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O aspecto interior do pensamento e sua relação com a linguagem,

3. A contribuição das idéias de Vygotsky (2001)

3.2. O aspecto interior do pensamento e sua relação com a linguagem,

Para responder a pergunta nuclear desta tese – por que alguns aprendizes conseguem interpretar o significado da forma uno (referência a 1ª e também a 3ª pessoa do discurso) e outros não, mesmo quando todos passam pelas mesmas experiências em aula? – , é obrigatório que se faça(m) outra(s) pergunta(s): o que acontece anteriormente à produção do aprendiz? Essa

produção (IL) é fruto do quê? Como se processa uma língua estrangeira?

Sabemos que o postulado de Vygotsky (2001) sobre o aspecto interior do pensamento e da sua relação com a linguagem é um modelo de processamento de língua materna. No entanto, ainda que de língua materna, tal estudo contribuiu para responder as perguntas desta tese, porque Vygostsky elaborou uma teoria sobre o que está oculto à observação imediata – o pensamento – e a sua relação com a palavra como um processo dinâmico, “(...) como via do

pensamento à palavra, como realização e materialização do pensamento na palavra.” (Vygotsky, 2001: 482). Visto dessa forma, é importante dizer que ele também sublinhou que a palavra torna possível o pensamento

verbalizado/discursivo, mas nem sempre esse pensamento se materializa na palavra ou mesmo nos enunciados. Para que esses conceitos sejam

melhor compreendidos, Vygotsky compara metaforicamente o pensamento a uma nuvem descarregando uma chuva de palavras; isto quer dizer que nem sempre um pensamento (todo) tem um equivalente imediato de palavras.

Para Vygotsky (ibid.), palavra e pensamento são produtos e não uma premissa da formação do indivíduo. A relação entre a palavra e o pensamento surge, constitui-se, modifica-se e se amplia como um processo dinâmico a partir do desenvolvimento histórico da consciência humana desde a infância. O autor utiliza a palavra consciência para designar a percepção da atividade mental humana de estar consciente. Por exemplo:

Uma criança em idade pré-escolar que, em resposta à pergunta ‘Você sabe o seu nome?’, diz como se chama, não possui essa percepção auto- reflexiva; ela sabe o seu nome, mas não está consciente de que sabe. (Vygotsky, 1996: 78-79)

Os métodos de análise da época decompunham o pensamento e a linguagem em duas partes distintas como dois elementos autônomos, independentes, isolados e estanques, “(...) cuja unificação externa faz surgir o pensamento verbalizado com todas as suas propriedades inerentes.” (Vygotsky, 2001: 396). Contrariando essa metodologia, Vygotsky demonstrou que existe uma unidade complexa entre pensamento e linguagem, o pensamento

discursivo, que forma um todo composto de outras unidades. Cada uma

dessas unidades tem propriedades inerentes ao todo.

A unidade mais simples do pensamento discursivo é o significado da

palavra, que vem a ser uma generalização ou conceito que se desenvolve

funcionalmente como um fenômeno de pensamento. O significado da palavra é, ao mesmo tempo, um fenômeno discursivo e intelectual, porque é a unidade da palavra com o pensamento. Trata-se de um fenômeno discursivo, porque toda palavra desprovida de significado não é palavra, mas sim um som vazio.

Também é um fenômeno intelectual, ou seja, do pensamento, pois o pensamento se relaciona à palavra e nela tenta se materializar e vice-versa.

Essa construção teórica rebatia conceitos da velha psicologia, nos termos de Vygotsky (ibid.: 399), pois para esta, o significado da palavra era constante e imutável e a relação entre a palavra e o significado se dava por uma simples ligação associativa.

A palavra lembra o seu significado da mesma forma que o casaco de um homem conhecido lembra esse homem ou o aspecto externo de um edifício lembra os seus moradores. Desse ponto de vista, o significado da palavra, uma vez estabelecido, não pode deixar de desenvolver-se e sofrer modificações. (ibid.)

Então, o que o autor quer dizer é que o significado da palavra se desenvolve no que diz respeito ao pensamento discursivo pessoal, podendo trazer, em função disso, um desenvolvimento no coletivo, se analisarmos a língua em diacronia. Trazendo essa perspectiva vygotskiana para os dias atuais, podemos interpretá-la como uma crítica a um modelo de comunicação lingüística ideal, na qual se crê que existe uma perfeita simetria entre produção e compreensão. Então, não poderíamos deixar de interpretar também que, nesse postulado vygotskiano, abrem-se portas para estudar a enunciação nesse aspecto dinâmico; principalmente se tomarmos o sentido original que lhe dá Anscombre e Ducrot (1974: 80, apud Fiorin, 1996: 31)32:

