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CAPÍTULO I – A EJA NA HISTÓRIA BRASILEIRA

1.4 O conceito de Educação de Jovens e Adultos

Para a Educação, nos dias atuais, de um modo geral, se difunde e se aceita um conceito amplo que se relaciona à existência humana, em toda a sua duração e em todos os seus aspectos.

A educação é a transmissão integrada da cultura em todos os seus aspectos, segundo os moldes e pelos meios que a própria cultura existente possibilita. O método pedagógico é função da cultura existente. O saber é o conjunto dos dados da cultura que se têm tornado socialmente conscientes e que a sociedade é capaz de expressar pela linguagem. Nas sociedades iletradas não existe saber graficamente conservado pela escrita e, contudo, há transmissão do saber pela prática social, pela via oral e, portanto, há educação. (PINTO, 2000: 30).

Apesar da abrangência do conceito de Educação, no de EJA, até o presente, no Brasil, o conceito dominante a reduz à escolarização dos que não tiveram oportunidade de concluir o Ensino Fundamental na infância ou na adolescência, seguindo, basicamente, o esboço conceitual traçado por Vanilda Paiva, em 1983.

Ao tratar da educação dos adultos, nós a havíamos conceituado como toda educação destinada àqueles que não tiveram oportunidades educacionais em idade própria ou que a tiveram de forma insuficiente, não logrando alfabetizar-se e obter conhecimentos básicos correspondentes aos primeiros anos do curso elementar (p.16).

A definição de Educação de Adultos, elaborada por Paiva, há mais de vinte anos, está presente à concepção atual de diversos segmentos que fazem a EJA no Brasil e pode ser reconhecida na redação das legislações em vigor: Constituição Federal de 1988; Lei nº 9.394/96; Parecer CNE/CEB nº 11/2000.

18 Neste sentido, é muito ilustrativa a fala de alunos da Educação de Jovens e Adultos, do Município de

Bayeux (PB), registrada pela UNESCO, em pesquisa diagnóstica da EJA, realizada em fins de 2004. Eles dizem que hoje, ante o desemprego, tanto faz ter ido ou não à escola. Mas reconhecem que, uma vez empregados, saber ler e escrever faz toda a diferença.

A Constituição Brasileira de 1988 assegura a todas as pessoas o direito à Educação Fundamental. Seu Art. 208 expressa: “[...] é dever do Estado a garantia do ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria.”

Maria do Socorro Emerenciano, ao refletir na Constituição Brasileira e ao tratar do Art. 4, da Lei 9.394/96, que assegura a Educação como direito subjetivo de todos e, por conseguinte, reclamável em qualquer tempo, define Educação de Adultos como “[...] termo genericamente adotado para categorizar a clientela não alfabetizada ou com baixo nível de escolaridade.” (EMERENCIANO, In: SILVA, 1998, p.169).

De acordo com a Lei 9.394/96, a EJA é compreendida como uma modalidade da Educação Básica nas etapas do Ensino Fundamental e Médio. Timothy Ireland, Margarida Machado e Vera Ireland, ao se referirem à especificidade da EJA, inspirados no Parecer CNE/CEB nº 11/2000, apresentam a seguinte explicação:

A EJA é uma modalidade da Educação Básica, nas suas etapas fundamentais e média. O termo modalidade é diminutivo latino de modus (modo, maneira) e expressa uma medida dentro de uma forma própria de ser. Ela tem, assim, um perfil próprio, uma feição especial diante de um processo considerado como medida de referência. Trata-se, pois, de um modo de existir com característica própria. (IRELAND, MACHADO & IRELAND, 2005, p. 93).

IRELAND, MACHADO & IRELAND defendem a ideia de que, atualmente, a base legal existente no Brasil permite avanços significativos tanto no campo das políticas públicas quanto no da materialização de ações que considere a realidade dos sujeitos que freqüentam a EJA, seja para estabelecer um plano nacional de educação, no propósito de enfrentar o analfabetismo, seja para atender aos sujeitos na sua necessidade de escolarização, tendo no foco a peculiaridade dos sujeitos, que são pessoas em sua realidade de vida.

