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1. PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS DA “CIDADE DE DEUS”

1.3 Livre-arbítrio

1.3.5 A liberdade e a ordem dos bens

1.3.5.1 A ordem dos bens e os sistemas políticos

O Estado que se dirige pelos bens inferiores e ignora ou cria obstáculos para o conhecimento da verdade imutável é um Estado infeliz. O excesso dos bens inferiores (luxúria, ambição, avareza, louvor, honras) no Estado é uma privação de bem (mal) porque desconsidera os bens superiores estampados, principalmente, nas virtudes. Em relação a estas, não a perdemos contra a nossa vontade e, por isso, são bens superiores. As virtudes são o caminho para a Sabedoria que, por sua vez, é a única que pode oferecer a felicidade. As virtudes, a felicidade e a Sabedoria são realidades objetivas que independem da opinião humana para existirem.

O que o doutor da Igreja propõe não é uma redução das coisas do mundo, inclusive do Estado, à Igreja, mas, sim, uma aderência aos bens que podem ser conhecidos pela razão a partir da ordem dos bens. Nessa medida, Agostinho abre a acepção de Estado para as dimensões da escatologia, muito embora não tire nada do conteúdo temporal. Ao contrário, os elementos presentes na humanidade como o livre-arbítrio e o mal são levados em conta a todo o momento.

A escatologia afirma que a vida humana tem um sentido. O homem tem um destino certo de comparecer ao juízo de Deus (Verdade). Como na visão agostiniana o Estado é um conjunto de homens que vivem unidos por um vínculo comum por meio das leis temporais, a escatologia reflete na história dos Estados, embora tenham um significado exclusivamente histórico por ser realidade separada e autônoma em relação à natureza de Deus. Logo, o Estado também tem um sentido.

Com efeito, tanto o homem quanto o Estado devem se orientar pela Verdade. Os homens que conhecem a Verdade e deixam se guiar por ela devem modelar o mundo visível segundo essa mesma Verdade, particularmente, o Estado. A formação de um Estado com base nos bens superiores tem a capacidade de induzir uma cultura do bem, isto é, cultivar laços humanos segundo valores lastreados na Verdade aptos a fomentar e educar a sociedade em bases comuns. O filósofo da antiguidade defende uma ontologia das coisas que serve de base comum para a sociedade. Sem uma base comum, não há uma unidade no Estado e, consequentemente, a finalidade – o bem comum – fica prejudicada.

Assim, podemos dizer que os sistemas políticos quaisquer que sejam – embora a democracia pareça atender mais os objetos da justiça social na medida em que cada homem é

um ser social detentor de uma parcela do poder (princípio da participação) de acordo com as leis civis (princípio da subordinação) – é uma atitude de conduta humana. E se é uma atitude de conduta, os bens devem se pautar pela busca dos bens superiores e pelo encontro com a Verdade, assim como as leis civis não devem entrar em contradição com a lei natural.

Qualquer sistema político deve atender as exigências da Verdade. Isso significa que a moral agostiniana sobrepaira quaisquer sistemas políticos de poder. Isso quer dizer que a conduta das pessoas não será moralmente legítima somente por ser produto de um sistema político, mesmo considerando as nuances de tomada de decisões dentro do Estado, como, por exemplo, aquelas tomadas institucionalmente pelo parlamento ou pelo judiciário. Acima das políticas seculares – muitas vezes sórdidas – está a Verdade. Vimos que as leis civis quando não visam o bem-comum tendem a servir como instrumento de dominação em contraposição à liberdade, que, por sua vez, é um bem.

Essa Verdade traz consigo uma nova ética de um pensamento cujo conteúdo está no transcendente. O Estado agostiniano é marcadamente ético, na medida em que as leis temporais não podem estar em contradição com a lei natural comum a todos os homens, antes deve atender às exigências desta. Isso também não quer dizer que se está a querer influir na realidade por meio de imposição de ideias (ideologia). A ideologia carrega consigo um certo ar de dominação. Como dissemos, a ética agostiniana é transcendente e fundada num princípio vivo (Deus) como realidade autônoma e distinta da natureza humana, a não depender da vontade humana para conformação. O homem, por vontade própria, pode se conduzir para esta ética de acordo com os princípios da subordinação (submissão à ordem) e da participação (o homem participa da inteligência divina – Verdade – pelo entendimento).

