• Nenhum resultado encontrado

O Alto Rio Negro é delimitado a oeste e norte pelas fronteiras com a Colômbia e Venezuela, à leste pelo curso superior do rio Negro e ao sul pelo rio Curicuriari. É habitada por vários grupos indígenas pertencentes às famílias lingüísticas. Aruak, Tukano e Maku, quais sejam: Tukano, Bará, Tuyuka, Desana, Arapaço, Kubeo, Pira-tapuia, Barasana, Werekena, Miriti-Tapuia, Wanana, Karapanã, Baniwa, Baré, Tariana, kuripaco, Maku- Hupda, Maku-Yuhupde (ISA, 1996). Totalizam mais de 30.000 indivíduos, distribuídos em 433 povoados (comunidades e sítios) e na cidade de São Gabriel da Cachoeira, sede do município de mesmo nome. Há 66 comunidades, localizadas na margem esquerda do alto rio Negro, que estão fora da Terra Indígena Alto Rio Negro, homologada em 1998.

Os povos falantes de línguas Tukano Oriental concentram-se nas bacias hidrográficas dos rios Vaupés (ou Caiari), Tiquié e Papuri1; enquanto os falantes de línguas Aruak (Baniwa, Kuripako, Werekena e Baré) localizam-se nas bacias dos rios Içana, Xié, Aiari2, Cubate e alto rio Negro3; com exceção dos Tariana. Estes residem predominantemente em comunidades e sítios no médio Vaupés, baixo Papuri e algumas famílias no alto Aiari. A população indígena da bacia do Vaupés (incluindo os rios Tiquié e Papuri, seus afluentes, e demais igarapés), distribuída em 200 povoados, é majoritariamente Tukano, cuja língua, junto com o português, é a mais falada. Alguns grupos étnicos não falam mais a sua língua de origem ou apenas algumas famílias ainda a preservam, enquanto que outros usam o tukano apenas como língua franca, como os Hupda, por exemplo. São predominantemente Baniwa e Kuripaco os 93 povoados dos rios Içana, Aiari e Cubate. Os assentamentos no rio Xié e no alto rio Negro são majoritariamente Werequena e Baré,

1 No interflúvio destes rios encontram-se os Hupda e Yuhupde, povos da família lingüística Maku.

2 No alto Aiari encontram-se também alguns Kubeo, povo da família lingüística Tukano. Entretanto, assim como os povos Aruak, a exogamia ocorre entre os conjuntos de sibs ou fratrias e não com outros grupos lingüísticos.

3 Utilizo letras maiúsculas para designar a região, que inclui as bacias hidrográficas dos principais afluentes, o Vaupés e o Içana, e letras minúsculas para designar apenas o alto curso do rio, à montante de São Gabriel da Cachoeira. Isto vale também para o “Rio Negro” como a região da bacia hidrográfica e “rio Negro” como o rio que cruza o noroeste Amazônico. Vide no final do capítulo o mapa do Alto e Médio Rio Negro.

Cucuí, na Terra Indígena Balaio, ainda em fase de demarcação. No Içana e no Aiari fala-se tanto o baniwa quanto o nheengatu ou língua geral, no Xié falam-se o werequena e o nheengatu, e no alto rio Negro fala-se proponderantemente o nheengatu. Em todos esses rios o português também é falado. Os Baré abandonaram sua língua de origem e atualmente falam o nheengatu e o português (Cabalzar Filho & Ricardo, 1998).

O Médio Rio Negro localiza-se à jusante da cidade de São Gabriel da Cachoeira, passando pela cidade de Santa Izabel do Rio Negro/AM, abrangendo os dois municípios de mesmo nome, até as bocas dos rios Jurubaxi e Padauiri, na margem esquerda e direita do rio Negro, respectivamente. Os grupos indígenas que habitam esta região pertencem a quatro famílias lingüísticas: Aruak, Tucano, Maku e Yanomami4. Quase a totalidade da população é indígena, e está distribuída em 299 povoados e na cidade de Santa Isabel do Rio Negro, sede municipal do município de mesmo nome. Um contingente expressivo desta população é oriundo do Alto Rio Negro (rios Içana, Vaupés e Xié). Segundo a antropóloga Ana Gita de Oliveira (1995), esta migração teria ocorrido para fugirem dos comerciantes brancos (colombianos e brasileiros) e dos missionários; por causa de disputas territoriais entre os povos Aruak e Tukano, e porque procuravam terras mais férteis e águas mais piscosas. As línguas mais faladas são o tukano, o nheengatu ou língua geral5 e o português. Os grupos étnicos majoritários são os Tukano, Baré e Baniwa. Os Maku constituem uma parcela mínima da população indígena e só existe um único grupo linguístico no Médio Rio Negro, os Dâw. Em 1998 foram homologadas as T.I. Rio Apaporis, T.I. Rio Téa, T.I. Médio Rio Negro I e T.I. Médio Rio Negro II. A extensão total delas é de 26.110 km2 ou 2.611.157 ha, que abrange uma população de 2.860 indígenas. Entretanto, não foram atendidas as demandas territoriais de muitas comunidades e sítios indígenas localizados nas circunvizinhanças da cidade de Santa Isabel.

