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4. A ESCOLA ITINERANTE DO MST

4.2 O apartheid educacional e a expropriação dos sem-terra

A partir do momento que eu vim pra cá, comecei a perceber algumas coisas, não era tanto só comunidade que reivindica a escola, ela também, as crianças estavam sendo discriminadas, mas quem estava pressionando para ter uma escola aqui dentro era a prefeitura municipal do município. Porque a prefeitura não tinha espaço que comportasse todas nossas crianças, e daí tinha uma sala de aula na época, em escola do município, com 63 crianças e a maioria sentada no chão com o caderno, então a secretaria implorava que nós construíssemos a Escola Itinerante e nós caíamos no jogo, talvez um erro, talvez um acerto (Entevista, Educadora). (BAHNIUK, 2008, p. 38).

Para o MST, a luta pela terra expressa a luta contra as desigualdades sociais assentadas no latifúndio e, por isso, carrega as lutas pela superação desse tipo de propriedade no campo, para instaurar novas relações sociais de produção no campo, procurando desenvolver em seu território um novo caráter à produção e de existência humana, quer nos acampamentos ou assentamentos da reforma agrária. Mas, enquanto persistir o latifúndio, haverá as desigualdades sociais no campo e, com ela, a reprodução do apartheid do homem à terra e a negação do direito à educação pela condição de miséria social dos Sem Terra acampados. A marginalização dos Sem Terra é ainda maior pela condição de luta, pois além da pobreza que carregam, trazem a luta pela terra e, com ela, o ódio de classe.

Neste espaço de luta se encontra o acampamento do MST e com ele as crianças acampadas que sofrem, pela condição social de ser um Sem Terrinha, um apartheid, tanto social quando educacional na escola citadina, pois a contradição se expressa na vida social materializada na sociedade de classes. A escola é um desses espaços em que a contradição se manifesta e se afirma como luta de classes. Diante disso, David e Fontoura assim se expressaram,

As crianças acampadas não se adaptam às escolas convencionais da rede pública de ensino, pela diferença inerente ao contexto e à condição de ser um Sem Terra, pois nesses espaços são homogeneizadas em uma igualdade abstrata que lhes consome a identidade. Identidade esta exposta no modo de ser, vestir, falar, nos pés descalços e até mesmo na maneira de brincar. (DAVID; FONTOURA, 2006, p. 61).

O apartheid educacional se faz presente na sociedade brasileira. É o mecanismo de reserva de mercado que a burguesia tem para si. Mas, entre os pobres, se solidifica como processo de condução ideológica. Neste sentido, em seu estudo, Bahniuk, traz que a ideia da escola no acampamento ganhou força no MST frente aos problemas de aceitação da criança Sem Terra na escola urbana, ou seja, a discriminação e o apartheid educacional imposto pelo condição de ser Sem Terra/sem-terra. Diante disse, ela afirma que

[...] a concretização de uma escola que atendesse às crianças foi tornando-se cada vez mais uma necessidade, devido à discriminação sofrida pelas crianças nas escolas da região, pela sua condição de Sem Terra, pelas roupas e calçados que tinham e utilizavam para freqüentar a escola. Essa discriminação manifestava-se em fatos chocantes, como nos relatam os acampados. Por exemplo, as crianças do acampamento não podiam tomar água no mesmo bebedouro das outras crianças e na ausência de cadeiras nas salas das escolas quem sentava no chão eram elas, entre outros tristes episódios que acabam por apressar a constituição da escola no acampamento. [...] (BAHNIUK, 2008, p. 38)

Neste relato, Bahniuk constatou a presença do apartheid a que estavam submetidas as crianças Sem Terra, justamente pela sua condição social de ser pobre e de ser Sem Terra. Diante dessa relação imposta às crianças, o MST passou a desenvolver a prática pedagógica de escolarização nos seus próprios acampamentos, tendo como educadores, seus próprios quadros. Assim, atuavam na formação política e na escolarização de forma simultânea. Mas esse processo, segundo Bahniuk, também pode ser uma forma de manter o apartheid, não educacional, mas social:

Alguns desses elementos nos levam a questionar se as Escolas Itinerantes podem estar concretizando-se como uma forma de isolamento das crianças acampadas, para que não incomodem e não se misturem às outras crianças. Essa questão é algo que precisa também ser levado em consideração para que as Escolas Itinerantes não caiam na lógica perversa do isolamento. [...]. (BAHINUK, 2008, P. 38).

