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2. O AFETO COMO ELEMENTO DE DIREITO

2.3 Os Direitos Fundamentais e a técnica de Reprodução Assistida Heteróloga

Pretende-se aqui, explanar sobre a relação existente entre a reprodução assistida heteróloga e os direitos fundamentais. Desta forma é imperioso trabalhar o tema da reprodução.

Como já se falou anteriormente, a vontade de procriar, a possibilidade de gerar um filho, parece ser inerente ao ser humano, e concretiza uma das funções do humano que é a garantia da manutenção da espécie humana. Essa parece ser a regra, e não conseguir gerar filhos, espontaneamente, apresenta-se como um problema para muitos casais ou indivíduos. Dessa forma, trabalhar com os casos de infertilidade passou a ser considerada atribuição do Estado, conforme estabelecido pelo artigo 226, § 7º, da Constituição Federal, in verbis:

Art. 226 [...] § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

Percebe-se no artigo citado, a importante e necessária atenção que deve ser dispensada ao Princípio da Dignidade Humana, que em seu bojo traz inserido as técnicas de reprodução assistida, servindo como princípio regulador e norteador das ações e práticas da área de planejamento familiar. O que deseja-se é que o reconhecimento dos “valores” individuais da pessoa, acabe por fortalecer os “direitos” específicos de cada ser humano, proporcionando-o uma decência e um valor especial, de modo que cada homem não seja visto como um meio, mas sim, um fim em si mesmo.

Se o ordenamento jurídico coloca o Princípio da Dignidade Humana como fundamento norteador da Carta Magna do país, passa-se a entender o Estado como elemento existente em razão de seus cidadãos ao invés de estarem eles em função da figura estatal. Graças ao avanço da biotecnologia e da garantia de acesso e assistência do Estado, homens e mulheres têm seus sonhos de maternidade ou paternidade passíveis de realização, pela possibilidade de verem seus direitos reprodutivos reconhecidos.

Assim, mulheres e homens estéreis, casais homoafetivos, ou ainda mulheres decididas a viver a experiência da produção independente, passam a se utilizar das técnicas de reprodução assistida. Porém, o reconhecimento e a utilização dessas técnicas de reprodução surgem inúmeros debates e questionamentos, tanto de cunho religioso, moral e psicológica, quanto de ordem científica e jurídica.

É neste momento que começa a se discutir o caráter polêmico que o emprego, em especial, da técnica de reprodução assistida heteróloga possui, daí a importância de buscar nos Direitos Fundamentais (ordenamento jurídico) e principalmente nos princípios, as formas de sustentabilidade que garantam a sua utilização.

Importa retomar aqui algumas ideias a respeito das definições e conceitos em torno do estudo da filiação, principalmente enquanto relação de dependência e de parentesco dos filhos para com os pais, vínculo este que absorve a concepção de maternidade e paternidade. Corrobora com a presente ideia Diniz (2006, p. 436) ao discorrer sobre filiação

O vínculo existente entre pais e filhos em linha reta de 1º grau entre uma pessoa e aqueles que lhe deram a vida, podendo ainda ser uma relação socioafetiva entre pai adotivo e institucional e filho adotado ou advindo de inseminação artificial heteróloga.

Somente por volta da metade do século passado é que o ordenamento brasileiro, seguindo tendências mundiais, passa a admitir os direitos de família e os direitos sucessórios dos filhos havidos fora do casamento em relações conhecidas juridicamente como extramatrimoniais. Observa-se mais uma vez a Constituição Federal de 1988: “Art. 227 [...], § 6º “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.

A legislação em seu aspecto contemporâneo reconhece que a filiação pode derivar das mais diversas fontes, podendo descender dos vínculos consanguíneos, do ato da adoção, ou ainda, e imperial aqui, do reconhecimento do puro sentimento de afeição que é inerente ao parentesco que resulta das filiações obtidas por meio das técnicas de reprodução medicamente assistida. Assim, analisar-se-á o artigo 1.957 do Código Civil.

Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;

II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;

III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;

V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. (grifo nosso)

Constata-se então, que a maternidade/paternidade que deriva da reprodução assistida heteróloga pode ser analisada sob dois grandes aspectos. De acordo com a ideia de Cassettari (2015), um deles é o método da presunção, presente no inciso V do referido artigo, uma vez que tem-se presente os elementos fundamentais (o vínculo conjugal, a vontade, e a técnica de reprodução assistida heteróloga realizada com sucesso) que caracteriza a paternidade e consequentemente a filiação, dadas como certas, portanto insuspeito, ou seja, não sujeito à contestação pelo próprio cônjuge.

O outro aspecto diz respeito às questões da socioafetividade, nas quais não está presente a prerrogativa da presunção, mas que tem origem na vontade e na impossibilidade de se ter filhos. Estes, pais socioafetivos, possuem também garantidos, todos os direitos e deveres decorrentes da maternidade/paternidade, uma vez que não “deverão” ser considerados como pais “verdadeiros” os doadores do material genético que possibilitou a geração do filho. Há que se considerar que os pais são aqueles que “desejaram” o filho, e se propuseram a lhe oferecer uma vida em família, preocupados com seu bem-estar físico, psíquico e social.

Ante tais fundamentações, observa-se a posição dos tribunais, com destaque para o julgamento do Agravo em Recurso Especial nº 720.847, ano de 2015:

Trata-se de agravo de decisão que inadmitiu recurso especial fundado no art. 105, III, "a" e "c", da Constituição Federal, interposto contra v. acórdão do Eg. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, assim ementado (e-STJ, fls. 379/380): "PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE

PATERNIDADE C/C ANULAÇÃO DE REGISTRO CIVIL, PETIÇÃO DE HERANÇA E NULIDADE DE DOAÇÕES. CONTRARRAZÕES. PRELIMINAR.

INTEMPESTIVIDADE DO RECURSO. AFASTADA. AGRAVO RETIDO Pois bem, o Código Civil de 2002 reconheceu, em seu art. 1.593, outras espécies de

parentesco civil, além daquela decorrente da adoção, destacando-se: (i) o vínculo parental proveniente das técnicas de reprodução assistida heteróloga, relativamente ao pai ou a mãe, que não contribuiu com seu material genético; (ii) a maternidade/paternidade sócio afetiva, fundada na posse do estado de filho. Neste sentido, os Enunciados 103 e 256 do CEJ: "O Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade sócio afetiva, fundada na posse do estado de filho". "A posse do estado de filho (parentalidade sócio afetiva) constitui modalidade de parentesco civil". A discussão que se coloca na hipótese, cinge-se em determinar se a paternidade biológica se sobrepõe a paternidade socioafetiva.

Luiz Edson Fachin leciona que "a verdadeira paternidade pode também não se explicar apenas na autoria genética da descendência. Pai também é aquele que se revela no comportamento cotidiano, de forma sólida e duradoura, capaz de estreitar os laços de paternidade numa relação psico-afetiva, aquele, enfim, que além de poder lhe emprestar seu nome de família, o trata verdadeiramente como seu filho perante o ambiente social" (FACHIN, Luiz Edson.

Estabelecimento da Filiação e Paternidade Presumida. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1992).

Em interessante jurisprudência, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a possibilidade da paternidade socioafetiva prevalecer sobre a biológica, consignando que:

"Esse amplo reconhecimento da paternidade/maternidade socioafetiva pela doutrina e jurisprudência, bem como a possibilidade dela, inclusive, prevalecer sobre a verdade biológica, em algumas hipóteses, trata-se de uma quebra de paradigmas, haja vista que o direito brasileiro, notadamente em razão do

desenvolvimento tecnológico, que permitiu a realização de exames genéticos precisos acerca do vínculo biológico (DNA), tinha a tendência de sempre priorizar a genética. Um exemplo disso é a própria possibilidade de rescisão da sentença transitada em julgado, quando lhe sobrevém prova que definitivamente exclui a paternidade" (STJ. REsp. 1401719/MG. Rel. Min. Nancy Andrighi).

Desse modo, o estado de filiação desligou-se da verdade genética, relativizando- se o papel fundador da origem biológica, valorizando-se, cada vez mais, a afetividade existente entre as partes, no intuito de, também, manter a estabilidade da família, que cumpre a sua função social. (BERENICE, Maria Dias.

