• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II – A IMPRECISÃO CONCEITUAL DO APRENDER A

3.7 O aprender a aprender no dia-a-dia das professoras

Dentre as professoras entrevistadas, a maioria confessou gostar de trabalhar na EJA, mas duas disseram que estão esperando somente o dia de se aposentar, não tendo interesses em novos desafios de ensino. Algumas foram enviadas para essa modalidade, porque estavam cansadas de lidar com crianças. Existem as que estavam sem turmas durante o dia; por isso, tornaram-se professoras noturnas da EJA. Algumas nem sequer se acostumaram com esse novo público.

Estou na EJA há cinco anos. Tenho 20 anos de Estado e 20 de Prefeitura. Infelizmente não pode juntar para aposentaria, né? Entrei na EJA mais por uma questão de horário. Eu prefiro trabalhar com crianças. Quando comecei na EJA não tinha outro horário. A pedido da diretora, fiquei com os adultos à noite. Foi difícil no começo, senti muita dificuldade. Mas estou aprendendo com eles, serve como experiência de vida. (Profa. L.M. – 4ª entrevistada).

Durante minha observação de campo, pude ver atitudes docentes muito diversas entre as professoras. Algumas tratavam a aluno como se estivessem lidando com crianças e tendiam a contentar-se com o trabalho que faziam, não buscando inovações didáticas. Costumavam reduzir a aula ao trabalho de escrever deveres no quadro e pedir ao aluno que copiasse. Em outra direção, havia professoras que não se sentiam prontas ao ofício de ensinar; estavam sempre buscando se profissionalizar mais, estudando a docência e a EJA. Diziam que precisavam conhecer mais para a escolha de conteúdos e para o estabelecimento de estratégias metodológicas que pudessem trazer maiores resultados à aprendizagem dos alunos. De modo geral, mesmo entre as mais conformadas no trabalho que faziam, a importância do diálogo com o aluno foi destacada, para conhecê-lo e para resgatar conhecimentos que eles traziam, embora, no cotidiano docente, nem todas pratiquem essa ação. Para algumas professoras, o diálogo com o aluno é tão fundamental que dele depende a condução do próprio ensino na EJA. Isso é dito pela professora Maria das Graças dos Santos:

O aluno jovem ou adulto da EJA já vem com a educação dele de experiências vivenciadas, ele já possui uma formação, só não sabe ler e escrever. Em termos de conhecimento, muitas vezes nosso aluno sabe mais do que nós. O que está faltando é ampliar os conhecimentos desse aluno em termos de instrumentação para que ele possa codificar e decodificar a linguagem escrita.

Na educação de jovens e adultos, devemos partir sempre da experiência de cada aluno, da vivência dele no dia-a-dia. É a partir da vida cotidiana que o aluno se insere no processo de ensino-

aprendizagem. Ao sentirem que estão progredindo no conhecimento, eles passam a ser mais auto-confiantes, confiam mais em si e no trabalho do professor. Isso é gratificante tanto para o professor como para o aluno. Não há educação de jovens e adultos se isso não acontecer (Santos. In: SILVA, 2004, p. 57-58).

De acordo com a Profa. Maria de Fátima Medeiros Santana, a sala de aula para o aluno da EJA é muito mais do que um lugar de letramento; é também um lugar de refúgio:

Uns diziam estar na escola porque precisava de carteira de estudante para a compra do ticket, o que lhes amenizaria o custo do transporte para a procura de emprego ou para ir ao trabalho. Uma disse que o marido chegava sempre embriagado e na escola ela se sentia aliviada dele por alguns momentos. Outra disse que precisava se encontrar com o namorado e em casa o pai não permitia. Um é motorista e disse que se não aprendesse a ler e escrever corria o risco de perder o emprego. Uma viúva alegou que a solidão a fez voltar à escola. Uma mãe que tem um filho usuário de drogas afirmou que estudando só teria de encarar o problema depois das dez horas da noite. Uma acalentava o sonho de um dia escrever um livro. E uma das alunas estava cansada de serviços domésticos além da jornada de trabalho como doméstica (Santana, In SILVA, 2004, p. 78).

