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A atuação salesiana nesta região vale uma atenção especial porque constituiu uma situação em que sua política missionária encontrava-se em posição desfavorável frente a uma alternativa religiosa concorrente. O quadro seria incompleto se não abordássemos como a nova proposta pastoral católica foi pensada para resolver os problemas específicos de combate à “heresia protestante”.

A paróquia de Assunção do Içana tem uma extensão de 25.000 km2, que abrange uma população Baniwa e Curripaco, que vivem no rio Içana e seus afluentes Cubaté, Aiari e Cuiari, cuja expressiva maioria é protestante.1 A população é em sua absoluta maioria protestante. A atuação salesiana foi esporádica no rio Içana até a fundação da missão, em 11 de fevereiro de 1951, pelo Padre José Schneider, que dominava a língua nheengatu. Esta Missão localizou-se no limite dos assentamentos Baniwa que falam o nheengatu e daqueles que falam o baniwa. O estabelecimento deste centro missionário ocorreu principalmente por causa da preocupação com as atividades de Sophia Muller — designada como uma “invasão protestante” —, cujas estratégias de conversão religiosa foram consideradas pelas autoridades salesianas muito eficientes.

Em uma reunião de diretores das missões do Rio Negro realizada em 1955 a expansão protestante no Içana foi o tema mais discutido. Decidiu-se então a formação de uma comitiva para verificar a situação e responder se a construção de uma escola resolveria os problemas. Tal delegação foi composta pelos padres: João Marchesi, vigário geral da Prelazia do Rio Negro; Carlos Galli, substituto do Padre José Schneider; e Luiz Pasinelli, diretor da Missão de São Gabriel da Cachoeira. Segundo o Padre João Marchesi estavam todos os índios da bacia do Içana “contaminados pela seita batista”.2 A difusão do

1 Dados provenientes de censos salesianos apontam uma proporção de 70% (1987) a 72% (1989) de protestantes. Os dados do censo de 1987, entretanto, referem-se ao ano de 1980. Um relatório paroquial de 1974 apresenta uma particularidade, pois aponta uma proporção bem menor de protestantes (55% para 26% de católicos). Isto ocorreu porque apresenta uma outra categoria censitária: os religiosamente indiferentes (19%). Como veremos adiante, estes são aqueles que retomaram seu antigo modo de vida (rituais, festas, danças, etc.) após trabalharem por um período nos piaçabais da Colômbia e da Venezuela.

2 Correspondência enviada pelo Padre João Marchesi para Dom Pedro Massa. Vaupés, 01 de março de 1955. Documento manuscrito.

povoados conservavam a capela — sinal de que ainda se mantinham católicos. A comissão constatou que até mesmo no seu próprio quartel general em Assunção do Içana os muitos (falam de centenas) indígenas que acorriam para lá eram motivados apenas pelas suas necessidades (acesso a mercadorias). Muitos deles realizavam os cultos protestantes secretamente, até mesmo nas dependências da Missão. Apenas no rio Aiari a hegemonia salesiana estava preservada. O discurso salesiano aqui se apresenta com tonalidades fortemente militares, no qual os povoados indígenas são equiparados a territórios conquistados, conservados ou perdidos pela fé católica. Aponta como uma importante explicação para tal situação a localização inadequada da Missão onde existiam poucos moradores e longe do foco de irradiação do protestantismo. Sugere a localização de uma nova Missão na boca do Cuiari, acima da cachoeira de Tunuí, onde havia um acampamento da Comissão de Limites e o Coronel Themistocles Brazil aconselhara a instalação de uma Missão.3 Vemos aqui mais uma demonstração da convergência das preocupações com a segurança das fronteiras nacionais do Estado brasileiro e das fronteiras religiosas da Ordem Salesiana no Alto Rio Negro. Esta “parceria” — para usarmos um termo em voga atualmente — entre soberania estatal e eclesiástica será uma das condições da atuação missionária Salesiana até a implantação do Projeto Calha Norte. A “terceirização” da ação indigenista é um elemento básico do campo de mediação interétnico nesta região do Noroeste Amazônico.