Não se trata de ideias no sentido de “verdades” sujeitas à mutabilidade conforme as circunstâncias, pois não atendem a nenhum interesse de momento. A ética agostiniana é uma realidade objetiva, não própria e exclusiva da inteligência humana, que, por sua vez, está sujeita ao erro. Nem é uma ideologia como protótipo de conduta300 que não deixa margem de

300Pensamos aqui em Estados totalitários como o nazismo ou o comunismo. O primeiro desprezou a verdade transcendente e procurou fundar um Estado como base em conceitos puramente humanos, como, por exemplo, a eugenia. O segundo procurou obstaculizar a verdade transcendente ao não permitir o culto da religião verdadeira. Pensamos também na democracia que em nome de uma ética da tolerância acaba impondo a ditadura do relativismo, pois toma os bens inferiores, por exemplo, o prazer e a utilidade, como critérios últimos da decisão humana, a estabelecer uma falsa ideia de liberdade sem lastro na verdade. Enquanto o nazismo e o comunismo tolheram a liberdade humana, a democracia pode falseá-la. Talvez o maior erro da democracia seja expressar a liberdade como bem unicamente fabricado pelo consenso comunal ou concordância institucional em bases unicamente humanas de modo que seria um instituto criado a partir do direito posto pelo legislador ou construído pelo judiciário com influência do meio social (consenso), a definir o que é a liberdade. Portanto, exclui-se a base natural da criação e da ordem em que a liberdade está inserida e sujeita. É um bem definido e delimitado pelo homem, sem base natural ou pré-jurídica, ou seja, sem estar subordinada à ordem da criação.

escolha (dominação), de uma forma ou de outra, para a decisão segundo a liberdade, antes é uma verdade que liberta o arbítrio do homem em direção aos bens superiores.

Na visão agostiniana, a liberdade é um dom de Deus, ou seja, um bem que procede de Deus. Como Deus é a Verdade, a liberdade procede desta e, por isso, está ligada àquela. Agostinho sabe que as leis temporais são relativas na medida em que são dirigidas para os bens temporais, os quais são mutáveis, assim como a razão. Por isso, não existe definição definitiva a priori do conteúdo da liberdade com base exclusivamente na força da razão humana, muito embora sua essência (conteúdo) seja imutável (eterna). A definição conclusiva da liberdade ocorre somente pela participação na Verdade e subordinação dela aos bens superiores (prudência, fortaleza, justiça e prudência). Não se nega a possibilidade do ser humano entender a liberdade conforme sua razão (mutável) – e, assim, sujeita ao erro -, assim como não se nega a possibilidade da liberdade ser entendida de acordo com a Verdade. A própria liberdade é um bem inserido na criação e que obedece à ordem natural (é um bem médio), a qual pode ou não utilizar desse bem para alcançar outros bens superiores (virtudes), ou, simplesmente, se voltar aos bens inferiores (por exemplo, o prazer). Para ele, a liberdade como um bem que procede de Deus é condição para a existência do homem livre, inclusive a capacidade do homem em pensar a liberdade só é possível graças a essa mesma liberdade. A integridade do homem comporta a liberdade como um bem que procede de Deus. Se se faz mau uso desse bem, a responsabilidade é do próprio homem (vontade), inclusive ao conceituá-lo unicamente da sua maneira para atender a vontade corrompida e justificar a busca exclusiva dos bens inferiores. Seria ficção, por não haver lastro na realidade, imaginar que a liberdade não seria um bem natural por ter sua fonte na construção na e a partir da razão humana (produto da razão) na medida em que não seria menos verdadeiro partir do pressuposto de que o homem é um ser natural e, por via de conseqüência, sujeito igualmente à ordem natural do mundo. Se o homem está sujeito à natureza, a liberdade como criação sua está também. Cairíamos no mesmo erro se afirmássemos que a vida não é anterior ao direito, mas, simplesmente, definida originariamente por este. Também não seria menos correto afirmar a verdade da natureza do próprio homem de que sempre foi homem. Da mesma forma, não se nega que a liberdade é um bem apto a ir ao encontro de realidades invisíveis (metafísicas), isto é, em busca de bens superiores por meio da razão e pela graça de Deus. Se por um lado, reconhecemos as limitações para encontrar a liberdade verdadeira em virtude da mutabilidade da razão; por outro reconhecemos que a liberdade é um meio apto a alcançar bens superiores imutáveis com o respaldo da Verdade. Enfim, podemos dizer que a liberdade só é completa (una) na busca dos bens superiores.