A EJA, tratada como uma modalidade específica de escolarização, está ligada a realidades sociais de sujeitos, as quais, na visão de PAIVA (1983:16), são pouco consideradas pela conotação classista da seletividade do sistema de ensino brasileiro. A respeito disso, Marta Kohl Oliveira (2001) afirma que esta é uma temática que se estabelece voltada a um público específico, composto de jovens ou adultos trabalhadores ou filhos de trabalhadores, com baixo nível de instrução escolar, com uma história de vida ligada a ocupações profissionais não qualificadas, urbanas ou rurais, com passagem curta e não-sistemática pela escola.

Refletir sobre como esses jovens e adultos pensam e aprendem envolve, portanto, transitar pelo menos por três campos que contribuem para a definição de seu lugar social: a condição de “não-crianças”, a condição de excluídos da escola e a condição de membros de determinados grupos culturais (OLIVEIRA, 2001, p.16).

Logo, a EJA tem um significado específico. Ela não se refere à educação de todos os adultos nem à de todos os jovens nem tampouco quer discorrer sobre qualquer ação educativa que se destine aos jovens e aos adultos. Ela se refere a ações específicas. Muitas destas estão ligadas a práticas de escolarização, algumas destinadas ao trabalho de alfabetização, outras vinculadas ao Ensino Fundamental ou ao Ensino Médio, de teor compensatório, dirigidas àqueles que deixaram de freqüentar a escola ou a freqüentaram insuficientemente, durante a infância ou adolescência, e, em sua maioria, são advindos das camadas menos favorecidas da sociedade.

A clientela da EJA, segundo o Parecer CNE/CEB 15/98, é feita dos seguintes integrantes:

[...] adultos ou jovens, via de regra mais pobres e com vida escolar mais acidentada. Estudantes que aspiram a trabalhar, trabalhadores que precisam estudar, a clientela do ensino médio tende a tornar-se mais heterogênea, tanto etária, quanto sócioeconomicamente, pela incorporação crescente de jovens adultos originários de grupos sociais, até o presente, sub- representados nesta etapa da escolaridade (In: SOARES, 2002, p.39).

A identificação dos educandos da EJA, aliada à consciência dos desafios à Educação postos nas sociedades contemporâneas, leva a deduzir que a escola desses jovens e adultos terá que ser distinta daquela pensada para crianças. Isso de modo mais evidente quando se consideram os vínculos da aprendizagem com as experiências de vida e o sentido que os conteúdos de matriz escolar têm na vida do adulto, em face das demandas postas cotidianamente.

Para maior compreensão dessas demandas, vale lembrar, mais uma vez, que a sociedade atual é pós-industrial, grafocêntrica, competitiva e excludente. É um mundo que impõe a compactação do tempo, cobra eficiência e não tem tolerância para com o erro, imperícia ou demora. E ainda, nele: como bem define Lyotard (1998), impera a realidade operativa e tecnológica, na qual o conhecimento torna-se a principal força de produção. Hoje, cada vez mais, nas tarefas do dia-a-dia, se vê o avanço das tecnologias, o qual faz da leitura e escrita ferramentas indispensáveis à execução de diversas tarefas, sejam elas domésticas ou ligadas ao mundo do trabalho.

O letramento das sociedades contemporâneas colocou para todos a necessidade de saber ler e escrever. Mesmo quem antes não havia manifestado o desejo de se

escolarizar ou mesmo quem dizia já ter “concluído os estudos”, diante dos desafios de hoje, desenvolve a necessidade de freqüentar ou de retornar à escola. Os jovens e adultos que não tiveram a oportunidade de freqüentar a escola na infância e a buscam agora, fazem-no na esperança de recuperar o “tempo perdido”, sob a alegação de que na escola podem enfrentar, com melhores condições, o ranking do mercado de trabalho e obter melhoria da auto-estima, melhoramento na convivência social, maiores possibilidades de comunicação e expressão, maior independência em ações do cotidiano que cobram o domínio da leitura e da escrita. Em suma: o desejo de uma maior escolarização está vinculado ao sonho de, por meio dela, adquirir elementos que permitam melhorar a qualidade e as condições de vida.

