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3 A INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE NA REPRODUÇÃO ASSISTIDA

3.2 O ANONIMATO DO DOADOR DE MATERIAL GENÉTICO

Inicialmente, destaca-se que os defensores do emprego da técnica de inseminação artificial heteróloga concordam que a receptora do material genético não deve ter ciência da identidade do doador, e este não deve conhecer a identidade da receptora (FRANÇA, 2007).

Esta premissa encontra respaldo na Resolução nº 2.168/2017 do Conselho Federal de Medicina, que contém em seu texto que “Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa”.

Além disso, vislumbra-se na redação da Resolução supracitada outra previsão corroborando tal entendimento, in verbis:

3 – Será mantido, obrigatoriamente, sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e embriões, bem como dos receptores. Em situações especiais, informações sobre os doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do (a) doador (a).

O principal motivo para o Conselho Federal de Medicina ter previsto o anonimato do doador é “[...] para incentivar essa atitude tão altruísta, de modo a não gerar o doador obrigação de prestar alimentos e herança à criança gerada” (PINI, 2016, p. 23).

No mais, a possibilidade de demanda judicial em prol do reconhecimento da paternidade em face do doador de sêmen, com efeitos patrimoniais, desestimularia a doação, por ser este ato de liberalidade e boa vontade do sujeito (PINI, 2016).

Insta salientar, antes de tudo, que os doadores são nada mais que “[...] os fornecedores de material biológico humano” (BARROS, 2007, p. 63). Assim, as polêmicas em torno da figura do doador não se põem em sede de reprodução assistida homóloga, pois a extração de material genético é feita dentro do próprio casal, aparecendo tal problemática somente em se tratando de inseminação artificial heteróloga (BARROS, 2007).

Pode-se afirmar que o doador de material genético, no âmbito da reprodução assistida heteróloga, tem atuação essencial no sucesso e na continuidade desta prática, visto que tal procedimento decorre sempre de algum impedimento ou inviabilidade de praticar-se a procriação pelas vias naturais (PINI, 2016).

Ressalta-se que, segundo disposição da Resolução nº 2.168/2017, “O consentimento livre e esclarecido será obrigatório para todos os pacientes submetidos às técnicas de RA”. Quanto a este consentimento, determina ainda o dispositivo em análise que “O documento de consentimento livre e informado será elaborado em formulário especial e estará completo com

a concordância, por escrito, obtida a partir de discussão bilateral entre as pessoas envolvidas nas técnicas de reprodução assistida”.

Com efeito, Barros (2007) alerta que, tratando-se da hipótese de doador que possui vínculo matrimonial ou relação de união estável com uma pessoa, esta, cônjuge ou companheira, deverá também manifestar sua concordância para a realização do procedimento.

Frente a esta circunstância, a aludida autora (2007, p. 63) ainda informa:

A doação de sêmen contra a vontade do outro pode representar um fator de instabilização da sociedade conjugal e levá-la à ruptura, de modo que as clínicas receptoras devem ter o cuidado de exigir do doador casado ou que vive em união estável a concordância do outro consorte ou convivente.

No mesmo sentido, ensina Dias (2017, p. 210) que “[...] é necessário que o seu cônjuge ou companheiro firme termo de consentimento, por escritura pública, autorizando a realização do procedimento”.

O Conselho Regional de Medicina ainda determina, na Resolução nº 2.168/2017, que “A doação não poderá ter caráter lucrativo ou comercial”. Seguindo a compreensão do citado dispositivo, encontram-se as palavras de Lisboa (2009, p. 254), o qual traz expressão acentuando que “A pessoa que cede o material genético para a realização da inseminação artificial heteróloga deve efetuar a cessão sem finalidade lucrativa e comercial, sendo-lhe assegurado o direito ao sigilo da divulgação de sua identidade”.

Desta forma, aduz Albano (2004, p. 91) que:

A licitude e a validade da doação de gametas nos processos de reprodução assistida estão diretamente ligadas à não-ocorrência de comercialização, o que viciaria o consentimento e o princípio da boa-fé. E, da mesma forma que a remoção de órgãos, a de tecidos e partes do corpo deve ser realizada de forma gratuita, segundo a Lei nº 9.434/97, por analogia. Os procedimentos que envolvem o sangue, o sêmen e o óvulo (matérias excluídas por essa lei) também devem seguir esses preceitos normativos, posição igualmente defendida pela Resolução nº 1.358/92 do CFM. Ressalte-se que, assim como o sangue, o leite e os cabelos, os gametas compõem o corpo humano e dele fazem parte, não sendo passíveis de comércio.