Os povos Aruak e Tukano vivem nas margens dos grandes rios ou afluentes, em assentamentos permanentes que vão desde sítios familiares até comunidades compostas de

4 Os Yanomami vivem em aldeias na T.I. Yanomami, homologada em 1992. Uma parte desta terra indígena situa-se ao norte dos municípios de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos. A outra parte da sua extensão territorial está no estado de Roraima.

5 Forma adaptada do tupi-guarani, gramatizada e difundida pelos missionários para lidar com uma diversidade linguistica constituída por vários dialetos indígenas existentes no Rio Negro.

em pequenos assentamentos temporários, e são caçadores e coletores seminômades. Os padrões de descendência, casamento e residência dos Tukano e Aruak baseiam-se na patrilinearidade, na exogamia e na patrilocalidade, respectivamente. Contudo, a organização social Tukano estrutura-se pela exogamia entre grupos lingüísticos, enquanto entre os Aruak a exogamia regula as trocas entre as fratrias, conjuntos de sibs classificados como irmãos. Grupos lingüísticos e fratrias dividem-se em sibs, classificados hierarquicamente segundo a ordem de emergência dos seus ancestrais míticos. Já as sociedades Maku caracterizam-se pela endogamia (os cônjuges pertencem ao mesmo grupo lingüístico), associada à residência uxorilocal e à descendência colateral. Os Hupda e os Yuhupde, na bacia do Vaupés, desenvolvem relações de troca com os povos da família lingüística Tukano Oriental6, que os consideram “irmãos menores”, categoria que pressupõe obrigações de obediência e prestação de serviços.

O processo de ocupação do Rio Negro é marcado, desde fins do século XVII até meados do XVIII, pela transferência forçada de populações indígenas para perto dos centros coloniais (como Belém e São Luís) através das tropas de resgate, das guerras justas e dos descimentos. Militares e missionários (jesuítas e carmelitas) atuavam em prol dos interesses dos colonos em obter força de trabalho através da escravização indígena. O decréscimo do contingente populacional indígena decorreu não só por causa da escravização, mas também das epidemias trazidas pelos brancos. Durante a segunda metade do século XVIII intensificaram-se os descimentos e foram estabelecidos assentamentos coloniais às margens do rio Negro, que foram defendidos por fortalezas, onde eram formados os antigos aldeamentos missionários; como Airão, Moura, Carvoeiro, Tomar, Barcelos, São Gabriel da Cachoeira, Marabitanas, Cucuí. No século XIX, muitas comunidades dos rios Uaupés, Içana, e Xié foram despovoadas. A prática de captura de índios no alto rio Negro para explorar a sua força de trabalho nos seringais localizados à jusante contou com a colaboração dos missionários capuchinhos, carmelitas e franciscanos. O governo imperial apoiou a atuação missionária também para conter os movimentos

6 Caçam e trabalham nas suas roças para adquirir produtos cultivados e beneficiados, especialmente derivados de mandioca (farinha, beiju, tapioca, etc.), assim como bens “civilizados” (fumo, fósforo, roupas, rede, etc.).

forçado de população indígena do alto rio Negro, os regatões trouxeram a violência do trabalho compulsório aos seringais, piaçabais e balatais do “Baixo Rio Negro”, através do sistema de aviamento (Meira, 1991).

