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2. O AFETO COMO ELEMENTO DE DIREITO

2.1 O afeto como valor jurídico e as implicações do seu “possível”

Enfim, o que se compreende por afeto? Infinita seria a possibilidade de escrever sobre o significado e a importância do afeto para o desenvolvimento da vida humana. No entanto, far- se-á o contraponto deste pensamento ao se falar que moralmente é, em determinadas situações, incompatível com a legislação própria do mundo do direito pensar em afeto.

De fato não há como imputar à alguém a condição de amar ou ter afeto pelo seu semelhante ou por seus “parentes”, sejam eles biológicos ou socioafetivos. No entanto, também é inegável que o afeto como “valor”, seja ele jurídico ou não, perpassa as relações sociais e encontra justificativa no ordenamento jurídico, em especial no princípio da dignidade humana.

Assim, pode-se dizer que o afeto transforma-se em regra jurídica e alcança o ordenamento, no exato momento em que as ações que envolvem, especialmente, “cuidado”, carinho, atenção para com outrem, são invocadas quando batem à porta do sistema judiciário.

Nesta direção, a Constituição Federal de 1988 traz de forma expressa em seu conteúdo a proteção a família (pais, filhos inclusive os adotivos), ou seja, o afeto tem fundamento jurídico que se expressa pelos elos afetivos estabelecidos pela comunidade chamada família.

Dois fatores importantes e já considerados pelo Direito de Família nos anos de 1988, numa clara demonstração de adaptação evolutiva, precisam ser lembrados: a criação da Lei

6.515/1977 que regulamentou o divórcio no Brasil e o reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento.

Ademais, já se reconheciam em algumas situações as “uniões de fato”, por meio da concessão do direito de indenizar à concubina quando da “morte do concubino3”, bem como a inclusão da dependência econômica entre ambos, principalmente para questões da previdência e de fatores tributários e ainda, a inclusão do sobrenome do concubino.

Porém, esta realidade modificou-se com a Constituição Federal de 1988, quando fica definido pelo ordenamento que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” discorrendo também sobre outros arranjos e configurações familiares, igualmente merecedores de garantias e proteção.

O reconhecimento do afeto como valor básico para o direito de família, pela Constituição Federal de 1988, consagrou o início de uma nova era para o direito brasileiro. A inserção da cláusula que impossibilitava a segregação ou exclusão de toda e qualquer instituição que possuísse as condições e caraterísticas afetivas, estáveis e visíveis de configurações familiares, transformou o entendimento da norma e sua aplicação em ferramenta valorativa para a constituição do humano.

Como exemplos clássicos das transformações com ênfase no afeto em âmbito familiar se coloca: o reconhecimento das novas configurações de família e da própria multiparentalidade (parentalidade socioafetiva – bipaternidade4 e bimaternidade5, união homoafetiva, família monoparental) como instituição familiar, a perda dos efeitos do regime de bens em face da separação de fato, indenização por abandono ou dor moral e afetiva, a possibilidade de adoção por irmãos, entre outros.

Dentre os diversos subtemas que abarcam os temas “Novas Configurações de Família” e “Afetividade” pelo direito, pode-se frisar que tanto a doutrina quanto a jurisprudência citam a multiparentalidade como enfoque geral. Há, porém, que se considerar o termo

3 (Decreto nº 2.681/1912). Entende-se por concubina(o), aquela(e) que vive maritalmente com outrem sem estar casada(o), conforme art. 57 da lei nº 6.015/1973.

4 (dois pais do mesmo sexo apenas) 5 (duas mãe do mesmo sexo apenas)

multiparentalidade sob dois aspectos: o geral (duas mães ou dois pais) e outro específico (três ou mais pessoas como genitores). A mais comum e já pacificada pela jurisprudência é a multiparentalidade ampla que se caracteriza pela união de casais de mesmo sexo.

Observa-se a seguir o fragmento do relatório do Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, com referência ao afeto como fundamento da “família moderna”:

(...)A DIMENSÃO CONSTITUCIONAL DO AFETO COMO UM DOS

FUNDAMENTOS DA FAMÍLIA MODERNA. - O reconhecimento do afeto como valor jurídico impregnado de natureza constitucional: um novo paradigma que informa e inspira a formulação do próprio conceito de família. Doutrina.

