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CAPÍTULO I – A EJA NA HISTÓRIA BRASILEIRA

1.3 O sucesso escolar e a cidadania

Em paralelo à movimentação de educadores do Brasil por meio dos fóruns de EJA e de suas vinculações a articulações internacionais, para que a EJA compusesse a lista das prioridades governamentais, fazia-se notar, no plano teórico, desde os primeiros anos da década de 1990, uma crescente produção sobre o fazer educativo, de pessoas ou de grupos isolados, em busca de suprir as lacunas deixadas pela quebra de paradigmas teóricos que regiam as Ciências Sociais e a Educação, desde o final da década anterior.

No vazio paradigmático, não faltaram receitas à obtenção de uma educação de sucesso para o século XXI. Nesse sentido, Perrenoud (1999) dedicou-se a mapear as competências necessárias às pessoas e a ditar procedimentos para o modo de obtê-las; Kassar (1995), Moreira (1990; 1997), Frigotto (1998; 1999) e outros empenharam-se em propor novos currículos para as escolas. Lévy (1993), Oliveira (1997) e Papert (1994) encontraram nos computadores a solução para males que afetavam a aprendizagem das pessoas e alguns dedicaram-se a identificar a atualidade de teorias produzidas sobre educação, no início do século XX, destacadamente, as de Jean Piaget ou as de L.S. Vigotski.

No campo específico da EJA, muitos estudos dedicaram-se a enfatizar a atualidade do pensamento de Paulo Freire (MCLAREN, 1999; APPLE, 2000; SCOCUGLIA, 1997); outros, à defesa da abordagem construtivista para a EJA (TEBEROSKY, 1993; BAQUERO, 1998; MOURA, 1999) e alguns, às questões conceituais, a exemplo dos estudos sobre alfabetização (FERREIRO, 1991; 1992), letramento (KLEIMAN, 1995), analfabetismo (CRAIDY, 1998), alfabetismo (RIBEIRO, 1999) e analfabetismo funcional (MOREIRA, 2003).

Nessa fase, o fracasso escolar tornou-se, também, tema corrente de publicações, documentos oficiais e discursos relacionados com a Educação. Proporcionalmente, apresentaram-se receitas “salvadoras da educação”. Esse tempo foi propício, ainda, ao “modismo pedagógico” marcado pela tendência de desqualificação das práticas existentes, o qual promovia a desvalorização do saber-fazer dos professores e transformava todos, inclusive alunos, em cobaias das “novidades”. A incessante busca do “novo” induzia professores a concluir que não sabiam ser professores e forçava escolas a embarcarem na “moda mais nova” que, antes mesmo de se afirmar, já se fazia substituída por uma outra novidade.

Despojados do que sabiam fazer e sem a assimilação do “novo”, de modo suficiente que pudesse praticá-lo, os professores passaram a se sentir inseguros no que faziam.15 Nem a vasta produção teórica nem os “receituários pedagógicos” (ANTUNES, 1996, ZABALA, 1999; PERRENOUD, 1999; LE BOTERF, 2003; BORDENAVE & PEREIRA, 2002) foram suficientes para a demarcação de um novo contorno na Educação. Os professores seguiram atualizando a denominação de suas práticas, esforçando-se para o uso de expressões e de terminologias tidas como “politicamente corretas”, sem alterar, significativamente, o perfil da ação docente. A própria estrutura das salas de aula, aliada à escassez de material didático adequado, contribuía para que os professores seguissem com um ensino pautado no quadro, giz e exposições orais, repetindo assim, apesar da terminologia atualizada, a velha fórmula do ensino tradicional, em sua versão mais pobre.

15 Esses fatos são comentados, de acordo com depoimentos de professores pertencentes à Rede de Ensino

Municipal de João Pessoa. Os depoimentos estão gravados em fita cassete e serviram, em grande parte, como base à iniciativa de valorização da prática de professores que vinham obtendo sucesso na EJA, resultando na publicação do livro: Retratos na parede: saberes docentes em Educação de Jovens e Adultos. José Barbosa da Silva (org). João Pessoa: Secretaria de Educação e Cultura e Textoarte Editora, 2004.

