interconectam” (p. 28). Neste sentido, o autor afirma que se trata de um espaço criado, ainda que não voluntariamente, já que o pesquisador terá que debatê-lo e negociá-lo para inserir-se em suas “teias de ação” (Spink, 2003): “Campo portanto é o argumento no qual estamos inseridos; argumento este que têm múltiplas faces e materialidades, que acontecem em muitos lugares diferentes.” (p. 28). [grifos nossos]

Ainda que consideremos os valiosos aportes da perspectiva aqui apresentada, não é preciso estar sob este determinado marco metodológico, a etnografia multissituada, para orientar-se com liberdade e sagacidade em campo, e ali seguir o rastro das expressões de nossos „objetos‟, por diferentes sítios, sempre que necessário. O belo estudo psicossocial de Leny Sato (2007) sobre feira livre, é exemplo disto:

Apreender a rede de relações sociais que configura a feira livre demandou seguir os fios e identificar os „nós‟ que tecem sua organização. [...] Nessa rede, os fluxos de interação simbólica não estão norteados por um centro a partir do qual emanam as informações, os motes das conversas e as decisões. Os „fios‟ que ligam as pessoas entre si estendem-se em diversas direções. A estrutura da rede de relações sociais e de significados pôde ser apreendida, mas a posteriori (Mayer,1966/1987). A rede abriga e é construída pela presença de várias lógicas que se encontram em um lugar, em um dia da semana e se espalham em várias outras feiras livres nos outros dias e em outros lugares. Em pequenos espaços e num determinado tempo há maior densidade de encontros que dão substância a essa organização, construindo, questionando e repondo continuamente as regras, os valores e a cultura. (pp. 98-99) [grifos nossos]

Com efeito, para manter-me junto do objeto de estudo da pesquisa – os fenômenos políticos da autogestão cotidiana da Justa Trama – tive que me deslocar a diferentes sítios, e não apenas pelos diversos empreendimentos da rede, geograficamente distantes entre si. Foi preciso circular ainda por um campo mais ampliado, conformado pelos circuitos de ações e de interesses dos trabalhadores, que se dirigem ao encontro de muitos parceiros políticos, nacionais e internacionais, em diversos espaços e fóruns do universo da Economia Solidária. Neste sentido, o diálogo com a perspectiva da etnografia multissituada trouxe contribuições importantes para o desenvolvimento dessa tarefa que, em parte, tratamos de apresentar aqui.