Muitos que buscam a EJA o fazem-no por motivos que ultrapassam a necessidade de se escolarizar. Isso amplia o trabalho docente, fazendo com que a aula de EJA seja, também, um lugar de acolhimento e de apoio às pessoas que não encontram, em suas famílias, o carinho que necessitam. Essa ligação tem sido favorável à presença do aluno na escola, mas também amplia laços que saem do cognitivo ao afetivo, interligando alunos a uma determinada professora, pois, se não for aquela, ele desiste da escola.

Além desse dado, encontram-se nas salas de aula, lado a lado, pessoas de quinze anos com pessoas de sessenta, com diferenças de interesses e de comportamentos. Há os que trabalham, os sem emprego, os moralistas, os religiosos, alguns profissionais do sexo, alguns dependentes de drogas. Há pessoas que circulam no mundo do crime, os que leem e escrevem, outros em fase de assimilação da estrutura silábica das palavras e com dificuldades de coordenação motora na escrita, todos numa mesma série.

Essa pluralidade de situações desnorteia as professoras que, formadas para uma sala de aula ideal, terão de encontrar saídas para essa outra realidade escolar. Ao serem questionadas sobre o modo de aprender a lidar com essa situação, disseram que precisam aprender, dia após dia, sem ter quem as ensine. A professora W.M. (14ª entrevistada) declarou que nunca foi instruída, mesmo na Faculdade, a atuar com

tamanha diversidade nem tampouco ouviu dizer que para a eficiência da aprendizagem ela necessitasse entrar em detalhes que são próprios da vida privada do aluno; no entanto, sabe que, para a EJA, essas questões terão de ser assumidas. Desamparada pela ineficiência das receitas pedagógicas, trazidas pela Pedagogia e mesmo pelos cursos de formação continuada, ela obrigou-se a encontrar seus próprios caminhos. Diz ela:

Um método para a Educação de Jovens e Adultos? Não creio que um método resolva. Temos de usar muitos métodos, de sermos artistas, de fazer tudo que é preciso, temos de saber sair de situações, de vencer empecilhos. Temos de estar sempre estudando, pesquisando, coletando materiais didáticos, testando novos caminhos, envolvendo o aluno na arte, na cultura, para ele se sentir com mais direitos, com mais garra de aprender, senão ele evade. Temos de aprender todo dia a ser professora. Eu estou sempre aprendendo. (Profa. W.M. – 14ª entrevistada).

A busca de uma aprendizagem que as habilite a lidar com as exigências e situações da EJA tem sido feita num caminho muito particular. Algumas, por conta própria, procuram livros que as ajude; outras convertem sua sala de aula em laboratório de experimentações. Cada uma à sua maneira. Os exemplos confirmam isto:

As leituras muito influenciaram minha ação. Quando se lê relatos de práticas de professores, somados a estudos teóricos, dá-nos vontade de pôr em prática para ver se dá certo. Eu fiz e deu certo. (Santana, In: SILVA, 2004, p. 81).

Em outras palavras: pelo que relatam, as professoras necessitaram aprender a aprender para atuar na EJA, mesmo que, até então, não conhecessem ou não fizessem uso desta expressão.

Perguntadas sobre o aprender a aprender, assim denominado, das vinte entrevistadas, apenas duas conheciam o termo. Elas lembraram que, nas agendas do ano de 2002 distribuídas aos professores, havia a recomendação de se desenvolver na escola os pilares essenciais para a educação na atualidade (aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser). As demais lembraram que a EJA teria a meta de conduzir pessoas à cidadania, mas não se recordaram de ter-lhes sido recomendado levar o aluno a aprender a aprender. Mesmo entre as que já conheciam a expressão, não houve conceituação precisa. Destacaram a motivação do aluno como elemento fundamental para que ele aprenda na escola. Sobre si mesmas, reconheceram que tinham muito a aprender para uma melhor docência na EJA.