Somadas às recomendações apresentadas para um ensino escolar de sucesso, nas demandas do século XXI, os Parâmetros Curriculares Nacionais (2000) informavam que o objetivo maior da educação escolar seria o de promover o exercício da cidadania.

Tendo como meta o ideal de uma crescente igualdade de direitos entre os cidadãos, baseado nos princípios democráticos. Essa igualdade implica necessariamente o acesso à totalidade dos bens públicos, entre os quais o conjunto dos conhecimentos socialmente relevantes (PCNs, 2000, p. 13).

Essa determinação dos PCNs (2000) na Educação de Jovens e Adultos fazia- se importante, principalmente, porque ela se destina a pessoas que, em algum momento da vida, tiveram negados seus direitos fundamentais, inclusive o do acesso à educação básica (Parecer CEB 11/2000). Todavia, a transformação do ensino escolar numa atividade propiciadora da cidadania implicava alterações curriculares, exigindo da escola conteúdos que fizessem ligação do trabalho de sala de aula com o exercício dos direitos social, político e civil das pessoas, já que este é o tripé que compõe a cidadania plena (COVRE, 1991). Numa sociedade cidadã, é dever do indivíduo:

[...] ser o próprio fomentador dos direitos a todos, ter responsabilidade em conjunto pela coletividade, cumprir as normas e propostas elaboradas e decididas coletivamente, fazer parte do governo direta ou indiretamente, ao votar, ao pressionar através de movimentos sociais, ao participar de assembléias – no bairro, sindicato, partido ou escola. E mais: pressionar os governos municipal, estadual, federal e mundial (em nível de grandes organismos como o Fundo Monetário internacional - FMI) (COVRE, 1991, p. 8-9).

Segundo o raciocínio de Covre, o ser humano, para ser cidadão, necessita dispor do domínio sobre seu corpo e sua vida, desfrutar um salário suficiente para o seu sustento, ter o direito à educação, à saúde, à habitação e ao lazer. Ainda assim, a pessoa só é cidadã se puder expressar-se livremente, militar em partidos políticos e sindicatos, participar de movimentos e de lutas sociais, defender seus valores, ter liberdade, não se deixar oprimir. Nessa visão, o indivíduo, para o exercício da cidadania, necessita de conhecimentos escolares, mas não pode limitar-se a estes. A escola, para a promoção da cidadania, não poderia seguir limitada apenas à tarefa de estruturar determinada seqüência de conteúdos e à de demarcar sua intervenção metodológica, seguindo um ensino seriado, da alfabetização à oitava série, ou ao término do Ensino Médio.

Faz-se limitado o exercício da cidadania para todos, numa sociedade de classes sociais, excludente, globalizada, competitiva, em que o Estado (e seus poderes: Legislativo, Judiciário e Executivo) é coligado a homens de negócio que agem para que a saúde, a educação, a moradia e outros benefícios sociais sejam transformados em mercadorias vendáveis, como serviços privados aos que possam pagar por estes.

Quando falamos de cidadania estamos nos referindo a uma qualificação da condição de existência dos homens [...]. O homem só é plenamente cidadão se compartilha efetivamente dos bens que constituem os resultados de sua tríplice prática histórica, isto é, das efetivas mediações de sua existência. Ele é cidadão se pode efetivamente usufruir dos bens materiais necessários para a sustentação de sua existência física, dos bens simbólicos necessários para a sustentação de sua existência subjetiva, e dos bens políticos necessários para a sustentaçãode sua existência social (SEVERINO, 1994, p. 98).

A conquista da cidadania, nos moldes indicados pelos dois autores citados, numa sociedade de classes, torna-se difícil se é vista como o resultado da ação de indivíduos, isoladamente, a não ser que sua compreensão seja reduzida ao ser produtor, consumidor ou votante, como foi defendido por SOUZA (2005, p. 7): “[...] são muitas as dimensões do cidadão, mas na sua relação com a sociedade elas são basicamente três: a dimensão do cidadão consumidor, a dimensão do cidadão produtor e a dimensão do cidadão participante da vida do país.”