E Hammel nos traz que

As Escolas Itinerantes são escolas que funcionam em acampamentos do MST. No Paraná, elas foram aprovadas pelo Parecer nº1012/03 do Conselho Estadual de Educação (CEE) e pela Resolução nº 614/2004 da SEED/PR. Segundo o PPP (2009, p.16) as Escolas Itinerantes ‘têm como finalidade atender aos educandos que estão nos acampamentos do MST, pois os frequentes deslocamentos para outras escolas acarretavam problemas em relação ao aproveitamento dos educandos’. Somam-se a isso preconceitos, discriminações e negligências dos estabelecimentos de ensino frequentados por esses estudantes. (HAMMEL, 2013, p. 13).

Dessa maneira, a lógica presente no apartheid está na organização da sociedade burguesa, cujo objetivo é sua reprodução social e, na reprodução, seu germe reside na extração da mais-valia do trabalho. Neste processo, a educação é seletiva e, na lógica burguesa, aos pobres um rudimento de escolaridade basta para compreender seu lugar na

sociedade e, com isso, subsumir à ideologia dominante. Neste sentido, “a instituição escolar, historicamente, não foi, e nem está sendo hoje, pensada para os trabalhadores”. (CAMINI, 2009, p. 174). Diante disso, podemos dizer que a luta do MST por escolas no acampamento tem um componente singular, pois a vida na pobreza traz as marcas da exclusão e da marginalização social na sociedade de classes e, diante disso, compete a ele encaminhar as lutas pela escola no seu território, para romper as cercas que impedem os camponeses ao processo de escolarização com qualidade. Em entrevista concedida por Isabela Camini, ela assim fala do processo de apartheid sofrido pelas crianças do MST. Segundo ela,

Assim que o MST começou a ser organizado, todas as famílias passavam pelo acampamento. E a vida no acampamento é dura. Uma vida onde nem sempre a própria higiene é permitida, porque não tem água – pelo menos naquela época isso acontecia. As crianças que saíam do acampamento para estudar contam relatos imensos de discriminação.

[...]

Poderia ser uma simples escola do campo, porque as crianças iam de pé descalço, cheiravam a fumaça… Tem discriminação que vai muito além. Por serem sem-terra, não deixavam as crianças comer merenda, tomar água do mesmo bebedouro ou sentar na mesma mesa que as outras crianças. Do cheiro de fumaça, passaram a outras discriminações, que são discriminações de classe, que dizem: “Vocês são sem-terra, portanto são inferiores”. (CAMINI, 2014, s/p).

A autora citada nos traz também um depoimento de Adriana de Andrade, de 06/06/2007, em um acampamento do Paraná, que reforça os argumentos reveladores da apartheid:

No nosso acampamento, a escola itinerante foi criada porque nossas crianças estavam estudando na cidade e lá sofriam discriminação de todos os tipos: comiam a merenda depois das outras crianças e ficavam sentadas ao chão, enquanto as outras sentavam em carteiras escolares. E quando aparecia uma doença contagiosa na escola, eram sempre os sem terra que traziam. (CAMINI, 2009, p. 78).

Puhl corrobora nesta discussão trazendo um relato colhido em 16 de julho de 2007, quando visitou um acampamento para fazer seus estudos. Logo de cara ouviu uma frase dita por várias pessoas, “a gente não é diferente de ninguém porque é sem-terra”. Então, por que somos discriminados? Como na EI de Santa Catarina, o ensino oferecido era até a 4ª serie, as crianças tinham que ir para a cidade, onde continuariam seus estudos, a partir da 5ª série. Nestas escolas, segundo uma senhora que Puhl a identificou como Ana,

[...] logo que eles iniciaram lá foi bastante preconceito. As crianças da cidade comentavam: a criança sem terra não toma banho, nem queriam se misturar, quando eles começaram era: “olha os sem-terra ali”, “ah agora vocês sem-terra vieram pra nossa escola”. [...] apesar de ser uma criança de um acampamento do MST, dos sem-terra, não deixava de ser uma criança que dependia também da educação, era o mesmo direito humano, então isso aí deixou bastante... eu da minha parte fiquei

triste em saber que os meus filhos estavam lá e estavam sendo discriminados por serem sem-terra. (ANA apud PUHL, 2008, p. 77).