Todavia, a agência de contato mais importante na primeira metade do século XX foi a Missão Salesiana.8 A ação indigenista direta do Estado na região foi muito limitada frente à poderosa concorrência missionária. Nos anos 20 deste século, o Serviço de Proteção aos Índios foi instalado a partir dos objetivos geopolíticos de integração nacional desta área de fronteira. Suas tarefas eram controlar o tráfico de mão de obra indígena, os conflitos envolvendo as atividades de comerciantes colombianos no Brasil e monitoramento das atividades catequéticas. Por isso o foco de atuação escolhido foi o Vaupés e seu afluente Papuri. Os salesianos também incorporaram o discurso estatal de “civilização ou nacionalização das fronteiras” para legitimar a sua presença. Sendo assim, eles atribuíam para si as seguintes tarefas: saneamento rural, ensino elementar e agrícola, assim como melhorar as possibilidades de comunicação com o país. Nos anos 1930 e 1940 os funcionários do SPI denunciaram os missionários de serem cúmplices dos comerciantes colombianos ou de explorarem diretamente os índios. Nos anos 50, período do segundo ciclo da borracha, a ajudância de Yauaretê foi transferida para o Vaupés, o SPI assumiu o controle da produção indígena e toda a área ocupada pelos índios foi considerada limite internacional (Oliveira, 1995). Porém, os Salesianos confirmaram o seu monopólio de atuação indigenista, quando em meados desta década a estrutura indigenista oficial é consideravelmente reduzida.

Nos anos 60, mais especificamente após o Golpe Militar de 64, o Estado Brasileiro acionou uma outra estratégia de territorialização da soberania nacional no Rio Negro: cria a Reserva Florestal do Rio Negro, que cobria toda a extensão do município de São Gabriel da Cachoeira e constituía um enorme reservatório de recursos naturais para futura exploração econômica. Este expediente será reeditado e adaptado em outro contexto histórico: aquele de implantação do PCN e redução de áreas indígenas, nos anos 80. Ainda não era o tempo

7 Para uma análise antropológica do profetismo indígena no Alto Rio Negro neste período, vide: Wright, 1986; Wright & Hill, 1988 e Wright, 1992.

modelados pela noção de cidadania global. Este campo discursivo começou a se formar no fim dos anos 60, a nível mundial, e em meados dos anos 80, no Rio Negro, com o aumento das pressões sobre a terra e seus recursos naturais e com a autonomização e secularização do projeto etnopolítico indígena frente à tutela salesiana.

A construção da Perimetral Norte (BR-307), que atravessaria a reserva florestal, intensificou a presença de agências estatais e do contingente militar no Alto Rio Negro. A rede indigenista oficial recebeu um novo impulso com a reativação dos postos indígenas do antigo SPI pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI)9. A possibilidade de trabalhar na construção da rodovia e adquirir um lote a ser distribuído pelo INCRA ao longo da BR- 307, ocasionou um enorme fluxo de migrantes nordestinos (oriundos do Ceará e Maranhão). Os deslocamentos populacionais no Rio Negro também incluíram os índios, principalmente rumo a São Gabriel da Cachoeira, que se tornou um ponto regional de convergência das atividades econômicas e das possibilidades de acesso a serviços públicos.10

[...] Em junho de 1973 chegaram aqui as empresas para construir a grande

rodovia Perimetral Norte. Chegaram aqui as empresas... O 1o Batalhão de

Engenharia e Construção veio carregando todo o pessoal, militares e civis, Queiroz Galvão, uma empresa construtora, Empresa Técnica Industrial/EIT, DNER, LASA, e outras empresas, aqui encheu de gente, principalmente de homens. São Gabriel não suportou, estufou. A região enfrentou e viu a mudança no comportamento social. Então as meninas daqui não queriam nada com os jovens indígenas, só com os de fora. Foi horrível! Foi quando as jovens começaram a engravidar pra cá e pra lá. [...] (Pedro Machado, entrevista. Op. cit.).

9 Substituiu o SPI, quando este foi extinto em 1967.

10 A migração de famílias indígenas das comunidades e sítios para a sede municipal ocorreu também por causa do fechamento dos internatos salesianos a partir do final dos anos 70. Estabelecer moradia em São Gabriel tornou-se necessário a fim de viabilizar a continuidade dos estudos para os filhos.

construção, além de unidades técnicas (engenharia) das forças armadas, e programas de colonização agrária. Este tipo de intervenção caracteriza-se por um alto grau de autoritarismo, pois ignora as necessidades e demandas das populações locais. Ao ser planejado segundo objetivos estranhos e concepções arbitrárias sobre os benefícios gerados, não considera os possíveis efeitos nocivos provocados. Era uma grande operação de ocupação que unia as preocupações com o desenvolvimento e a segurança nacional, características dos projetos da ditadura militar para a Amazônia. Este foi um primeiro momento de militarização do Alto Rio Negro, isto é, de imposição de um controle direto do Estado sobre o espaço social e geográfico regional, concorrente ao controle eclesiástico ainda predominante. Não alcançou o sucesso esperado, a rodovia não foi concluída, mas proporcionou algumas novas oportunidades de emprego e geração de renda. Tais ocupações não remetem a atividades que produzam benefícios para as comunidades indígenas, mas a uma inserção individualizada nos fluxos materiais e simbólicos da modernidade.