Ainda no tocante à necessidade da escolarização, há de se considerar que a estruturação de códigos escritos, na atualidade, é ampla; envolve linguagens diversas e de possibilidades quase ilimitadas. O uso deles está presente, praticamente, a todos os espaços da vida social moderna. O avanço das tecnologias da informação facilitou a produção e o intercâmbio de dados, interferindo no funcionamento da economia dos países e dos lares, no relacionamento das pessoas, nas formas de lazer, nos modos de as sociedades se organizarem, nas formas de produção e manipulação de conhecimentos. Revolucionou o mundo, de modo que se denominaram as sociedades atuais como sociedades da informação.

Nesse cenário, o tempo de parar de estudar deixou de existir. Aprender sempre passou a ser uma necessidade de todas as pessoas, por ser, muitas vezes, resultado da combinação de experiências de vida com habilidades adquiridas durante a formação escolar e da combinação com desafios postos pelo dia-a-dia. Essa realidade traz a perspectiva do “aprender ao longo da vida”, sendo a escolarização, nesse caminho, um dos pilares fundamentais. A aprendizagem como habilidade a ser desenvolvida ao longo da vida remete à necessidade de se repensar o conceito restrito de EJA, atrelado a práticas compensatórias de escolarização, relacionadas com o Ensino Fundamental e Médio.

Em Hamburgo, em 1997, a V Conferência Internacional sobre Educação de Adultos (V CONFINTEA), ampliou o conceito de EJA para além da escolarização, incluindo uma multiplicidade de processos formais e informais de aprendizagem e a educação continuada, ao largo da vida.

A educação de adultos engloba todo o processo de aprendizagem, formal ou informal, onde pessoas consideradas “adultas” pela sociedade desenvolvem suas habilidades, enriquecem seus conhecimentos e

aperfeiçoam suas qualificações técnicas e profissionais, direcionando-as para a satisfação de suas necessidades e as de sua sociedade. A educação de adultos inclui a educação formal, a educação não formal e o espectro da aprendizagem informal e incidental disponível numa sociedade multicultural, onde os estudos baseados na teoria e na prática devem ser reconhecidos.

O alargamento do conceito de Educação de Adultos, promovido na V CONFINTEA, como destaca Maria Clara Di Pierro (2004), influenciou o Parecer do relator das Diretrizes Curriculares Nacionais, mas não alterou a maneira de ver a EJA como educação compensatória, presente entre educadores e gestores brasileiros da educação. Contudo, ela afirma:

Conferir prioridade à escolarização é uma postura razoável em um país com elevado analfabetismo e população pouco instruída, mas a hegemonia da concepção restrita de educação de pessoas adultas dificulta explorar o potencial formativo dos ambientes urbanos e de trabalho e dos meios de comunicação e informação, e inibe a adoção de políticas intersetoriais que articulem o ensino básico às políticas culturais, de qualificação profissional e geração de trabalho e renda, de formação para a cidadania, de educação ambiental e para a saúde (DI PIERRO, 2004, p.14).

A redução conceitual da Educação de Jovens e Adultos é um ato de intenções e de implicações políticas, reflexo da indiferença histórica, praticada no País, para com ela, tida como não prioritária. O próprio Ministério da Educação e Cultura (MEC), nos últimos anos de 1990, defendeu a idéia da educação de adultos como um “desvio”, fruto do fracasso do Ensino Fundamental de crianças. Segundo essa opinião, tão logo fosse eficiente a escola oferecida a crianças e adolescentes, cessaria a necessidade da existência de EJA no Brasil. Esse raciocínio em nada confere a idéia de uma educação que acompanhe a pessoa ao longo de sua vida. Desconsidera a realidade do mundo contemporâneo, o qual cobra do indivíduo – conforme consta no Relatório para a UNESCO, da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI (DELORS, 2001) – habilidades para a convivência com os desafios e com a complexidade deste início de século.