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E BUSCA DA FELICIDADE. - O postulado da dignidade da pessoa humana, que representa - considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) - significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País, traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. Doutrina. - O princípio constitucional da busca da felicidade, que decorre, por implicitude, do núcleo de que se irradia o postulado da dignidade da pessoa humana, assume papel de extremo relevo no processo de afirmação, gozo e expansão dos direitos fundamentais, qualificando-se, em função de sua própria teleologia, como fator de neutralização de práticas ou de omissões lesivas cuja ocorrência possa comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar direitos e franquias individuais. - Assiste, por isso mesmo, a todos, sem qualquer exclusão, o direito à busca da felicidade, verdadeiro postulado constitucional implícito, que se qualifica como expressão de uma ideia-força que deriva do princípio da essencial dignidade da pessoa humana. Precedentes do Supremo Tribunal Federal e da Suprema Corte americana. Positivação desse princípio no plano do direito comparado. (STF; RE 477554 AgR; Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma; julgado em 16.08.2011).

Oportuno aqui, reforçar que ao se discutir afetividade, sobretudo, ao se referir aos direitos de crianças e adolescentes o que encaminha a resolução do problema é, definitivamente, a utilização dos princípios basilares da Constituição, como: princípio da dignidade humana; da busca pela felicidade; do melhor interesse da criança e do adolescente. Neste sentido, analisa- se o posicionamento do juiz Fernando Nóbrega da Silva, Titular da 2ª Vara de Família da Comarca de Rio Branco/AC, ao reconhecer mais um caso de multiparentalidade no Brasil.

Posicionamento do Magistrado ao sentenciar,

Não havendo inexorável vinculação entre a função parental e a ascendência genética, mas concretizando-se a paternidade atividade voltada à realização plena da criança e do adolescente, não se pode conceber como legítima a recusa da multiparentalidade. Basta ver que a família contemporânea é mosaico e, portanto, baseia-se na adoção de um explícito poliformismo, em que arranjos pluriparentais, plurívocos, multifacetados, pluralísticos, são igualmente aptos a constituir um núcleo familiar, merecendo “especial proteção do estado”, como resulta do próprio art. 226, da CF/88. (SILVA, apud CASSETTARI, 2015, p. 202)

Ao julgar o caso, o magistrado, embora o Ministério público tenha emitido parecer contrário a pretensão da parte autora, acolheu o pedido que objetivava a declaração de paternidade biológica, com inclusão de registro do nome, bem como dos ascendentes paternos na certidão de nascimento da criança, mantendo a relação de pai e filha já contida no documento registral.

Contudo, a própria Constituição da República de 1988 propulsiona o afeto como instrumento essencial das instituições e das relações familiares e, paralelamente, rompe com as velhas e ultrapassadas formas patriarcais de ordenação dos modelos seculares de família, ou seja, o reconhecimento de se ter mais de uma mãe e/ou mais de um pai na certidão, torna-se uma possível realidade e uma histórica conquista para a sociedade brasileira.

Elisa Costa Cruz6 (2017), Defensora Pública do estado do Rio de Janeiro, vem ratificar

o que estuda-se no presente trabalho.

Esse foi o caminho percorrido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ao julgar o Recurso Extraordinário (nº 898.060) e reconhecer que o “princípio da paternidade responsável impõe que, tanto vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos, quanto aqueles originados da ascendência biológica, devem ser acolhidos pela legislação”.

Em seu voto, destacou o relator, Ministro Luiz Fux, que a “omissão do legislador

brasileiro quanto ao reconhecimento dos mais diversos arranjos familiares não pode servir de escusa para a negativa de proteção a situações de pluriparentalidade. É imperioso o reconhecimento, para todos os fins de direito, dos

vínculos parentais de origem afetiva e biológica, a fim de prover a mais completa e adequada tutela aos sujeitos envolvidos”. (grifo nosso).

Parafraseando Elisa Costa Cruz (2017), vive-se frente ao reconhecimento jurídico de que não aceitamos mais amores vazios e relações formais. O afeto, seu valor jurídico e suas implicações são caminhos sem volta que se conquistaram. Porém, o desejo da contemporaneidade é o de descobrir o “tamanho do avanço” e, contudo, revelar até onde podemos ir.

6 Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro, Doutoranda e Mestre em Direito Civil pela UERJ, Vice coordenadora da Comissão da Infância da ANADEP.