Lembremos que a tutela eclesiástica equiparou a ancestralidade indígena como um estágio humano a ultrapassar (como atraso, selvageria e miséria) e no qual os índios estavam encarcerados devido à sua cultura inerentemente pecaminosa. De certa maneira os salesianos incentivaram a demanda de bens materiais e simbólicos da modernidade, dificultando como já vimos a sua proposta pastoral posterior baseada na idéia de inculturação. Cabe salientar no depoimento acima o destaque à chegada maciça de estranhos, principalmente do sexo masculino, na cidade, provocando escassez na oferta de potenciais parceiras conjugais devido a mudanças no “comportamento social” vigente. Enquanto para os homens indígenas a perspectiva de ascensão social naquele contexto interétnico estava no aumento da oferta de possibilidades de obtenção de renda monetária para as mulheres era o aumento na oferta de futuros cônjuges, surgimento de um novo grupo de afins potenciais. São duas estratégias distintas de inserção no mundo civilizado. Para as mulheres o casamento sempre significou a entrada em um universo de alteridade (relativa) devido à combinação entre exogamia e patrilocalidade.

A biografia de personagens importantes da história do movimento indígena no Rio Negro remete a tais deslocamentos em busca de ascensão social ou de uma qualidade

FOIRN (1990-1996), trabalhou entre 1974 e 1978 na construção da Perimetral Norte. Ele já tinha experiência no ramo da construção civil, pois participou da construção da estrada Manaus-Caracaraí, que atravessa as terras dos Waimiri-Atroari, atualmente já regularizada. Era uma obra também incluída nos planos governamentais de integração nacional da Amazônia e executada pelo 6o Batalhão de Engenharia e Construção (BEC). Eram os anos do governo Médici e do milagre econômico no qual a FUNAI, subordinada ao Ministério do Interior, estava encarregada de liberar terras para a implantação dos projetos desenvolvimentistas. Os povos indígenas representavam um empecilho à “marcha inexorável do progresso naqueles confins atrasados do país”. Logo, o cenário interétnico constituído em torno da implantação desta rodovia no Baixo Rio Negro era extremamente conflituoso.

[...] Aí eu fui para a linha de frente, fui anotar a produção na linha de frente

onde os tratores começam a derrubar paus para a fotografia entrar e planejar a estrada. Por que era quente, nós estávamos muito próximos da região dos

[Waimiri] Atroari, no quilômetro 140, faltava 60 Km para a serra dos índios lá.

Ninguém queria ir para lá porque os índios estavam ameaçando [...] [grifos SCP]

(Brás de Oliveira França, entrevista. São Gabriel da Cachoeira, 30/10/2000).

Migrou no final dos anos 60 para Manaus, onde se dedicou a ocupações mal remuneradas até conseguir o emprego no 6o BEC. Seu grau de escolaridade (ginásio incompleto) constituiu um recurso que o colocou em situação vantajosa no processo de recrutamento de trabalhadores. O cargo ao qual foi admitido (anotador de campo) exigia um certo grau de instrução. Aprendeu a dirigir trator e a função de operador de máquinas. Em 1974 pediu demissão e retornou a São Gabriel da Cachoeira, trabalhando na construção da Perimetral Norte. Em 1978, Brás França decidiu continuar sua aventura como operário anônimo das grandes obras de engenharia patrocinadas pelo Estado brasileiro.

11 Como veremos adiante, no caso da migração para Barcelos, a cidade como principal ícone da modernidade será re-significada no imaginário indígena através de uma linguagem mítica, vinculando-a ao mundo dos encantados e ao universo do xamanismo.

Itaipu Binacional no Paraná e da estrada Manaus-Porto Velho em Rondônia, entre outras obras. Ao perceber que não conseguia a autonomia tão desejada, continuava empregado

dos outros, sendo mandado, voltou para sua comunidade no rio Curicuriari, afluente do rio

Negro. O jovem Brás saiu da sua região para fugir da dependência pessoal aos patrões, na qual estavam presos os extrativistas da seringa, piaçava, cipó, sorva... sob o regime de aviamento. Seu pai operava como intermediário (um pequeno patrão) entre o patrão e os extrativistas, arregimentando a mão de obra necessária para a “empresa”.12