O perfil do sacerdote e a estratégia adotada para realizar tal eminente tarefa demonstram a percepção então vigente sobre a eficácia da atuação missionária protestante, cujo modelo deveria ser seguido: deveria dominar a língua geral e a língua Baniwa, nas quais faria as suas pregações e prepararia o catecismo; e atuar mais freqüente e permanentemente nos sítios e povoados. Estas seriam as bases de uma verdadeira e profunda conversão, isto é, que consolidaria a presença católica no Içana, tão precária naquele momento. Os sólidos e duradouros resultados desta perspectiva pastoral eram nítidos no fervoroso e pleno compromisso religioso dos Baniwa crentes:

dialeto baniwa e até alguns em língua geral. Se mostram convencidos e fazem este atos de culto com muita seriedade. [...] (Ibidem).

Outra evidência de bons frutos desta linha de intervenção era o poder de mobilização e persuasão dos líderes protestantes. O Padre Marchesi mencionou uma ocasião (15/02/1955) em que um pastor reuniu em Tunuí 680 adultos e realizou 60 batizados (rito de iniciação, consagração, plena aceitação na comunidade de crentes). Ele sugere a Dom Pedro Massa que intervenha junto ao Padre Inspetor que indique o Padre Galli — por preencher aqueles requisitos mencionados acima — ao Içana, em vez do Padre Guilherme Galibinelli, que seria indicado para São Gabriel da Cachoeira. Propôs-se a acompanhar a construção da nova Missão, que deveria iniciar suas atividades em 1956, na boca do rio Cuiari. Este centro missionário na foz do rio Cuiari nunca foi implantado, apesar de ter sido proposto por uma comissão de respeitáveis salesianos atuantes no Rio Negro. Muitos anos depois o Padre Carlos Galli, integrante da comissão, atribuiu à interferência do funcionário do SPI, Atayde Cardoso, o insucesso da proposta de implantação desta nova unidade missionária devido aos seus interesses comerciais junto aos protestantes. A solução então considerada inadequada, a construção da escola, acabou prevalecendo: “[...] o internato, oficina maravilhosa, transformadora da mentalidade e dos costumes”4. Em seguida, o Padre Galli afirma que a Missão era sinônimo de internato e que mais recentemente o itinerante levou a Missão às famílias católicas do alto Içana, demonstrando assim a limitação do raio da ação evangelizadora representada pelo internato.

Mesmo nos anos 70 em que a idéia da inculturação já era moeda corrente no discurso salesiano o internato ainda era objeto de veneração como uma espantosa e quase mágica força de transformação moral, promotora de uma verdadeira conversão religiosa e de uma sólida postura civilizada, inerentes à vida urbana e opostos aos nocivos costumes inculcados pelo protestantismo:

entreposto para o descanso das constantes viagens aos sítios e povoados realizadas pelos salesianos.

comunicativa, uma expansão que encanta – boas maneiras – asseadas – limpas – respeitosas – parecem moças educadas na cidade – é bem o revés da medalha do ambiente protestante – acanhados – tristes – inseguros – sombrios – sujos – fétidos – esfarrapados – nunca se atrevem a enfrentar alguém fixando os olhos (Ibidem).

Civilizar aqui é desenvolver a capacidade de se relacionar com os outros, expandir a civilidade, a boa convivência, o respeito mútuo em contraposição à hostilidade e imundice incentivadas tanto pela cultura indígena quanto pela protestante. É interessante observar o papel atribuído aos hábitos de higiene na formação desta civilidade católica. Padre Galli descreve o estado de “ignorância religiosa” que grassava no Rio Negro antes da viagem do Monsenhor Lourenço Giordano — que ao constatar a “deplorável situação moral e intelectual dos índios” sugeriu a ação missionária salesiana na região — identificando as antigas festas indígenas a verdadeiras orgias, quando centenas de índios seminus, incluindo mulheres e crianças, se aglomeravam na maloca durante dias e consumiam bebidas e drogas, dançando e cantando num ambiente infectado pela fumaça e pelo mau cheiro.5 O modo como os salesianos representam as Conferências protestantes é também bastante sombrio: aglomeração desordenada, favorecendo a propagação de doenças, brigas e assassinatos por envenenamento. Ao mesmo tempo o Padre Galli lastima o retorno das “antigas orgias”, as quais se entregavam os crentes indígenas que abandonavam o protestantismo. Prefere também as “festas dos caboclos” que, apesar de apresentar muitos abusos, é uma oportunidade para a demonstração de devoção e fé religiosas.