Nota-se também que “As clínicas, centros ou serviços onde são feitas as doações devem manter, de forma permanente, um registro com dados clínicos de caráter geral, características fenotípicas e uma amostra de material celular dos doadores, de acordo com a legislação vigente”, segundo dispõe a Resolução nº 2.168/2017.

Essa Resolução também determina limites ao número de gestações, de sexo diferente, que um mesmo doador pode contribuir numa região, estabelecendo que: “Na região de localização da unidade, o registro dos nascimentos evitará que um(a) doador(a) tenha produzido mais de duas gestações de crianças de sexos diferentes em uma área de um milhão de habitantes”. Ademais, “Um(a) mesmo(a) doador(a) poderá contribuir com quantas gestações forem desejadas, desde que em uma mesma família receptora”.

Deve-se atentar para o fato de que o sêmen doado deve possuir características genéticas semelhantes às do casal que recorreu ao procedimento, devendo as clínicas evitar misturar sêmen de diferentes doadores (ESTÉFANI, 1998 apud BARROS, 2007).

Finalmente, o Conselho Federal de Medicina, por meio da Resolução em exame, também fixa que “Não será permitido aos médicos, funcionários e demais integrantes da equipe multidisciplinar das clínicas, unidades ou serviços participar como doadores nos programas de RA”.

Ao discorrer sobre a doação de sêmen em sede de reprodução assistida heteróloga, Barros (2007, p. 63-64), argumenta que:

A fecundação heteróloga não trata de doação de simples elementos orgânicos, como o sangue, pois os gametas são portadores de informações genéticas do indivíduo, de modo que se mostra inadequado comparar a doação de sangue com a doação de esperma. Esse fato é suficiente para que muitos se oponham a heterofecundação, porque dela resulta a presença de uma terceira pessoa (doador) na vida do casal, o que pode gerar desajustes nas relações dos consortes: o homem por ter que conviver com a presença de um filho gerado por outro, que o recorda da sua incapacidade de fecundar sua consorte, enquanto a mulher por saber-se fecundada por um estranho. Além disso, há o perigo de que esta situação se projete sobre filho; por isso alguns se colocam frontalmente contra a inseminação artificial heteróloga.

Segundo a autora (2007), há posicionamentos em prol do anonimato dos doadores neste tipo de reprodução assistida, debatendo-se, ainda, se esse sigilo sempre prevalecerá, havendo defensores do anonimato e opiniões em sentido contrário.

Contudo, reconhece-se que, em certas circunstâncias, por razões médicas, os dados do doador com caráter clínico, características fenotípicas e informações genéticas podem ser repassados (BARROS, 2007).

Registre-se que “[...] o segredo diz respeito à natureza artificial da procriação fundada sobre a utilização do esperma de um doador e o anonimato reporta-se à identidade do doador, do casal receptor (marido e mulher) e da criança” (DIAS, 1996 apud BARROS, 2007, p. 64).

De fato, aqueles que são favoráveis à manutenção do sigilo do doador utilizam como argumentos os seguintes postulado de que o anonimato: consiste na proteção à intimidade da vida privada; assegura o bem estar do filho advindo desta técnica de reprodução artificial, poupando-o de eventuais traumas oriundos da descoberta deste terceiro sujeito que é o doador; incentiva a doação de material genético; consiste num fator que garante a não responsabilização do doador pela paternidade; evita que o doador reclame direitos sobre o filho biológico, constituindo garantia aos pais sociais; e, por fim, desvendar a identidade do doador pode permitir questionamentos acerca da paternidade atribuída ao cônjuge da receptora (BARBAS, 1998 apud BARROS, 2007).

É oportuno trazer à baila o enunciado no artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal (BRASIL, 1988), cujo preceito informa que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

Na contramão do acima exposto, urge apresentar entendimento contrário ao sigilo da identidade do doador, nos seguintes termos:

Stela Marcos de Almeida Neves Barbas tem opinião diversa, pois, para ela a inseminação heteróloga envolve sempre atentado contra o direito a um patrimônio genético não manipulado e o segredo em relação ao doador está em manifesta contradição com o disposto na primeira parte do artigo 26 da Constituição da República Portuguesa que reconhece a todos o ‘direito à identidade pessoal’. De acordo com ela, o anonimato posterga o direito da criança ao conhecimento do seu patrimônio genético e colide com o direito fundamental de conhecer suas origens biológicas; ofende o direito essencial à identidade da pessoa subordinando-o a um discutível direito dos inférteis a terem um filho; pode ser fonte de futuros incestos; impede definir, em alguns casos concretos, a forma de transmissão hereditária de certas doenças (BARBAS, 1998 apud BARROS, 2007, p. 66).

