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Os objetivos das cidades terrena e celeste: paz e felicidade

2. DELINEAMENTOS JURÍDICO-POLÍTICOS DE ESTADO NA OBRA “CIDADE

2.5 Os objetivos das cidades terrena e celeste: paz e felicidade

Nos subtítulos 3.3 e 3.4 mostramos que a intenção de Agostinho era demonstrar a existência e o desenvolvimento das duas cidades do ponto de vista alegórico e temporal através da narração do povo hebreu e dos impérios surgidos no mundo, que se pautaram pela prática do bem ou do mal, em busca de determinados bens (objetos) na história da humanidade segundo a tensão dialética entre dominação e liberdade. A prática do bem nos leva à perfeição e a do mal à nocividade e destruição nas esferas pessoal e estatal.

Já o Livro XIX da obra “Cidade de Deus” é o ponto filosófico central da teoria agostiniana do Estado ético-político. Esse livro é o mais significativo em termos de doutrina sobre um Estado justo (paz e felicidade). A Cidade de Deus enquanto peregrina neste mundo deve refletir a imagem de um Estado fundado na ética. Para argumentar em favor da doutrina cristã de paz e felicidade, o pensador refuta as filosofias consideradas errôneas ou incompletas por ele. A busca pela felicidade está em alcançar o bem e se afastar do mal. De uma forma ou de outra, as filosofias buscam o bem e evitam o mal para chegarem à felicidade, a depositá-la no corpo, na alma ou em ambos, muito embora estejam incompletas e, frequentemente, incorram em erros.

Agostinho classifica os fins de bem e mal em: o soberano bem e o soberano mal. Assim conceitua os fins:

O fim de nosso bem é aquele objeto pelo qual se devem apetecer os demais e apetecê-lo por si mesmo. E o fim do mal, aquele pelo qual se devem evitar os demais e evitá-lo por si mesmo. Desse modo, por fim do bem não entendemos fim

460Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 360.

461Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

consuntível até o não ser, mas perfectível até a plenitude, e por fim do mal, não o que o destrua, mas o que o leve ao mais alto grau de nocividade.462

Agostinho pretende provar o erro de certas filosofias no âmbito da autoridade divina e da razão. A razão serve para convencer os não-crentes. O pensador cristão tem a certeza de que o entendimento de felicidade das falsas filosofias se funda na infelicidade desta vida, cujo número chegava em mais de duzentos e oitenta e oito entendimentos segundo Marco Varrão. Todas essas correntes partem da combinação de quatro coisas que o homem busca naturalmente: o prazer (movimento agradável do corpo), o descanso (exclusão do sofrimento), ambos juntos (denominado simplesmente prazer por Epicuro) e os princípios da natureza identificados no corpo (integridade, sanidade e incolumidade) e na alma (sentido e intelecto)463.

As filosofias buscam alcançar a felicidade a partir desses quatro elementos. Esses não são ensinados, não precisam de conhecimento e não precisam sofrer qualquer juízo ético, a indicar que são bens que antecedem qualquer conhecimento ou ensinamento, pois naturais ao homem. Esses elementos seriam propriedades humanas. O prazer pode estar sujeito, anteposto ou unido à virtude; assim como também o descanso, o prazer e o descanso e os princípios naturais. Cada uma dessas possibilidades representa as opiniões existentes. A partir de quatro elementos associados à virtude, surgem doze combinações ou doze filosofias diferentes. O número doze duplica se inserirmos a variável social, segundo a qual cada corrente deve filosofar por si mesma ou também pelas outras, a somar vinte e quatro. Ao inserirmos a variável verdade (estóicos) ou verossimilhança (neoacadêmicos) do que afirma cada uma das correntes, chegaremos ao número quarenta e oito. Novamente, ao adicionarmos a variável segundo o modo de aderir a essas correntes, ao modo de outros filósofos ou dos cínicos, o número de correntes filosóficas chega a noventa e seis. Os homens podem pertencer a quaisquer destas correntes levando vida ociosa (estudo), de negócios (estudo mais governo da república) ou de forma mista (ora estudando, ora governando). Com essa tríade, o número de correntes filosóficas chega a duzentos e oitenta e oito464.

Agostinho descreve que Marco Varrão reduziu essas correntes nas doze primeiras, pois nestas se procura o soberano bem. Posteriormente, considerou apenas o elemento inicial princípios da natureza, visto que implicam prazer e descanso. Isso contabiliza três

462AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 375.

463Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 375.

464Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

possibilidades: “apetecer os princípios da natureza pela virtude, a virtude pelos princípios da natureza ou ambos, a virtude e os princípios da natureza por si mesmos”465. Marco Varrão,

cujo mestre foi Antíoco, opta pela última alternativa e afirma que a felicidade está no homem, nem em Deus nem nos seres irracionais. Como o homem é corpo e alma, deve buscar os bens da alma e do corpo. O ponto central desta filosofia é a virtude surgir dos princípios da natureza – os quais incluem o prazer e o descanso – de modo que o homem a constitui como “fruto de aprendizagem”466 a partir de si. A virtude subsiste no homem e se encontra nesta

vida.

O bispo de Hipona é categórico em afirmar que as filosofias se referem à opinião dos homens. Segundo ele, as metas (fins) dos bens e dos males do pensamento cristão são respectivamente a vida e a morte eternas. Para conseguirmos o soberano bem, devemos bem viver. Vemos, então, que a vida eterna está ligada com o bem viver. O bem viver não deve ser a virtude entendida pelos homens por estar sujeita à mutabilidade do tempo e a uma felicidade apenas terrena. O corpo pode sofrer deformidade, enfermidade, o peso e outros males. Já a alma possui como bens primários o sentido e o intelecto capazes de perceberem e compreenderem a verdade, mas sujeitos igualmente à defectibilidade, por exemplo, na surdez e na loucura467.

A virtude é o “bem mais útil”468 para o homem viver retamente (bem viver) e, assim,

“reclama para si o primeiro posto entre os bens humanos”469, muito embora chega a

reconhecer que se trata de “fruto tardio da ciência”470 ao não entrar no rol dos princípios da

natureza.

Parece haver uma contradição lógica de entendimento de Agostinho em relação à virtude, a qual estaria entre os bens superiores conforme certa ordem da criação a princípio, mas, ao mesmo tempo, seria fabricada a partir da ciência humana. Em capítulo anterior mencionamos as autênticas virtudes para Agostinho como a prudência, a fortaleza, a temperança e a justiça. A prudência é “o conhecimento daquelas coisas que precisam ser

465AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 379.

466AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 380-381.

467Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 382.

468AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 385,

469AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 383.

470AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

desejadas e das que devem ser evitadas”471. A fortaleza é “a disposição da alma pela qual nós

desprezamos todos os dissabores e a perda das coisas que não estão sob nosso poder”472. A

temperança é “a disposição que reprime e retém o nosso apetite longe daquelas coisas que constituem uma vergonha o ser desejadas”473. A justiça é “a virtude pela qual damos a cada

um o que é seu”474.

No Livro XIX, Capítulo IV, da obra “Cidade de Deus”, Agostinho diz que as virtudes servem para dar testemunho da infelicidade humana de maneira que a temperança põe limite à libido para que a razão não consinta na prática de crimes; a prudência é útil para discernir o bem do mal e, então, indica o próprio mal no mundo; a justiça para dar a cada um o que é seu, a indicar a desordem estabelecida e a fortaleza é útil para dar paciência ao homem diante dos males.

Na verdade, o pensamento agostiniano considera a virtude como a ciência de viver retamente, pois é capaz de encontrar a ordem justa e procedente da natureza a partir do próprio homem que tem na razão475 a possibilidade de conhecer a Verdade. Enquanto essa ciência estiver presa no homem – como o fez Varrão e Epicuro –, as virtudes são enganosas e soberbas ao terem por fim a felicidade terrena. As virtudes – a arte de viver retamente – são autênticas quando tiverem por fundamento racional a Verdade, isto é, quando estiverem além do corpo e da alma do homem. Para tanto, as virtudes são bens dispostos com certa ordem para serem utilizados para o homem viver retamente de modo a constituírem em meios aptos para a verdadeira felicidade. Com efeito, o soberano bem é aquele “perfectível até a plenitude”476. As palavras tiradas do Livro XIX, Capítulo X, da obra “Cidade de Deus” são:

Quando nós, mortais, entre a enfermidade das coisas, possuímos a paz que pode existir no mundo, se vivemos retamente, a virtude usa com retidão de seus bens; mas, quando não a possuímos, a virtude faz bom uso até mesmo dos males de nossa condição humana. A verdadeira virtude consiste, portanto, em fazer bom uso dos bens e dos males e em referir tudo ao fim último, que nos porá na posse de perfeita e incomparável paz.477

471AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira.5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 57.

472AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 58.

473AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 58.

474AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008,

p. 58.

475Já vimos o papel que a graça exerce no homem. O auxílio divino é essencial para o homem. Vimos também

como Agostinho trabalha com o binômio Deus/homem.

476AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 375.

477AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

É significativo o pensamento agostiniano a respeito da virtude como bem útil no mundo para que possamos atingir a paz. A Cidade de Deus, peregrina neste mundo, experimenta dessa paz por meio das virtudes que são o caminho para a perfeição até a plenitude da Cidade de Deus, felicidade completa.

O que o filósofo pretende é elevar a felicidade a patamares em que nenhum mal é capaz de desviar esse objetivo. O bem viver é o meio para se chegar a essa felicidade. Por isso, as virtudes consideradas como bens, que advêm dos princípios naturais, são capazes de alcançar a felicidade terrena; tão passageira como eles. Na cidade terrena, somos chamados felizes quando gozamos de paz tal qual podemos gozar nesta vida478.

Da mesma maneira em que observa a incompletude das virtudes meramente humanas (dos princípios naturais) para a conquista da felicidade verdadeira, reconhece a dificuldade existente na vida social para alcançá-la. Como vimos, Agostinho considera o Estado uma associação de homens unidos por um vínculo comum. Essa união é antevista simbolicamente com a criação do segundo homem (Eva) a partir do primeiro (Adão). Esse elemento da união entre os homens é considerado um bem de modo que todos os homens devem viver de acordo com o vínculo da concórdia ordenada. Mesmo assim, Agostinho, sabendo que “a vida do sábio é vida de sociedade”479, sabe que os laços sociais são permeados de injúrias, suspeitas,

inimizades, guerras, de modo que a paz é transitória e, consequentemente, a felicidade terrena é passageira. Isso se passa no âmbito dos três graus de sociedade humana: casa, cidade e o mundo480. Vimos como houve guerras externas e civis dominaram o mundo e as cidades a partir da diversidade de línguas. A infelicidade é verificada neste mundo de forma inconteste mesmo nas guerras declaradas justas em que uma sociedade se protege contra a injustiça de outro. Igualmente, a amizade em casa, na cidade ou entre os Estados é insegura a ponto de confundir o amigo com o inimigo481.

A infelicidade é tal que pessoas inocentes são vítimas de erros dos juízos humanos que se fazem frequentemente na cidade terrena na medida em que a sociedade humana força e obriga o juiz a julgar, mesmo que em ignorância. Nesse caso, não há maldade do juiz que pratica a justiça com ignorância invencível. De qualquer modo, a justiça humana é falha ao permitir que pessoas inocentes, que não provam suas declarações, sejam condenadas por

478Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 392.

479AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 385.

480Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 389.

481Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

juízos alheios que testemunham a mentira para o crime não ficar impune. Nesse aspecto, a justiça humana é miserável ao não conseguir saber a verdade482.

Já a felicidade verdadeira é a eterna que independe das vicissitudes dos males, mas, dependem das virtudes autênticas fazer bom uso dos males do mundo em direção a ela. A plenitude da felicidade só é alcançada na Cidade de Deus na vida eterna. Agostinho rechaça, então, as filosofias sobre o entendimento da virtude que não sejam compatíveis com esse objetivo de perfeição e plenitude na medida em que a felicidade terrena se funda na infelicidade desta vida (terrena). Neste mundo as virtudes dão testemunho dos vícios e dos males; na Cidade de Deus as virtudes terão a eterna paz. A ética agostiniana é, nesse sentido, dirigida para os fins últimos do homem (salvação) e do Estado (Cidade de Deus) e, por isso, se diz escatológica.

Agostinho diz que a Cidade de Deus encontrará o soberano bem (paz) na vida eterna. Neste mundo, todos os seres aspiram à paz. Mesmo os que guerreiam querem vencer para estabelecer a paz. Podemos dizer que a paz é o fim da guerra. O pensador constata o erro em constituir a paz segundo sua vontade humana, o que equivale a dizer a imposição de condições dos vencedores aos vencidos conforme o entendimento próprio. Os vencidos, por sua vez, submetem-se ao vencedor por medo ou por amor para estar em paz com ele de modo que “todos desejam, pois, ter paz com aqueles a que desejam governar com seu arbítrio”483

A paz humana não é considera paz para o filósofo cristão, pois perverte a ordem das coisas arbitrariamente. Do conceito de paz, como fim do Estado, constitui-se o elemento primordial de formação do Estado: a concórdia ordenada, que é o vínculo de união que une os homens no Estado de maneira a permitir a paz. Essa concórdia é ordenada por seguir a lei da ordem que é “a disposição que às coisas diferentes e às iguais determina o lugar que lhes corresponde”484. A paz é a consequência da ordem. Assim,

a paz do corpo é a ordenada complexão de suas partes; a da alma irracional, a ordenada calma de suas apetências. A paz da alma racional é a ordenada harmonia entre o conhecimento e a ação, a paz do corpo e da alma, a vida bem ordenada e a saúde do animal. A paz entre o homem mortal e Deus é a obediência ordenada pela fé sob a lei eterna.485

482Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 387-388.

483AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 394.

484AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 396.

485AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

No trecho acima se observa que a sabedoria consiste na harmonia entre o conhecimento e a ação para o correto agir. Parece haver uma estreita relação entre essa ética e a lei eterna na medida em que aquela tem seu ponto de referência na verdade. A Verdade ordenou os bens para que sempre exista algum bem na natureza. De fato, a ordem espelha a bondade no ato da criação, isto é, a lei natural. Se há a desordem criada pela vontade – no estabelecimento da paz ao talante humano -, o poder da justiça não lhe é subtraído. Os bens dispostos devem ser bem utilizados pelos homens (a paz temporal, a paz na conservação e união das espécies, os sentidos, etc.) para serem dignos de receberem bens melhores. O conhecimento é parte essencial para a vida e os costumes. Sem ele, a ação torna-se desordenada.

Nessa medida, o bispo de Hipona esclarece que “o uso das coisas temporais relaciona- se, na terra, com a obtenção da paz terrena e, na Cidade de Deus, com a obtenção da paz celeste”486 para exprimir a diferença de natureza entre as duas cidades – dois tipos de

sociedades de homem – refletidas nos fins últimos do Estado: a paz terrena e a paz celestial. A paz terrena o homem é capaz de alcançar por si próprio; a paz eterna necessita da autoridade e do auxílio divino para agir com liberdade sem errar. Neste ponto, a teologia física de Agostinho relaciona fé e razão. A fé implica obediência a Deus como forma de obter o auxílio divino para que o entendimento não se desfaleça em erros que torne o arbítrio submisso aos males, e, não, obediente à ordem. A obediência do homem a Deus, ou seja, do ser à Verdade, ensina a lei eterna ao homem: o amor a Deus, ao próximo e a si mesmo de modo que a ordem a ser seguida é não fazer mal a ninguém em primeiro lugar e fazer o bem quem se possa. A paz, a ordenada concórdia, é obtida dessa forma de modo que não se deve ordenar com desejo de dominação, mas por dever de caridade487. A lei terrena é aquela que domina; e a celeste, aquela que ama.

A liberdade segundo a ordem natural serve para que o homem domine os seres irracionais. A dominação do homem pelo homem não faz parte da ordem natural. Deus não criou o homem escravo de outro homem nem de si mesmo pela força do pecado. Nenhum tipo de domínio, seja dos servos em relação aos seus senhores, seja do homem em relação às paixões, vêm da ordem natural. Contra a lei da dominação, Agostinho apresenta a caridade como instrumento para aniquilar o poder humano e conceder a liberdade. Algumas críticas referentes a uma passagem bíblica do apóstolo São Paulo que aconselha os escravos a

486AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 398.

487Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos.Tradução de Oscar Paes Leme. v. II. 7. ed.

servirem os senhores de coração e de bom grado tem tido uma interpretação em direção à aceitação da escravidão pelo Cristianismo. Agostinho, à época, rebatia essas acusações contra os cristãos e explicava que o sentido preciso era o de libertar o homem enquanto homem até que a injustiça se desfizesse. O pensador resume o raciocínio nos seguintes termos:

Quer dizer, se os donos não lhe dão liberdade, tornem eles, de certa maneira, livre sua servidão, não servindo com temor falso, mas com amor fiel, até que passe a iniqüidade e se aniquilem o principado e o poder humano e Deus seja todo em todas as coisas.488

A igualdade de tratamento em questões temporais existia, mas em relação às espirituais não havia distinção entre os escravos e os filhos de maneira a repreender quem desobedecesse e quebrasse a ordem estabelecida. A concórdia ordenada na casa deveria implicar na paz cívica entre os governantes e cidadãos489 segundo a visão antiga. O que se quer demonstrar é a justiça espiritual que havia no domínio humano.

Da constituição do Estado, composto dos dois tipos de sociedade de homens, emanam leis civis que regulam a vida em sociedade para que haja um mínimo de “concerto das vontades humanas”490 de acordo com os interesses dos bens necessários de tal modo que se

forme a concórdia entre os cidadãos e, assim, advenha a paz terrena. É muito salutar que