5 Vejamos a descrição do primeiro encontro do Monsenhor Giordano com os indígenas — provavelmente Arapaço — de Taracuá, durante a viagem ao Rio Negro, que durou três anos, em 1916: [...] lá chegaram pela

tardinha — existia então uma única maloca, de proporções enormes [...] ao chegar à única porta, viu lá dentro mais de 400 pessoas — só de coeio — homens — mulheres — crianças — uns deitados — outros cantando, acolá gargalhando — mais além chorando — todos caracterizados: uma fumaceira enorme, dos múltiplos fogos — uma catinga insuportável, ofendia as narinas. Imediatamente veio o Tuchaua — todo enfeitado, com os maiorais, nas mesmas condições, pedindo que entrasse, para passar a noite com eles. [...] Do terceiro dia em diante a bebida e todas as drogas eram fortes e à vontade. Nestas reuniões decidiam tudo quanto se relacionava à tribo. Então homens, mulheres — mulheres — moços — moças — e até crianças, todo mundo entregava-se à bebedeira — à dança desenfreada — à devassidão — já muitos não podiam mais se aguentar de pé, já não saiam mais da maloca, nem para as primeiras necessidades — tudo era despejado aí mesmo. [...]

Todavia a transferência das irmãs para a missão recém criada em Cucuí (1967), ocasionou o fim do internato. As irmãs retornaram em 1976, porém o internato não foi reativado. Os alunos do Içana que completavam a 4a série eram encaminhados para o internato de Taracuá (Cf. caso do Bonifácio que estudou neste internato), onde a absoluta maioria de alunos era de grupos tukano. O Bispo Dom Pedro Massa acatou a alternativa que mantinha o modo tradicional de ação missionária, que também não deu certo, em detrimento daquela que pressupunha uma autocrítica, formulada a partir da comparação com as estratégias protestantes de conversão.6 O Içana era o laboratório onde a eficácia da prática pastoral salesiana estava sendo testada pela existência de um campo de disputa religiosa, onde não havia um monopólio católico patrocinado pelo Estado brasileiro. Dom José Domitrovics qualificou como doloroso, vergonhoso e humilhante o quadro religioso daquela região para os salesianos.7 Delineou com traços fortes a inoperância da estrutura missionária recém estabelecida naquelas paragens. Contrasta a profunda religiosidade dos indígenas protestantes, contrariando a opinião então vigente entre os salesianos, ao envolvimento superficial e aparente dos indígenas católicos. Mencionou a existência de 40 casas de oração, “[...] que se enchem todos os dias para o culto, sem nenhum elemento estrangeiro no meio deles [...]”, não se importam com o bem estar material8 e fogem para a roça ou

6 Então, qual a importância em reportar fatos que não tiveram conseqüência histórica? Por várias razões: em primeiro lugar, para não silenciar agentes, atos, representações e projetos que foram silenciados mas que poderiam ter modificado uma cadeia de eventos posterior ou toda uma lógica institucional; em segundo lugar, para mostrar os conflitos internos e espaços (limitados) de manipulação de significados capazes de gerar mudanças, manifestados conforme os meios convencionais de expressão e os consensos básicos (as certezas inabaláveis da consciência prática) vigentes, censurados pela história oficial; em terceiro lugar, porque a compreensão dos “fatos” consumados inclui a pergunta sobre os outros cursos de ação possíveis (possibilidade objetiva e causalidade adequada, Max Weber), pois o que é passado para nós era tão indeterminado para aqueles que nele viveram como o presente e o futuro nos são agora.

7 Correspondência enviada por Dom José Domitrovics ao Exmo. Senhor Bispo Dom Pedro Massa. Vaupés, 02 de março de 1955. Encaminha em anexo o “Relatório sobre o Içana”, datilografado, do Padre João Marchesi. Este relatório datilografado é um pouco diferente do manuscrito, mas a essência da proposta de criação de uma nova Missão na foz do Cuiari permanece. Tanto o documento manuscrito quanto a sua versão datilografada são assinados apenas pelo Padre João Marchesi e não pelos dois outros padres integrantes da comissão. Dom José Domitrovics acrescenta no final do documento uma observação sobre a necessidade de autorização de Dom Pedro Massa, mas não encontramos nenhum documento sobre a resposta do bispo à proposta de implantação de um outro centro missionário no Içana.