Em continuidade com esta mesma compreensão da matéria em análise, pode-se, ainda, apontar:

Guilherme Calmon Nogueira da Gama distingue entre o sigilo do procedimento médico da reprodução assistida heteróloga: o anonimato do doador; o anonimato do casal e o anonimato da criança a nascer. Para o citado autor, o anonimato das pessoas envolvidas, inclusive o doador, deve ceder em relação ao concebido pela técnica de inseminação artificial heteróloga, diante do reconhecimento no direito brasileiro, dos direitos fundamentais à identidade, à privacidade, à intimidade, podendo a pessoa ter acesso às informações sobre toda sua história sob o prisma biológico para o resguardo da sua existência e proteção contra possíveis doenças hereditárias, sem que isso propicie qualquer tipo de parentesco entre doador e pessoa concebida por reprodução assistida heteróloga. Para ele, o anonimato permite a total integração do recém-nascido à família que o acolheu por força da procriação assistida heteróloga, impedindo a interferência de terceiros – como o doador – na formação e no desenvolvimento da criança, e o tratamento discriminatório, excludente e odioso das pessoas em geral e dos familiares dos pais em especial, relativamente à criança (GAMA, 2003 apud BARROS, 2007, p. 72).

Para Pini (2016), retirar do homem ou da mulher que se apresenta disposto a doar material genético a garantia de proteção à intimidade e ao seu patrimônio, bem como abandonar qualquer possibilidade de constituição de afeto, significa, na verdade, a desmotivação do ato de doar, tornando esta tecnologia inútil, prejudicando os que dependem dela para procriar.

Venosa (2017, p. 271) aborda, ao analisar a o sigilo do doador, o Projeto de Lei do Senado nº 90 de 1999, destacando que, não obstante existirem outros projetos de lei que versam sobre a reprodução humana assistida no Brasil, aquele é o que se encontra mais avançado em termos de tramitação, explanando que:

De acordo com o referido projeto nº 90, [...] os estabelecimentos que praticarem a reprodução assistida estarão obrigados a zelar pelo sigilo da doação, impedindo que doadores e usuários venham a conhecer reciprocamente suas identidades, zelando,

da mesma forma, pelo sigilo absoluto das informações sobre a criança nascida a partir de material doado.

Contudo, o mesmo autor (2017) também evidencia que o Projeto de Lei nº 90/1999 ainda prevê a possibilidade do filho advindo da técnica de reprodução humana assistida heteróloga ter acesso aos dados sobre sua geração, ocorrendo tal oportunidade em circunstâncias prestigiadas em lei e havendo motivações médicas para esta finalidade.

Naves (2010, p. 139) discorre sobre o direito à intimidade genética, relacionando-o ao princípio da dignidade da pessoa humana, explicitando que:

O direito à intimidade, garantido na Constituição Federal de 1988 por meio do disposto no inciso X do artigo 5º, é a esfera individual de projeção do indivíduo em sua relação interior. O direito à intimidade genética decorre desse princípio constitucional e pode ser definido como o direito de determinar as condições de acesso à informação genética. Está ligado de maneira estreita ao princípio da dignidade humana.

Em resumo, merecem guarida as palavras de Pini (2016, p. 27-28) sobre o direito ao anonimato do doador:

Entende-se ser decorrente do direito fundamental à intimidade o direito ao anonimato estabelecido para o doador de material genético, portanto receberá tratamento semelhante ao tratamento dispensado para outros direitos fundamentais, como o direito à imagem, à honra e a vida privada. Deve-se atentar, entretanto, que sempre que contraposto a outro direito fundamental deverá ser realizada a ponderação do caso concreto para decidir qual deve ser favorecido em detrimento do outro.

Desta feita, verifica-se, frente a todas as exposições realizadas até então, uma contraposição de interesses: o direito à identidade genética do filho originado da reprodução assistida heteróloga versus o direito ao anonimato conferido ao doador do material genético, conflito este objeto de estudo do capítulo subsequente.

4 IDENTIDADE GENÉTICA VERSUS SIGILO DO DOADOR: O CONFLITO

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