A enunciação será para nós a atividade linguageira exercida por aquele que fala no momento em que fala. (...) Ela é, portanto, por essência histórica, da ordem do acontecimento e, como tal, não se reproduz nunca duas vezes idêntica a si mesma (...).33

32

A primeira definição de enunciação, no entanto, pertence a Benveniste (1995): “(...) a enunciação é essa colocação em funcionamento da língua por um ato individual de utilização”. 33 Apesar de concordar com essa afirmação de Anscombre e Ducrot (ibid.), Kerbrat-Orecchioni (1993: 38), assim como outros autores ponderam sobre tal afirmação. Isto é, não se pode radicalizar sobre essa concepção de enunciação, pois dessa forma se tornaria impossível conhecer ou estudar a linguagem, já que teríamos sempre enunciações enunciadas, segundo afirmou Todorov (1970: 3 apud Kerbrat-Orecchioni, ibid.). Então, essa autora define a problemática da enunciação nos seguintes termos: “ (...) es la búsqueda de los procedimientos lingüísticos (shifters, modalizadores, términos evaluativos, etc.) con los cuales el locutor imprime su marca al enunciado, se inscribe en el mensaje (implícita o explícitamente) y se sitúa en relación a él (problema de la ‘distancia enunciativa’). Es un intento de localización como índices de la inscripción en el enunciado del sujeto de la enunciación.”

Segundo Vygotsky (ibid.), para compreender o processo dinâmico

interior da linguagem e do pensamento é necessário exteriorizá-lo

experimentalmente, relacionando-o com alguma outra atividade exterior como, por exemplo, a produção escrita. Dessa forma, torna-se possível uma análise funcional objetiva e não meramente descritiva do objeto. Seguindo essa orientação metodológica vygotskiana de exteriorização experimental relacionada a uma atividade exteriorizada, os testes apresentados no Doutorado captam a idéia de rascunho mental de Vygotsky (2001: 457):

processo complexo que se inicia a partir de uma linguagem interior34 – falar para si mesmo – e, posteriormente, se realiza na escrita – linguagem

exterior. É na passagem da linguagem interior de rascunho mental para a

atividade escrita, produção, que a compreensão é produzida à custa de palavras (a unidade mais simples do pensamento discursivo) e combinações (sintagmas):

(...) a passagem da linguagem interior para a exterior não é uma tradução direta de uma linguagem para a outra, não é uma simples incorporação do aspecto sonoro ao aspecto silencioso da fala, não é uma simples vocalização da linguagem interior, mas a reestruturação da linguagem, a transformação de uma sintaxe absolutamente original, da estrutura semântica e sonora da linguagem exterior em outras formas estruturais inerentes à linguagem exterior. Como a linguagem interior não é uma fala menos som, a linguagem exterior não é linguagem interior mais som. A passagem da linguagem interior para a exterior é uma complexa transformação dinâmica – uma transformação da linguagem predicativa e idiomática em uma linguagem sintaticamente decomposta e compreensível para todos. (Vygotsky, ibid: 473-474) (grifos nossos).

Então, considerando-se a interpretação vygotskiana de processamento de linguagem, pode-se afirmar que a complexidade do processamento de

uma língua estrangeira é ainda maior, já que somado a este processamento

existe também a mediação da língua materna do aprendiz ou mesmo de outras línguas, tanto em seu aspecto interior (compreensão) como exterior (produção).

Como se afirmou anteriormente, o pensamento nem sempre coincide com aquilo que é verbalizado. Então, outro aspecto importante para a análise

34 Segundo Vygotsky (ibid.), a linguagem interior (endofasia) tem uma função intelectual discursiva, afetivo-volitiva. Caracteriza-se por uma sintaxe específica, essencialmente predicativa; por isso, fragmentada, abreviada, às vezes desconexa e incompreensível se exteriorizada.

dos testes que fizemos com nossos alunos será o uso do conceito de subtexto de Vygotsky (ibid.), um pensamento oculto por trás do que foi ou não dito.

Foram essas as principais idéias de Vygotsky que contribuíram para o modelo desta tese. No entanto, antes de passarmos ao próximo capítulo, faz-se necessário um esclarecimento: talvez para um leitor conhecedor da obra de Vygotsky tenha chamado atenção o fato de não usarmos o conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal, amplamente conhecido por ZDP, etapa em que, pela interação com um adulto mais competente em determinada língua, se dá a aprendizagem. Segundo Menezes (2005: 26), a ZDP se assemelha ao que Norman (apud Lewin, 1994: 71, apud Menezes, ibid.) chama de o “limite do caos”; isto é, essa “criatividade inerente aos sistemas complexos”35. Pensando nesses conceitos, acreditamos que o conceito de interlíngua, que explicaremos na seqüência, é suficiente para explicar essa etapa.