8 Este aspecto do relatório datilografado do Padre João Marchesi — inexistente no relatório manuscrito — no qual descreve o precário estado material dos assentamentos, devido à intensa vida religiosa dos crentes, denota a diferença com relação à prática pastoral salesiana, vinculada à civilização do indígena através do trabalho, à formação de bons cidadãos para a pátria transformando-os em trabalhadores. [...] Não fumam,

passado, que eliminaria a necessidade da presença constante de qualquer agente externo de evangelização para mantê-los no “caminho reto e seguro das virtudes cristãs e da salvação eterna”.9

Temos uma certa autonomização no nível discursivo entre os interesses geopolíticos do Estado e os interesses da política missionária. Neste sentido, relativiza argumentos que buscavam apoio do Estado para eliminar a “invasão protestante” equiparando-a a uma ameaça estrangeira à integridade territorial do país. A perplexidade deste sacerdote carrega uma velada crítica aos métodos dispendiosos e improdutivos, que mobiliza uma ampla engrenagem institucional, se comparados aos resultados obtidos pela ação isolada de uma pessoa, Sophie Muller, munida de poucos recursos financeiros, materiais e humanos.

[...] Este mistério torna-se ainda mais tétrico, quando a gente toma em

consideração que os índios do Içana eram os mais viciados em embriagues, roubos e desordens. Os dabucuris do Içana eram famosos até ao baixo Rio Negro. Tudo isso fez uma mulher que não deu aos índios uma agulha sequer. Ora, nós também trabalhamos no Içana há bem seis anos, já gastamos centenas de contos, e agora a comissão que mandei para lá constatou que os homens da mais íntima confiança e confidência do Padre, que trabalharam meses e até anos com ele, são corifeus protestantes, que faziam escondidamente o culto protestante nos barracões da

não bebem, não trabalham, só tem uma roça para alimentação da família; o resto do tempo estão lendo e cantarolando. Os povoados e as casas são descuidados, serrados e sujos, a não ser o quarto de domir. [...]

Deste modo, o crente aproxima-se mais da figura do renunciador, de uma atitude de acentuado afastamento dos assuntos mundanos, do que o católico.

9 No final dos anos 60 a Missão do Içana volta a ser o principal foco de críticas ao modelo pastoral salesiano, baseadas na comparação com a eficaz ação missionária protestante. O diagnóstico apresentado, em termos resumidos, é o seguinte: ação limitada à sede, enquanto o pastor percorre os assentamentos indígenas organizando-os em pequenos núcleos populacionais e formando agentes pastorais indígenas para evangelizar na língua nativa, ministrar ensinamentos sanitários e agrícolas; a Missão recebe vastos recursos governamentais e de organizações internacionais, só beneficiando, contudo os índios que se dirigem à sede; desperdício de remédios pois não são distribuídos nos sítios pelo interior; os rituais e costumes condenados tanto pelo padre quanto pelo pastor persistem entre os indígenas católicos; a conversão protestante é sincera e profunda enquanto a católica é interessada e superficial. Este documento é uma transcrição de um relatório original sobre as Missões, não consta a autoria e a data (janeiro de 1968) foi acrescentada à margem do texto. Parece que é um documento mais extenso, uma avaliação interna, sobre a atividade missionária no Rio Negro, tendo sido transcrita a parte relativa à Missão do Içana.

Todavia, não devemos exagerar tal suspensão das certezas salesianas, pois a necessidade da nova Missão justifica-se para “[...] impedir que aquela gente se envenene, continuando a beber as águas pútridas dos erros protestantes” (Ibidem). A metodologia missionária rival tinha seus méritos, mas os fins últimos aos quais servia continuavam condenáveis e ainda motivavam o infatigável combate por parte dos sacerdotes católicos. Um setor do arsenal de certezas inabaláveis desta ordem eclesiástica foi posto em dúvida, transformado em objeto de debate em uma comunidade de argumentação restrita, formada pelos dirigentes das Missões. No ano seguinte, porém, 1956, o diretor da Missão de Assunção do Içana, Padre José Leão Schneider, investe pesadamente contra os “abusos e desordens cometidos pela seita americana”.10 A simbiose entre Catequese e Nacionalidade, Estado e Igreja, eixo da estrutura missionária hegemônica no Rio Negro, é acionada para reconquistar um território perdido pelo poder salesiano no Içana. As condições materiais precárias definidas um ano antes pelo Padre Domitrovics como desapego ao bem estar material, indício de uma vida completamente dedicada ao bem estar espiritual, torna-se fruto do fanatismo, concebido como deturpação mental, inoculado pelos pastores americanos11, produzindo nos Baniwa uma aversão ao trabalho, contrária tanto à sua condição indígena quanto à sua genuína brasilidade.