Por isso, essas verdades, constitutivas da ética, são aceitas (princípio da participação), e não simplesmente impostas aos homens (princípio da subordinação). Não se modificam segundo a realidade mutável, antes são as realidades que se submetem às verdades da criação pela justa ordem natural. Consequentemente, não se trata de impor uma visão única de mundo, antes é a aceitação dos homens das verdades imutáveis pela força da razão (entendimento). Essas verdades implicam os bens superiores, as quais os homens não podem ignorar, pois a razão indaga o próprio homem das razões de seu entendimento.

O fato de o Estado ético agostiniano estar fundado sob a liberdade humana e a verdade inabalável coloca perguntas cruciais na história da humanidade: se Deus sabia dos horrores que um Estado pode causar, como deixou que milhões de pessoas morressem injustamente? Deus compactua com os horrores da guerra? Como conciliar a presciência de Deus com a liberdade do homem durante a história? Se Deus sabe de antemão dos nossos pecados, este ocorre necessariamente, e, não, por vontade própria? Ou não existe a presciência em Deus e, assim, existe um limite para Deus? Enfim, Deus não interfere na história para evitar os males? É desnecessário? Agostinho questiona o co-discípulo Evódio da seguinte maneira: “Então, tudo o que Deus prevê acontece, ao teu parecer, necessariamente, e não de modo voluntário ao homem?”301.

A resposta de Agostinho para o problema entre presciência e liberdade será a conciliação de ambos302, e não a exclusão de um deles. Apesar de Deus saber o que vai acontecer, é necessário que o homem queira (vontade) que aconteça, pois ninguém deseja algo sem o querer. Em outras palavras, a situação objetiva verificada posteriormente não desqualifica a vontade determinante do sujeito anteriormente. A situação futura acontece não por necessidade (causa), mas por vontade livre.

O diálogo entre Agostinho e Evódio gira em torno da questão da felicidade

Pois se Deus prevê tua felicidade futura, e nada pode te acontecer senão o que ele previu, visto que, caso contrário, não haveria presciência. Todavia, não estamos obrigados a admitir a opinião, totalmente absurda e muito afastada da verdade, que tu poderás ser feliz sem o querer.

Ora, a vontade de ser feliz que terás, quando começares a sê-lo, certamente, não te é tirada pela presciência de Deus, que já desde hoje volta-se com certeza sobre tua felicidade futura. Assim também, a vontade culpável se acaso estiver em ti, não deixará de ser vontade livre, pelo fato de ter Deus previsto a existência futura dela.303

301AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 155.

302Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:

Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 200-205.

303AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p.

Além disso, a presciência supõe a vontade livre do homem, pois o objeto daquela é esta304, que, por sua vez, está em nosso poder. Deus sabe os fatos futuros e os prevê necessariamente. Deus prevê os bens e os males sem forçar ninguém a cometê-los e, por isso, a justiça é devida ao autor do mal305. Deus não é causa do mal.

Não haveria mal se não tivéssemos a vontade livre, assim como não haveria retidão de vida se não procedêssemos a nosso juízo (decisão). Sem escolha entre bens, não haveria justiça como medida da ordem criada. Sem livre-arbítrio não haveria a possibilidade de amar a Deus livremente, por vontade. Haveria apenas dominação, pois a vontade não existiria. Onde existe dominação a verdade não prevalece, uma vez que esta se aceita (adere) por vontade própria. Se liberdade não houvesse, Deus nos teria privado de um bem e, consequentemente, isso seria um mal. Como Deus é bom, o livre-arbítrio é necessário, assim como a justiça o é. Se os males existem pela vontade humana, não pensemos que “seria melhor que essas coisas não existissem”, mas, sim, que “elas poderiam ter sido constituídas de outro modo”306.