Manual de Direito das Famílias, 8ª Edição. Revista dos Tribunais: 2011). Nas palavras de Cristiano Chaves Farias, funda-se, portanto, a família pós-moderna em

sua feição jurídica e sociológica, no afeto, na ética, na solidariedade recíproca entre os seus membros e na preservação da dignidade deles. Estes são os referenciais da família contemporânea. (FARIAS, Cristiano Chaves. Curso de

Direito Civil Direito das Famílias Volume 6. 5ª Edição, Editora JusPodivm: 2013). Por essa razão é que o direito do reconhecimento do estado de filiação visa tutelar a personalidade humana, como elemento fundamental na formação da identidade do ser humano.

Na hipótese, a busca da verdade biológica, além de desestabilizar a família consagrada há mais de 27 anos, não atingiria o fim a que propõe que é justamente a construção da identidade da pessoa humana e definição de sua personalidade.

O reconhecimento da filiação de I.P.S. em face de J.F.C. teria, apenas, reflexos patrimoniais e em benefício exclusivo da sua genitora, na qualidade de herdeira necessária, e, em contrapartida, o pai registral seria prejudicado, uma vez que perderia a qualidade de herdeiro necessário do filho. (...)

Com o caso em tela, percebe-se o complexo e conflituoso universo em que está inserida a reprodução assistida heteróloga. É perceptível a grandeza dos conflitos jurídicos gerados, não só da questão da filiação, mas, sobretudo, do Direito à Vida. Contudo, na contramão deste direito, nasce o direito ao anonimato do doador de sêmen ou de óvulo, e tal situação poderá ser discutida com base nos direitos fundamentais da pessoa humana.

Diante da possibilidade desse confronto é importante realizar um estudo mais aproximado dos direitos fundamentais. Estes, são direitos que legitimam a dignidade e a liberdade da vida humana. Estão estruturados em uma espécie de reunião de direitos e garantias do indivíduo, para que se consiga “garantir” condições de vida digna, com possibilidades plenas de crescimento e desenvolvimento da personalidade humana, sobretudo, livre da ação estatal perversa.

Seguindo o raciocínio de Patrícia Diógenes Melo (2017) e parafraseando-a, importa saber que os direitos que asseguram a dignidade da pessoa humana, sofreram transformações juntamente com as mudanças e necessidades da sociedade. Atualmente esses direitos estão dispostos em quatro “gerações”, embora a doutrina defenda que o correto seria o emprego da terminologia “dimensões”, os quais tutelam os respectivos bens: Direitos de primeira geração – (civis e políticos) ligados ao princípio de liberdade; Direitos de segunda geração – (econômicos, sociais e culturais) relacionados ao princípio da igualdade; Direitos de terceira geração – (titularidade coletiva) conexo ao princípio da solidariedade.; Direitos de quarta geração – (democracia, pluralismo e informação) orientado pelo princípio da dignidade da pessoa humana.

A saber, dispõe a CF/88 em seu artigo 1º, inciso III:

Art. 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em estado democrático de Direito e tem como fundamentos:[...], III - a dignidade da pessoa humana. (grifo nosso).

Quanto aos direitos de quarta geração, o ordenamento jurídico, apresenta-se insuficiente, com dificuldades em garantir, defender ou assegurar os conflitos próprios das pessoas que buscam a reprodução assistida heteróloga como procedimentos biotecnológicos, para a realização do planejamento familiar como livre decisão do casal.

Adentra-se agora numa seara ainda mais delicada, a de navegar pelo território do direito ao conhecimento da origem genética em total oposição ao direito à intimidade do doador de material genético. É preciso entender que se trata de direitos fundamentais da personalidade previstos na legislação pátria, fundamentais pela sua característica humanista e pela presença no ordenamento jurídico e de personalidade devido a subjetividade de cada indivíduo.