Pedro Machado também migrou ainda jovem de Pari-Cachoeira para a cidade de São Gabriel da Cachoeira nesta época com o intuito de mudar de vida, não agüentava mais a rotina extenuante de trabalho na roça, pescando, fazendo farinha e beiju. Considerava limitada a perspectiva de futuro daquele modo de existência identificado como indígena. Pegava seu facão, pegava sua farinha para merendar no trabalho, e saia bem cedo, para longe de casa, depois do aeroporto. Levava seu irmão pequeno, Carlos, que mora atualmente no Rio de Janeiro, para acompanhá-lo. Roçava, roçava... cansado, suado, sentava-se e pensava:

Esta vai ser sua vida, Pedro, se você não estudar. O resto da sua vida vai pegar facão, machado, pegar linha de pesca para poder pegar peixe para comer, e trabalhar para poder ter farinha e beiju. Que a vida do índio é isso mesmo. Será que eu vou agüentar? Aí veio na minha cabeça: não, eu vou estudar, eu tenho que estudar, custe o que custar [grifos SCP] (Pedro Machado, entrevista. Op. cit.).

Este jovem Tukano escolheu o estudo como o melhor meio de enfrentar o contexto interétnico em mudança no Alto Rio Negro. Conhecer o “mundo dos brancos” para melhor

12 Brás França nasceu em 1948 na comunidade Curicuriari, no rio Curicuriari. Seu pai é Baré e sua mãe é Desana. Seu bisavô era natural de Marabitanas, alto rio Negro, e desceu para o rio Curicuriari. Brás já faz parte da terceira geração que mora no rio Curicuriari. Seu pai poderia ser enquadrado na categoria do “empreiteiro”, que é aquele que recruta mão de obra tomando crédito em mercadorias de um patrão tanto para si, que também é extrator, quanto para aqueles que trabalham com ele. O empreiteiro arregimenta trabalhadores no povoado onde mora e em povoados próximos, dentro do seu círculo de parentes e vizinhos (Oliveira, 1981). Adélia de Oliveira (1981) o inclui no patamar mais baixo da cadeia vertical de patrões, mas cabe salientar que é um patrão singular, pois também é trabalhador e serve como intermediário entre o aviador e os aviados.

que, apesar de muitas ativistas indígenas denunciarem a política missionária etnocida posta em prática pelos salesianos, reconhecem também a importância do ensino recebido — com destaque para o aprendizado da língua portuguesa — nas suas trajetórias e formação como lideranças. Em 1960, Pedro Machado ingressou com oito anos de idade no internato salesiano. Não sabia falar o português, não sabia nem se era índio. Só falava tukano, para ele todo mundo era tukano, todo mundo era igual a ele, o mundo era simples como o que ele vivia. Quando viu o padre... padre era diferente, falava língua diferente, comia comida diferente, aí começou a verificar que também ele era diferente. Entrava em um universo completamente estranho, no qual começava a ter consciência — ainda não reflexiva — das fronteiras étnicas que delimitam a indianidade através de dois modos fundamentais de comunicação e reciprocidade (o código lingüístico e o alimentar). Esta foi sua primeira experiência em que suas certezas básicas foram abaladas de uma maneira imediata. Depois elas seriam através da mediação do ensino salesiano, temperado com atos de violação e repressão culturais. Concluiu o primário no internato de Pari-Cachoeira em 1965. Na época este era o mais alto nível de escolarização a ser atingido.

[...] Por isso que foi esse atraso todo, porque o governo deixou nas mãos da

igreja. O indígena estudava até a 5a série e depois voltava para a sua aldeia, para fazer o quê? Para pescar, caçar, fazer sua roça... [...] Então nesse ponto a igreja destruiu, não ajudou a destruir, destruiu; os padres brancos [...] (Pedro Machado,

entrevista. Op. cit.).

A perspectiva de continuar os estudos era tornar-se padre. No final de 1965 Pedro Machado foi escolhido pelos salesianos e viajou para Manaus com este objetivo: “[...] Pela primeira vez eu estava indo para longe, porque Manaus é longe, estava indo para a aspirantada, São Domingos Sávio [...]” Não foi aprovado no processo de admissão e voltou a Pari-Cachoeira em dezembro de 1966. Se não fosse a matemática talvez tivesse se tornado padre. Todavia, não foi só isso, pois poderia ter retornado para fazer a recuperação, mas Pedro não era suficientemente submisso às autoridades eclesiásticas, angariando

Machado, op. cit.).

Em 1968 foi para a cidade de São Gabriel da Cachoeira estudar no ginásio recém