Os “Banivas” [sic, aspas do autor] são índios inteligentes e conhecidos como intrépidos trabalhadores na agricultura, abastecendo, nos anos passados, todo o comércio do alto rio Negro e os numerosos internatos das Missões

10 Graves desordens nas fronteiras do Brasil. Padre José Leão Schneider. Assunção do Içana, 27 de janeiro de 1956.

11 Este associação entre miséria e fanatismo é recorrente nos documentos em que aparecem juízos depreciativos sobre as más conseqüências da conversão ao protestantismo no rio Içana e seus afluentes. Outro evento freqüentemente citado é a profanação de símbolos católicos, principalmente o ato de pendurar medalhas com a imagem de santos em cães e gatos. Estes “fatos” presentes em vários relatos nos faz perguntar se foram testemunhados diretamente por todos os narradores ou foram transcritos de um imaginário católico do terror protestante. Isto não significa que não tenham ocorrido e tenham sido comunicados por alguém, mas sua facticidade foi sendo produzida pela enunciação repetida por autoridades católicas (salesianos) e governamentais (Relatório do Agente do SPI, Lino Alves de Oliveira, encaminhado ao Chefe da 1a I.R. do SPI, Alípio Edmundo Lage. Manaus, 05 de janeiro de 1954. Não está assinado.), cujas descrições são auto-evidentes, pois inseridas em discursos dotados de intocável credibilidade.

genuínos brasileiros, batizados na religião católica, ficaram vítimas de uma perniciosa seita protestante, americana, que transtornou a mentalidade dos mesmos, inoculando-lhes um louco fanatismo religioso, alheio a toda a brasilidade, afastando-os do trabalho produtivo e progressista [...] (Ibidem)

Se os índios antes eram conhecidos pelos seus vícios (embriagues, roubos e desordens), extirpados pela ação benigna de uma heróica missionária, agora os índios são descritos como ardorosos trabalhadores, valorosos colaboradores com o progresso econômico regional e a sustentação material das Missões. Sua contribuição como habilidosos extrativistas e produtores de farinha — fundamental para o comércio no Rio Negro — não é associada ao sistema do aviamento, cruel regime de submissão da força de trabalho baseado no endividamento, mecanismo de troca que perpassa toda uma rede hierarquizada de relações entre patrões e fregueses. Violentados pela influência maligna de uma “seita estrangeira”, são destituídos das virtudes características das suas tradições (simbolizadas aqui pelos seus dons artesanais) autóctones e da sua autêntica brasilidade, reforçadas pela catequese católica. A atuação missionária é concebida como um instrumento para estimular e desenvolver o espírito cívico, existente em estado embrionário na cultura indígena. Os pastores estrangeiros12 estariam minando o sucesso desta tarefa patriótica ao disseminar o “ódio e o desprezo à religião oficial do país”, trazendo caos social (inclusive propagando doenças como a tuberculose através das suas Conferências, onde se planejava o assassinato dos padres e se formava “um exército revolucionário de índios americanizados” para expulsar definitivamente os salesianos do rio Içana), profanando símbolos católicos e desrespeitando as autoridades nacionais, ameaçando assim a soberania nacional nestas longínquas fronteiras do território brasileiro.13

12 E muitos padres salesianos que atuavam no Rio Negro não eram estrangeiros, principalmente italianos? 13 Em Tunuí encontrei a bela imagem de Santo Antônio, padroeiro daquela povoação e do exército brasileiro,

coberto de imundices e de barro; mais acima desta povoação, no rio Cuiari, andavam os cachorros com colares de medalhas de Nossa Senhora no pescoço, fatos que não só encheram o coração dos missionários católicos de profunda mágoa e tristeza, mas revoltaram a alma íntima de qualquer Brasileiro. [...] Os índios seguidores desta seita se chamam, não brasileiros, mas americanos, tendo em pouca consideração as nossas autoridades [...] (Ibidem).

pela expansão protestante no rio Içana.14 Dom Pedro Massa alguns meses depois, em correspondência enviada ao Ministro das Relações Exteriores15, chega a afirmar não se tratar mais de uma questão religiosa, mas de soberania nacional. Alguns anos depois, 1960, o bispo solicita a expulsão dos “inimigos do Brasil” ao Conselho de Segurança Nacional, denunciando: os conflitos gerados entre católicos e crentes, as ameaças de invasão dos