Apresenta-se neste momento o direito à intimidade previsto na Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º, inciso X: “Art. 5º [...], X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. Evidente aqui as garantias e direitos atinentes ao indivíduo doador de gametas, embora exista também a Resolução nº 1.957 do Conselho Federal de medicina, que ao dispor sobre a doação de material genético, defende a ideia de que não deve haver o reconhecimento das identidades envolvidas no processo de reprodução assistida heteróloga, seja na pessoa do doador ou do receptor.

Resta evidente, que existe no texto constitucional um confronto entre direitos fundamentais. A questão é: qual o direito a ser garantido? O anonimato do doador (princípio da intimidade) ou reconhecimento da origem genética (princípio da dignidade da pessoa humana)?

Esse conflito já é esposado pela jurisprudência:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. PEDIDO DE REGISTRO DE NASCIMENTO DEDUZIDO POR CASAL HOMOAFETIVO, QUE CONCEBEU O BEBÊ POR MÉTODO DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA HETERÓLOGA, COM UTILIZAÇÃO DE GAMETA DE DOADOR ANÔNIMO. DECISÃO QUE ORDENOU A CITAÇÃO DO LABORATÓRIO RESPONSÁVEL PELA INSEMINAÇÃO E DO DOADOR ANÔNIMO, BEM COMO NOMEOU CURADOR ESPECIAL À INFANTE. DESNECESSÁRIO TUMULTO PROCESSUAL. INEXISTÊNCIA DE LIDE OU PRETENSÃO RESISTIDA. SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA QUE IMPÕE O REGISTRO PARA CONFERIR-LHE O STATUS QUE JÁ DESFRUTA DE FILHA DO CASAL AGRAVANTE, PODENDO OSTENTAR O NOME DA FAMÍLIA QUE LHE CONCEBEU. 1. Por tratar-se de um procedimento de jurisdição voluntária, onde sequer há lide, promover a citação do laboratório e do doador anônimo de sêmen, bem como nomear curador especial à menor, significaria gerar um desnecessário tumulto processual, por estabelecer um contencioso inexistente e absolutamente desarrazoado. 2. Quebrar o anonimato sobre a pessoa

do doador anônimo, ao fim e ao cabo, inviabilizaria a utilização da própria técnica de inseminação, pela falta de interessados. É corolário lógico da doação anônima o fato de que quem doa não deseja ser identificado e nem deseja ser responsabilizado pela concepção havida a partir de seu gameta e pela criança gerada. Por outro lado, certo é que o desejo do doador anônimo de não ser

identificado se contrapõe ao direito indisponível e imprescritível de reconhecimento do estado de filiação, previsto no art. 22 do ECA. Todavia, trata-se de direito personalíssimo, que somente pode ser exercido por quem pretende investigar sua

ancestralidade - e não por terceiros ou por atuação judicial de ofício. 3. Sendo

oportunizado à menor o exercício do seu direito personalíssimo de conhecer sua ancestralidade biológica mediante a manutenção das informações do doador junto à clínica responsável pela geração, por exigência de normas do Conselho Federal de Medicina e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, não há

motivos para determinar a citação do laboratório e do doador anônimo para integrar o feito, tampouco para nomear curador especial à menina no momento, pois somente a ela cabe a decisão de investigar sua paternidade. 4. O elemento social e afetivo da

parentalidade sobressai-se em casos como o dos autos, em que o nascimento da menor decorreu de um projeto parental amplo, que teve início com uma motivação emocional do casal postulante e foi concretizado por meio de técnicas de reprodução assistida heteróloga. Nesse contexto, à luz do interesse superior da menor, princípio consagrado no art. 100, inciso IV, do ECA, impõe-se o registro de nascimento para conferir-lhe o reconhecimento jurídico do status que já desfruta de filha do casal agravante, podendo ostentar o nome da família que a concebeu. DERAM PROVIMENTO. UNÂNIME. (Agravo de Instrumento Nº

70052132370, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 04/04/2013) (grifo nosso)

Trata-se de Agravo em Recurso Especial, interposto pelo CONSELHO REGIONAL

DE MEDICINA DO ESTADO DE SÃO PAULO, em 21/03/2016, contra decisão do

Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que inadmitiu o Recurso Especial interposto contra acórdão assim ementado: "CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. REPRODUÇÃO ASSISTIDA - FERTILIZAÇÃO IN VITRO - ILEGITIMIDADE ATIVA E PASSIVA AD CAUSAM - INOCORRÊNCIA - DOADORA E RECEPTORA DE ÓVULOS - DOAÇÃO ENTRE IRMÃS - REGRA DO

ANONIMATO - RESOLUÇÃO/CFM Nº 2121/2015 - INAPLICABILIDADE -

PLANEJAMENTO FAMILIAR - SAÚDE - DIREITO FUNDAMENTAL.