A definição de cidadania apresentada por Covre (1991) e por Severino (1994) não coincide com a limitada e conservadora definição de cidadania apresentada pelos PCNs, por sugerir a escola como porta-voz do exercício da cidadania e prega sua conquista como decorrência de atos individuais16. Ante essa orientação, as ações educativas concentram-se no sujeito demarcado pela cor, gênero, etnia, preferência sexual. Fazem-se apelos à valorização das diversidades presentes à própria sala de aula, para a aprendizagem da convivência com o diferente, como riqueza e não como motivo para a discriminação.

Considerar a individualidade das pessoas, sem preconceitos da cor, sexo, etnia, ou qualquer outra particularidade, tem sido um passo muito importante no combate à discriminação social. No entanto, ainda, é imprescindível discutir a cultura (estimulada pelo próprio capitalismo) de valorização de pessoas feita com base em suas posses

16 Em confirmação a isso, ver: BRASIL. Educação de Jovens e Adultos: Parâmetros em ação. Brasília:

MEC, 1999; BRASIL. Educação para Jovens e Adultos: Ensino Fundamental – Proposta Curricular – 1º segmento. Brasília: MEC, 1999.

financeiras. Sem o enfrentamento do preconceito criado sobre as camadas financeiramente desfavorecidas, muitos dos problemas que impedem, hoje, o exercício da cidadania permanecerão a existir. Desvincular este das condições de vida das pessoas, das exigências e cobranças feitas pela realidade do mundo capitalista atual, reduzindo-a, de modo vago, ao cumprimento de deveres e à cobrança de direitos – como se a cidadania fosse chegar para qualquer um, pairando acima da realidade econômica e social, política e cultural dos sujeitos – é conservar muitos dos preconceitos atuais no estado em que estão.

Em apoio à promoção da cidadania da primeira à quarta série, os PCNs como ação de “fortalecimento à cidadania” fornecem informações jurídicas e sugerem ações que promovam nos alunos o conhecimento de direitos e deveres, de acordo com as leis vigentes no País. Para a construção da cidadania, ao longo dos PCNs, pouco se discute a possibilidade da organização política de grupos, reunidos e movidos por interesses comuns. Tal fato dá a entender que o exercício da cidadania é opção de cada um. Basta querer. Da cidadania, de um modo geral, passou-se à diferenciação do ser e não à aproximação dele a outro; passou-se à valorização das etnias, da cultura e da subjetividade das pessoas, dando-se supostamente ao indivíduo o lugar de protagonista.

De acordo com os PCNs (2000, p. 16), a escola para a promoção do exercício da cidadania, deve fomentar:

I - o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo;

II - a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade; III - a formação de atitudes e valores;

IV - fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social.

Enquanto, nas escolas, se discute cidadania nos moldes sugeridos pelos PCNs, à revelia dos debates e dos esforços em curso,17 no mundo do trabalho o indivíduo não vale por si, mas pela sua capacidade de se mostrar ágil, produtivo, criativo, valorizado pela habilidade de suprir necessidades da empresa, em meio à competitividade estabelecida no mercado por outras do mesmo ramo. A desvalorização do ser humano, na lógica capitalista, se torna ainda mais evidenciada com o desenvolvimento

17 Para maior conhecimento dessas ações, vale consultar o Plano Nacional de Educação, seguido pelos

planos estaduais e municipais, elaborados em sintonia aos acordos traçados na Conferência de Jomtien (1990) e Dacar (2000).

tecnológico. A tecnologização nas empresas tem reduzido a necessidade da mão-de- obra humana e lançado ao desemprego um expressivo número de pessoas, afetando os adultos e os jovens que desejam ingressar ou se manter no mercado de trabalho. A falta de trabalho significa, também, ausência de remuneração. Sem uma renda fixa, as famílias ficam vulneráveis, afetando a estrutura e qualidade de vida das famílias. O desemprego tem trazido, entre os alunos da EJA, questionamentos sobre o papel da escola e sobre a sua real necessidade.18