1. PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS DA “CIDADE DE DEUS”
1.3 Livre-arbítrio
1.3.2 O arbítrio só é livre na verdadeira justiça
voltar para si é capaz de aprender o que é justo. A justiça na visão agostiniana é uma noção (modelo) transcendente e, por isso, é relacionada não só com a ideia de distribuir o que compete a cada um, mas também com a de inserir o elemento de amor mútuo (amor doação: em relação ao outro). Assim se diz que a alma justa é
aquela que, segundo os ditames da ciência e da razão, dá a cada um o que a cada um pertence, na vida e nos costumes, mas também esforça-se por viver eles mesmos conforme a justiça, distribuindo a cada um o seu, não devendo nada a ninguém, a não ser o amor mútuo.222
Uma justiça que não se fundamenta em distribuir a cada um o que é seu e na doação por meio do amor não pode ser considerada justa. O homem é tanto mais livre quanto mais se aproxima dessa forma (modelo) de justiça. O arbítrio (decisão) da pessoa humana é injusto em escolher determinados bens em detrimento de outros para alimentar o prazer pessoal (amor egoístico) de maneira a originar um mau hábito (vício) até a degradação da necessidade (paixão desordenada) não necessária à ordem.
É necessário ascendermos à lei imutável que está acima de nossa razão. O ser humano não é capaz de, per si, conquistar a verdade. Essa é alcançada com a ascendência da alma. Do mundo sensível vamos ao mundo inteligível e deste a uma Verdade imutável. Para Santo Agostinho, o espírito (intelecção) está sujeito ao erro e para fundamentar uma justiça transcendente diz que “existe acima de nossa mente uma lei imutável chamada Verdade”223. O
homem pode conhecê-la, mas não julgá-la, pois o ato de julgar a modificaria, o que significaria dizer que poderia ser de outro modo224.
Acontece que, a lei eterna é e nada pode lhe ser acrescentado na medida em que imutável e perfeita. Questionar a existência ou o conteúdo da lei eterna seria questionar a verdade, a criação e a ordem estabelecida por Deus. A liberdade é um bem como diz o pensador cristão ao ter origem em Deus, o Sumo Bem. Caso essa liberdade questione sua origem de bem ao dizer que pode tudo, inclusive, ignorar a verdade que a alicerça, está a se privar de um bem considerado superior e se tornar escrava do pensamento humano exclusivamente, a significar que o homem se torna senhor de si próprio (soberba).
1.3.2 O arbítrio só é livre na verdadeira justiça
222AGOSTINHO, Santo. A Trindade.Tradução do original latino e introdução Agustinho Belmonte; revisão e
notas complementares Nair de Assis Oliveira. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 276.
223AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis
Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 82.
224AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis
O desvirtuamento da noção de liberdade pode ocasionar a privação de bem, ou seja o mal. Esse mal deve ser evitado pelos homens e pelo Estado. Pelos homens para que não haja a limitação do homem ao próprio homem, a excluir a ascendência dos sentidos à inteligência e desta à lei imutável. Pelo Estado para que a justiça não só distribua a cada um o que é seu (justo concreto), mas também legitime as leis civis conforme o amor mútuo. Categoricamente Agostinho resume esse mal da liberdade sem verdade que origina a soberba no homem e a falta de justiça verdadeira ao Estado nos seguintes termos: “(...) o mal reduz-se na emancipação em relação à justiça, e na servidão em relação ao pecado”225.
O homem será livre quando estiver liberto do erro e isso só é possível se nos socorrermos de uma realidade objetiva transcendente ao homem. Não é possível professarmos uma liberdade (falsa) que se baseie nas circunstâncias, interesses, conveniências, verossimilhanças e probabilidades. Não deveríamos utilizar o termo justiça para expressar uma situação que não se paute pela verdade. A liberdade não sobrevive sem a verdade na medida em que a verdade nos garante o bem supremo – no Estado, o bem comum por meio da vida beata (feliz) – enquanto a concupiscência do corpo nos priva dos bens superiores até o nada.
O doutor de Hipona diz claramente que a perfeita justiça é aquela que “nos leva a amar mais o que mais vale e amar menos o que vale menos”226. A liberdade humana implica, então,
no autodomínio. O autodomínio significa a capacidade de resistir às paixões para buscarmos a totalidade do bem, isto é, a Verdade. Se não somos aptos a resistir às paixões – causa da deformidade da ordem -, não somos livres. A vontade desordenada (paixão) causa a deformidade da beleza da criação e, no homem, molestação227 do próprio corpo.
As paixões nos privam do amor. As paixões são vontades egoísticas (de si para si) enquanto o amor é doação (de si para outro). Assim se confirma que “não há nenhuma outra realidade que torne a mente cúmplice da paixão a não ser a própria vontade e o livre- arbítrio”228.O domínio das paixões é necessário para que o homem saiba amar ao outro de
modo a consubstanciar a concórdia no Estado, amizade perfeita, entre os homens, a qual tem por resultado a paz. A justiça nos moldes agostinianos só é justiça se se cumpre o elemento do
225AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis
Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 103.
226AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis
Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 119.
227Cf. AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis
Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 112.
228AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
amor mútuo. Dar a cada um o que é seu não é suficiente. Só há justiça no Estado se há liberdade na Verdade que, por sua vez, é a lei imutável consistente no amor (justiça perfeita). Com esses atributos da justiça teremos a ordem justa. O homem é apto a buscar e conseguir essa justa ordem pessoal e socialmente ao ter o autodomínio sobre as paixões com a força do espírito (mente)229.
O filósofo afirma que existe uma ordem dos seres e o faz para distinguir as plantas, os animais e o homem e, com isso, dizer que o mal procede da má escolha da liberdade humana. As plantas, os animais e os homens têm vida. Os animais e os homens têm em comum a capacidade de ver e sentir os objetos corporais. O que diferencia os homens dos animais é a razão, bem como algumas tendências de vontade, como, por exemplo, o riso, o amor aos elogios e à glória. O homem é livre se a razão submete as paixões.
Dessa forma expressa Agostinho:
Então, quando a razão, a mente ou o espírito governa os movimentos irracionais da alma, é que está a dominar na verdade no homem aquilo que precisamente deve dominar, em virtude daquela lei que reconhecemos como sendo a lei eterna.230 A liberdade humana deve escolher entre os vícios ou as virtudes. Se por um lado o mal surge da má vontade que ocasiona as paixões desordenadas até o nada pela via do hábito e da necessidade, por outro temos a opção de “viver com retidão e honestidade, para atingirmos o cume da sabedoria”231. Podemos dizer que aquele que se deixa governar pelas virtudes é um
homem de boa vontade.
A boa vontade é uma característica da ordem no próprio homem. O homem foi criado para ser livre de modo a buscar o encontro com Deus. A alma deseja buscar seu repouso na sabedoria. A razão humana deseja assim conhecer a lei eterna. A vontade humana reconhece que precisa de um bem que não pode alcançar em si e por si mesma. Ela é necessária para mover o homem para o bem na medida em que o homem tem o livre-arbítrio, mas é limitada para encontrar o bem supremo. A ideia de que o homem pode alcançar o bem por si e em si próprio é considerada uma falsa liberdade e, pois, uma má vontade.
1.3.2.1 A liberdade e as virtudes
229A alma é a parte do homem que pensa (razão). A parte superior da alma é o espírito ou a mente, sede de
sabedoria. A inteligência (intelecto) é a razão superior do homem capaz de intuir e compreender as razões eternas.
230AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 47.
231AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
Dessa maneira, o homem é livre para usar das virtudes para fruir de Deus. Se as pratica, verifica-se a boa vontade e o bem viver. A doutrina cristã ensina os homens a seguirem as virtudes a serem seguidas pelos homens de boa vontade e as divide em teologais e cardeais. As primeiras são a fé, a esperança e a caridade232. Com a fé se crê no que não se vê (Deus), com a esperança se tem certeza dos bens superiores (eternos) e com a caridade se ama a Deus e em Deus ao próximo. A fé serve para crermos em Deus criador, ordenador e sumo bem, a esperança para confiarmos nos bens superiores e a caridade para amar a Deus e ao próximo. Nas palavras de Santo Agostinho:
A honestidade e os costumes têm por fim o amor de Deus próximo; a verdade da fé visa ao conhecimento de Deus e do próximo. Quanto à esperança, cada um a tem diversamente, em sua própria consciência, conforme sente que avança em direção ao amor e ao conhecimento de Deus e do próximo.233
A par dessas virtudes, existem as chamadas cardeais: prudência, fortaleza, temperança e justiça. A prudência é “o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas”234. A fortaleza é “a disposição da alma pela qual nós desprezamos
todos os dissabores e a perda das coisas que não estão sob nosso poder”235. A temperança é “a
disposição que reprime e retém o nosso apetite longe daquelas coisas que constituem uma vergonha o ser desejadas”236. A justiça é “a virtude pela qual damos a cada um o que é
seu”237.
Essas virtudes cardeais constituem a síntese das virtudes morais na visão agostiniana. A importância delas está em afetar diretamente os costumes das diferentes culturas. A própria religião cristã constitui uma cultura viva. As virtudes são uma escolha dos homens por estarem ligadas à Verdade. Assim como a verdade, as virtudes não se impõem. Isso não quer dizer que o Estado não possa punir condutas criminosas para estabelecer a ordem novamente. Como já visto e da mesma forma, nem toda conduta baseada em atos imorais (vícios) é punida, mas nem por isso a lei civil perde sua força e importância ao punir outros atos igualmente delituosos. O Estado não pode obrigar as pessoas a aceitarem as virtudes, mas
232Cf. AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus,
2002, p. 80.
233AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002,
p. 165.
234AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 57.
235AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 58.
236AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira.5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
p. 58.
237AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,
pode punir os atos delituosos para manter a paz. No mesmo sentido, o Estado não pode obstaculizar a prática das virtudes nem obstaculizar a busca da verdade.