(...) E, nesse ponto, vale reconhecer, em breve digressão, as dificuldades consideráveis a serem enfrentadas pelo legislador, na futura disciplina da matéria, dada a controvérsia em torno do tema relativo à inviolabilidade do sigilo da identidade de

doadores de gametas, entendendo alguns estudiosos de bioética ser imprescindível a regra do anonimato à luz do direito à intimidade e à privacidade, enquanto outros conclamam sua insubsistência em face do direito ao conhecimento da origem genética titularizado pelas crianças concebidas, direito de personalidade indissociável da condição humana.

(...) De qualquer forma, enquanto pendentes de específica regulamentação legal as questões inerentes à reprodução humana assistida, há de se reconhecer a necessidade de sopesar a aplicabilidade do princípio do anonimato dos doadores de gametas mediante revisão judicial de sua serventia ao caso concreto. (AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1.042.172 - SP (2017/0005550-2) RELATORA: MINISTRA ASSUSETE MAGALHÃES, Publicado em 11/10/17.

De fato, ao observar os casos jurisprudenciais em tela, constata-se que o indivíduo é o principal bem a ser tutelado pela legislação e por todo o ordenamento jurídico, mesmo quando o próprio sistema jurídico entra em conflito, ao viver uma espécie de colisão entre direitos fundamentais.

É o que Canotilho (2001, p. 1.229) considera como “choque” de direitos:

Considera-se existir uma colisão autêntica de direitos fundamentais quando o exercício de um direito fundamental por parte do seu titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular. Aqui não estamos perante um cruzamento ou acumulação de direitos (como na concorrência de direitos), mas perante um ‘choque’, um autêntico conflito de direitos.

Quando se constata este “autêntico conflito de direitos”, referido pelo autor, é preciso adicionar à esta situação a aplicabilidade de outros dois princípios: o princípio da proporcionalidade e o princípio da harmonização dos interesses, de forma que os direitos em “choque” não percam sua eficácia e para que não se permita um total distanciamento entre ambos, de modo que não se promova o prejuízo de um em face do outro.

Portanto, deve-se preservar os dois direitos em conflito, de modo a valorizar o direito ao anonimato e também, o direito ao reconhecimento à origem genética, de acordo com cada situação em pauta, tendo como fundamento a intenção maior que é a proteção do instituto da dignidade da pessoa humana, elemento norteador da legislação constitucional, sob pena de se ter fragilizado a própria razão de ser do sistema jurídico.

Para Patrícia Diógenes de Melo (2017, p. 3),

A colisão que ocorre com a aplicação da técnica de reprodução assistida heteróloga, para apontar se o interesse que deve prevalecer é o do indivíduo gerado ou do doador dos gametas, faz-se necessário analisar em cada situação, qual delas é apta a dar maior proteção à dignidade da pessoa humana. Levantam-se as seguintes razões para a criança conhecer sua origem genética: a) pela falta de um pai ou de uma mãe juridicamente estabelecidos quando a técnica foi utilizada somente por um indivíduo; b) para desconstituir a paternidade anteriormente estabelecida, seja por ambição material ou por desentendimentos com os pais socioafetivos; c) da necessidade de se analisar o material genético de seu ascendente para preservar a saúde do filho socioafetivo; d) pela preocupação de evitar vínculos parentais em desconformidade com a moral e os costumes; e) pela mera curiosidade em conhecer aqueles que permitiram a concretização do projeto parental daqueles que reconhece como pais.

O “direito” dos filhos havidos por reprodução humana assistida heteróloga de ter sua origem genética conhecida, está diretamente relacionada às garantias do direito personalíssimo,