Inferimos que o que eles tratam como “discriminação”, é puramente sinônimo de apartheid, cuja marca se dá, não pela cor, como foi nos Estados Unidos, na África do Sul, não pela situação étnica, como na Europa Oriental ou na África. Aqui, o apartheid ocorre por condição de classe, na qual os que são postos à margem sofrem a apartação social e, consequentemente, a perda da identidade humano-social. Por isso o MST, procura imprimir no seu território uma nova organização social, voltada à formação humana, valorizando as atividades desenvolvidas de forma coletiva, como processo e meio de produção da vida material e, com ela suas formas de espiritualidades. Isto porque, de acordo com Camini,

No Brasil, nos últimos anos, tem se enfrentado sérios problemas para garantir a prerrogativa constitucional de acesso e permanência das camadas populares, desde a educação infantil, passando pela básica até a superior. Por isso, inúmeras críticas são feitas à história da educação brasileira, que tem caráter de fracassos programados, principalmente para os filhos e filhas dos trabalhadores. O índice ainda bastante alto de analfabetos, principalmente no nordeste, onde atinge quinze milhões de adultos, ou seja 11% da população63

Diante disso, a escolaridade do homem do campo é baixa, por um lado porque o tempo de escolaridade é muito baixo e, por outro lado, segundo Stédile e Frei Sérgio, “as condições de acesso à escola sempre foram precárias e o método de educação e os conteúdos aplicados eram, via de regra, para expulsar da escola o filho do camponês pobre”. (STÉDILE; FREI SERGIO, 1993, p. 91). Assim, do apartheid à liberdade da escola no acampamento, sua materialidade se faz na luta pela educação do e no MST.

não sabe ler, escrever e fazer contas, tanto no campo quanto nas zonas urbanas, comprova esta realidade. (CAMINI, 2009, p. 101).

Mas os Sem Terra não sofrem somente do apartheid em relação à sua pobreza material. Sofrem também o ódio de classe do latifúndio, que não aceita a desconcentração da propriedade. Camini nos traz uma síntese de um material distribuído em 2003, quando da marcha do MST para São Gabriel, no RS, conforme segue:

Povo de São Gabriel não permita que sua cidade tão bem conservada nesses anos seja agora maculada pelos pés deformados e sujos da escória humana. São Gabriel, que nunca conviveu com a miséria, terá agora que abrigar o que de pior existe no seio da sociedade. Nós não merecemos que essa massa pobre, manipulada por meia dúzia de covardes que se escondem atrás de estrelinhas no peito, venham trazer o roubo, a violência, o estupro, a morte. Estes ratos precisam ser exterminados. Vai doer, mas para as grandes doenças fortes são os remédios. É preciso correr sangue para mostrar nossa bravura. Aqui é lugar de povo ordeiro, trabalhador e produtivo. Se tu gabrielense amigo possui um avião agrícola pulveriza a noite cem litros de

gasolina em vôo rasante sobre o acampamento dos ratos. Sempre haverá uma vela acessa para terminar o serviço e liquidar com todos eles. Se tu és proprietário de terra ao lado de um acampamento usa qualquer remédio de banhar gado na água que eles usam para beber, rato envenenado bebe mais água ainda. Se possuíres uma arma de caça calibre 22 atira de dentro do carro contra o acampamento, o mais longe possível. A bala atinge o alvo mesmo a 1200 metros de distância. (apud CAMINI, 2009, p. 191).

Neste panfleto está explicito o ódio de classe como ponto central nas lutas de classes pela terra. As relações tensionadas resultaram em muitos conflitos neste campo em todo o Brasil; vêm de longas datas, com assassinatos de trabalhadores rurais sem-terra no final do século passado e ganham visibilidade mórbida 17 de abril de 1996, em Eldorado dos Carajás, no Pará, onde foram barbaramente executados 19 trabalhadores Sem Terra pelas forças públicas do Estado, comandada pelo Coronel Pantoja e o Major Oliveira, sob determinação direta do então governador Almir Gabriel, do PSDB, juntamente com os capangas do latifúndio. Mas veicular um panfleto de ódio, até então, o MST desconhecia.