O filósofo traz um dado importante com a ideia de livre-arbítrio e o problema do mal. Diz que todas as coisas são boas ao procederem de Deus, o Sumo Bem. Não podemos negar que a liberdade seja um bem em si mesmo e o mal fruto de nossa má vontade. O mal é a privação do bem até o nada, ou seja, o “não-ser”. O bem é a posse dos bens até os superiores até a fruição do Sumo Bem, isto é, o “querer-ser”307. Essa norma do “querer-ser” significa

amor pela vida, mesmo a infeliz (melhor do que o nada), e aspiração pelos bens superiores (eternos).

Podemos traduzir a vontade humana pelo “querer-ser” e, mutatis mutandis, a estatal pelo binômio “dever-ser”. Assim como o “querer-ser” é a boa vontade do ser humano em encontrar a Deus, o “dever-ser” é a boa vontade da Cidade terrena encontrar a Cidade Celeste. Por isso, o “dever-ser” deve refletir o mesmo encontro com o bem (Verdade) tal como o “querer-ser”.

Logo, todos os seres lhe devem primeiramente tudo o que são, enquanto natureza existente. Em seguida, aqueles seres que receberam a capacidade de querer, devem- lhe tudo o que lhes é possível para progredir, se o quiserem. Devem assim tudo o que têm a obrigação de ser.

304Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,

2008, p. 159.

305Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,

2008, p. 160-161.

306AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 163.

307Cf. AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus,

(...)

Contudo, é culpado, com justiça, se não fizer o que devia. Ora, é dever fazê-lo quem recebeu uma vontade livre e uma capacidade suficientemente grande para isso.308 A passagem acima liga o “querer” com o “dever” de forma que o homem por sua vontade deve proceder de maneira a progredir como forma de retribuir (dever) a Deus a beleza da criação. O vínculo da concórdia (querer) entre os cidadãos faz com que o Estado edite leis (dever) para a existência deste. Assim, o Estado deve tudo o que tem à capacidade e à obrigação de ser. O Estado deve a felicidade e a paz aos cidadãos. Ao editar leis que guardem as virtudes, está agindo com a devida justiça para a felicidade. As virtudes são os princípios comuns para uma ação comum, independentemente de opiniões pessoais focadas nos bens inferiores (por exemplo, a cobiça como vontade desregrada pelo dinheiro). A liberdade de um se torna a liberdade de todos no Estado, na medida em que centrada na Verdade.

Um Estado tem a capacidade e a obrigação de cuidar dos cidadãos de modo a fomentar as virtudes. Assim como o homem pode evitar o mal com o bem, o Estado pode vencer o mal pelo bem. A pergunta não é se Deus pode evitar os males humanos, mas se o ser humano é capaz de evitar os males de sua vontade praticando o bem. Na obra “Cidade de Deus” (Livro II, Capítulo XXI), Santo Agostinho menciona a opinião de Cícero sobre a república romana na iminência da decadência dos costumes em que existia o aforismo de que seria impossível governar sem injustiça para dizer, ao contrário, que é impossível governar sem muitíssima justiça309 segundo as palavras tomadas de Cipião.

O livre-arbítrio é um bem que procede de Deus para que os homens tenham uma vida reta. O ser humano pode decidir entre permanecer na imanência dos bens inferiores – bens em si mesmos - ou seguir em direção aos bens superiores. As virtudes são o caminho necessário para o entendimento e o encontro com a Verdade, que, por sua vez, é o fundamento daquelas. A liberdade só tem sentido na Verdade na medida em que o homem só se torna livre se não fica preso aos bens inferiores a partir de maus hábitos que geram uma necessidade (desregramento da vontade = paixão). Esses bens inferiores são mutáveis e passageiros (temporais), os quais o homem pode perder contra a vontade própria. Quanto aos bens superiores, diferentemente, os homens não os perdem contra a vontade própria, mas, somente, se não os quiserem. O livre-arbítrio é um dom de Deus para que o homem ascenda em direção aos bens superiores até o Sumo Bem (Verdade). O homem tem a capacidade de progredir em

308AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 202.