De um modo geral, mesmo não conhecendo este termo, todas elas confessaram que é no percurso dos desafios do dia-a-dia que o professor identifica suas necessidades de saber mais e é no suprimento das necessidades que se constrói o caminho da própria aprendizagem. A urgência das respostas pedidas pelas cenas em processo, vividas no cenário da escola, obrigou-as a reconhecerem que sabiam pouco. Desse reconhecimento nasceu o desejo de aprender mais, para um melhor exercício da profissão. Não havendo, em muitos casos, quem as ensinasse, experimentaram o desafio de aprender a aprender sozinhas. Esse exercício que faz parte da realidade das professoras alcança também os professores. Muitas vezes, nem sequer se liga a experiências de sucesso, como bem ilustra o seguinte relato:

Não tive sucesso na alfabetização de todos os alunos, embora um ou dois acabaram conhecendo letras e a maioria se sentiu estimulada a prosseguir estudando. Contudo, o trabalho de formar grupos, de fortalecer uma comunidade, foi o maior resultado que obtive.

Muitas coisas atrapalharam. A estrutura da escola me atrapalhou. Não havia por perto outros profissionais da área para discutirmos o cotidiano da alfabetização. Havia somente eu e o Flávio. Isso atrapalhou. Outra dificuldade foi minha inexperiência, não naquilo que eu fiz, mas no que não fiz em relação à alfabetização. Embora eu tenha interesse de saber mais, de me aprofundar, de me especializar neste campo de trabalho. Mas a principal dificuldade foi lidar com o desinteresse do aluno em freqüentar a escola. Para muitos a habilidade de ler e escrever palavras não é uma necessidade básica. Precisa-se de tempo para convencê-los de que aprender a ler é de extrema importância na vida deles. Isso porque, na verdade, eles já são alfabetizados, no sentido amplo da idéia; eles sabem se virar no seu dia-a-dia. Muitos trabalham, têm vida independente, não dependem de família, nem do pai, nem da mãe. E também, na prática, a escola não lhe traz respostas ou melhorias imediatas. O resultado do trabalho da escola só pode ser medido anos depois (Ivalcir de Souza. In: SILVA, 2004, p. 74).

As observações de sala de aula e os dados reunidos nas entrevistas confirmaram- me que as professoras (também os professores), sem consciência, aprendiam a aprender sozinhas, cada uma à sua maneira. Nesse percurso, reuniram dúvidas, conversas com colegas de trabalho sobre fatos da docência, experimentaram aulas e refletiram nestas, buscaram novos caminhos de ensino, recorreram a leituras de livros e de revistas específicos, somaram informações adquiridas de cursos universitários, ingressaram em cursos de pós-graduação, participaram de seminários, duvidaram do que sabiam, conversaram com alunos, reuniram aprendizagens trazidas da infância, somaram dados de cá e de lá, foram a cursos de formação continuada (algumas não foram), foram ao

teatro com seus alunos, participaram na composição de poesias e de versos com seus alunos, acharam que já sabiam, cantaram e pediram que seus alunos cantassem, ditaram, escreveram no quadro, planejaram, não planejaram, arriscaram, perderam paciência, leram livros, demonstraram, por fim, que o aprender a aprender não possui um método estabelecido nem está, necessariamente, ligado às recomendações do Relatório Delors (2001). Ele é vivido pelos docentes e pelos discentes; não tem uma receita a seguir nem é vivido da mesma forma por quem o pratica; reúne elementos do ensino formal com saberes adquiridos em outros cenários da vida humana; utiliza-se de múltiplas referências, como sugere Ardoino (1971; 1993); agrega compreensões conceituais com práticas de atendimento a demandas concretas; inclui a construção individual e/ou coletiva de caminhos didáticos; combina disciplinaridade, multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, numa junção de novos com velhos saberes e não despreza a possibilidade de manter velhas práticas docentes, na certeza de que haverá, sempre, algo a ser mantido.

Diante de tudo isso, pode-se afirmar que o aprender a aprender é a arte de aprender, intencionalmente, a partir de dados coletados de diversas fontes, orientados para a solução ou para o enfrentamento de questões trazidas por um determinado problema; ato em processo, inacabado, aprendizagem mais voltada para o enfrentamento de situações do aqui e do agora, sem negar o passado e o futuro; refere-se a questões individuais ou coletivas, vivenciado com ajuda de terceiros ou sem ela. Por ser ato ligado a questões concretas, ele é prático e necessita das discussões teóricas, pois não existe teoria sem prática nem prática sem teoria.