Para os não alfabetizados e subescolarizados bastariam os programas compensatórios de assistência social, como o Programa Alfabetização Solidária, sem maiores responsabilidades do referido Ministério (PAIVA. In: OLIVEIRA E PAIVA, 2004, p.32).

De acordo com Jane Paiva, após a Conferência de Hamburgo, duas vertentes passam a configurar a Educação de Jovens e Adultos:

A primeira, a da escolarização – assegurando o direito à educação básica a todos os sujeitos, independente da idade, por passar a ser vista a educação

como direito humano fundamental; a segunda, a da educação continuada, entendida pela exigência do aprender por toda a vida, independente da educação formal, incluindo-se nessa vertente as ações educativas de gênero, etnia, de profissionalização, questões ambientais, etc., assim como a formação continuada de educadores, estes também jovens e adultos em processos de aprendizagem. Essa vertente passa a constituir o verdadeiro sentido da EJA (PAIVA, 2004, p.31).

Esta autora destaca, ainda, em relação à Educação de Jovens e Adultos, a necessidade de considerar que, mediante a aprendizagem, as pessoas se produzem, constituem suas identidades, humanizam-se. Vale lembrar, também, que a constituição dos seres humanos como sujeitos e aprendizes não é isolada do mundo onde estão inseridos. Assim, é importante ter em mente o desenvolvimento nas ciências, nas artes, nas formas de expressão e linguagem, na globalização, na revalorização de culturas locais e nos indivíduos ímpares, peculiares, necessitados de atenção, carinho, respeito e compreensão.

Portanto, a EJA não se reduz a uma modalidade compensatória de escolarização. Mesmo que seja restrita às ações da escola, não se limita a procedimentos metodológicos padronizados, de cunho tecnicista, nem se prende a grades de conteúdos identificados como promoção de uma ou outra série. A EJA, por se dirigir majoritariamente aos que, historicamente, tiveram direitos negados – o da escolarização, o da saúde, o de uma moradia digna, entre outros – é, como defendeu Paulo Freire, no conjunto de sua obra, uma intervenção de repercussão sociocultural e política. Mesmo como prática de escolarização ao se dizer destinada à promoção da cidadania, terá de ser distinta das demais modalidades de ensino. Isso porque a ação da escola não existe em função de si mesma nem se faz educação de qualidade se estiver isolada dos desafios postos aos sujeitos que a procuram.

Jovens e adultos, quando vão à escola, fazem-no em função de aprender algo que possa ser aplicado à sua vida diária e a sonhos cultivados. Para esses, a escola é um lugar excelente onde se exercita a leitura e a escrita. É, também, ambiente de convívio social, do encontro com outras pessoas, lugar de estudos, os quais representam a esperança de obtenção de maior reconhecimento social e a probabilidade de um melhor posto de trabalho. O trabalho, como afirma Jamil Cury no Parecer CEB 11/2000, tem relação mediata ou imediata com a igualdade e com a desigualdade social.

Sendo a EJA um campo abrangente de intervenções com o propósito de auxiliar as pessoas a constituírem-se aprendizes para melhor viver no cenário das sociedades do presente, com ênfase no exercício da cidadania e na construção de condições para uma

melhor qualidade de vida, como escolarização carrega o desafio de estabelecer um currículo que vá além da mera codificação e decodificação de mensagens escritas. Assim, a escola atrai para o cenário das aulas da EJA conteúdos que tragam ligação direta com o exercício dos direitos social, político e civil, tripé que compõe a cidadania plena.

As exigências postas à escola, no sentido de torná-la um instrumento a serviço das populações para que estas exerçam sua cidadania, têm desafiado o ensino a promover repercussões não só no campo da capacitação de mão-de-obra mais bem qualificada para o mercado de trabalho, mas também no de uma aprendizagem significativa para a vida das pessoas em todas as suas dimensões. A formação escolar é convidada a discutir o mundo real e as aplicações do conhecimento no cotidiano, trazendo todas essas questões implicações na atualização do conceito de Educação de Jovens e Adultos.