309Cf. AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus.Tradução de Oscar Paes Leme. v. I. 10. ed. Bragança Paulista:

razão da vontade. Por querer progredir, o homem deve tudo o que tem a obrigação de ser (integridade). A felicidade consiste, justamente, em levar uma vida reta de acordo com os bens superiores (virtudes).

Assim acontece com o Estado também. Aquele Estado que se orienta pelas virtudes é um Estado melhor do que aquele que foca a esperança nos bens inferiores. O Estado ético é aquele que conforma as leis temporais – relativas por serem dirigidas aos bens mutáveis – à lei eterna ou, ao menos, não entra em contradição com esta. A lei eterna consiste no amor a Deus e ao próximo. A lei natural de evitar o mal, não retribuir o mal com o mal e não fazer ao outro o que não queremos que nos seja feito. Por isso, a ética agostiniana sobrepaira quaisquer sistemas políticos ao se fundar em bens imutáveis, os quais são válidos para todos em todos os tempos. Essa ética é obtida pelas leis civis se tiverem as bases na justiça. A justiça imutável é uma virtude cardeal que retribui a cada um o que é seu como afirmação da ordem natural, a qual os bons e os maus estão sujeitos. Para bons e maus Deus distribui os bens terrestres, mas a felicidade dispensa somente aos bons por justiça. Como a lei eterna traduzida pelo amor só se completa plenamente no fruir de Deus (justiça perfeita), as leis civis devem buscar o caminho das virtudes e se afastar dos vícios que são o desregramento da vontade (paixão) e do apego demasiado dos bens inferiores, o que gera a soberba no homem de pensar que pode construir um mundo fora da ordem da criação a fim de justificar suas más condutas. O Estado não pode obrigar ninguém a amar ou aceitar a verdade, mas pode retribuir as condutas humana com justiça, premiando as boas condutas e punindo as más. O livre-arbítrio é um bem em si, mas como todos os bens da criação, está sujeito à ordem natural e, portanto, à justiça. Os homens podem construir um Estado nos bens inferiores ou se voltar demasiadamente aos bens inferiores e, conseqüentemente, desprezar os bens superiores. Um Estado que se pauta pelos bens superiores é ético porque usa da liberdade para a retidão dos costumes consoante as virtudes, por isso, chamada de virtuoso. Já um Estado que despreza os bens superiores ama desregradamente os bens inferiores de modo a se deixar levar por eles de maneira a corromper a forma ética de Estado, por isso, chamado de corrupto.

O livre-arbítrio do homem pode constituir as formas boas ou más de governo. Na obra “Cidade de Deus” (Livro II, Capítulo XXI), Agostinho narra a questão dos costumes da república romana que estavam decaídos para lembrar a repercussão das más condutas nas formas de governo segundo as definições de Cipião nos seguintes termos:

Como lhes parecesse estar a questão suficientemente discutida, Cipião retorna ao interrompido discurso, recorda e encarece uma vez mais a breve definição que der a de república, que se reduzia a dizer que é coisa do povo. E determina o que é o povo, dizendo não ser toda concorrência multitudinária, mas associação baseada no consenso do direito e na comunidade de interesses. Fincou-se, depois, na utilidade

da definição para os debates. Além disso, infere, das definições que dá, existir república, quer dizer, coisa do povo, quando bem e justamente administrada, por um rei, alguns magnatas ou pela totalidade do povo. Por conseguinte, quando injusto o rei, a quem, à moda dos gregos, chamou tirano, ou injustos os magnatas, cuja conjura disse ser facção, ou injusto o povo, para o qual não encontrou nome apropriado, salvo também se chamá-lo de tirano, a república não era viciosa, como