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O BJETO DA PROVA

No documento Prova judiciária e dade: enfoque (páginas 76-82)

O objeto da prova são as alegações controvertidas das partes em relação a fatos relevantes para o julgamento da causa. Apesar de usualmente falar-se em prova dos fatos, a ação de prova recai sobre a alegação das partes97.

Provar significa atribuir a qualidade de verdade a uma alegação. Os fatos não são passíveis de tal qualificação. Fatos não são verdadeiros ou falsos. Os fatos existem ou não existem, aconteceram ou não aconteceram. O que pode ser falso ou verdadeiro, correta ou errada é narração daqueles fatos, consubstanciada na alegação formulada pela parte no processo98.

O objeto da prova, como dito, refere-se às alegações de fato relevantes para a causa, o que exclui a prova de direitos ou de conseqüências jurídicas dos fatos. Demonstrada pela prova a veracidade das alegações das partes quanto aos fatos, caberá ao juiz, extrair suas conclusões quanto à incidência da norma e as conseqüências jurídicas daí advindas, em sua plena liberdade interpretativa.

Não é qualquer alegação, contudo, que deve ser objeto da prova. Apenas as alegações controvertidas, que não sejam notórias ou presumidas, é que devem ser objeto da prova. Excepcionalmente, contudo, pode-se admitir a produção de prova acerca dessas alegações, inclusive por iniciativa judicial.

A controvérsia de uma alegação surge quando a parte contra quem se produz a alegação opõe-se a mesma, seja por meio de pura e simples negação (contrapondo-se à existência dos fatos que consubstanciam a alegação), seja por meio da apresentação de uma versão diferente da produzida pela parte

97Cfr., por todos: DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. V. III.

São Paulo: Malheiros, 2001, p. 58.

98

“A idéia de prova vem sempre ligada à demonstração de uma proposição. Se tal proposição refere-se a fatos, a prova terá por objeto evidenciar a correspondência da versão dos fatos constantes da proposição e os fatos em si mesmos.” (MACEDO, Ronaldo Porto. Prova dos atos jurídicos. Revista de Processo, n. 16, outubro-dezembro de 1979, p. 61).

adversa e que seja com aquela incompatível (art. 302, III). A partir daí e desde que a questão, isto é, o ponto controvertido99, seja relevante para o deslinde da

controvérsia, passa a alegação a ser objeto da prova. É que, se as partes estão acordes em relação às alegações de fato relevantes para o deslinde da causa, a princípio, não é cabível a produção de provas (art. 334, II e III)100.

Excepcionalmente, contudo, o CPC prevê hipóteses em que as alegações, mesmo que incontroversas, não são excluídas do objeto da prova, pois sobre elas, mesmo na ausência de impugnação pela parte a quem prejudique, não passa a militar qualquer presunção de veracidade. É o caso daquelas a cujo respeito não é admissível confissão (arts. 302, I e 320, II) e das quais a prova depende de documento público (arts. 302, II, e 320, III) (infra item 9.2.).

De regra, a prova também não é cabível em relação às alegações em cujo favor milita presunção de veracidade (art. 334, IV) ou que podem ser tidas

99 “A controvérsia gera a questão, definida como dúvida sobre um ponto, ou como ponto

controvertido. Se não há controvérsia, o ponto (fundamento da demanda ou da defesa) permanece sempre como ponto, sem se erigir em questão. E mero ponto, na técnica processual, em princípio independe de prova.” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. V. III. São Paulo, Malheiros, 2001, p. 59).

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O Código de Processo Civil consagrou o princípio da eventualidade e o ônus da impugnação específica, de modo que toda a matéria de defesa deve ser deduzida na oportunidade da contestação, cabendo ao réu contrapor-se especificamente a cada alegação do autor, sob pena de deixá-la incontroversa e, portanto, excluída do objeto da prova que se pretenda produzir nos autos (arts. 300, 302 e 319) (infra 9.2.). Cândido Rangel Dinamarco obtempera que “não só na contestação pode ser criada controvérsia em torno dos fatos alegados na petição inicial. Ainda que não haja contestado ou omita a impugnação dos fatos na contestação que ofereceu, o réu terá criado controvérsia se em reconvenção trouxer versão diferente (até porque a demanda reconvencional deve ser conexa à inicial ou à defesa: art. 315) ou se o tiver feito na exceção de incompetência ou de suspeição ou impedimento do juiz.” (idem, p. 61).

por notórias (art. 334, I)101. Apesar do que, tem a parte o ônus de demonstrar a notoriedade do fato alegado para poder valer-se da regra do artigo 334, I, do CPC. Assim, o objeto da prova desloca-se da alegação de fato em si, para a notoriedade acerca do fato alegado.

Em todos esses casos, indicados no artigo 334 do CPC, as alegações de fato são excluídas do objeto da prova porque em relação às mesmas o próprio legislador já fez prévios juízos de probabilidade, estabelecendo que, acaso configurada as referidas hipóteses do artigo 334, dever-se-ia, via de regra, atribuir alto grau de probabilidade às tais alegações, gerando sobre as mesmas uma presunção, ainda que relativa, de veracidade. Tal presunção não é absoluta, pelo que poderá ser desconstituída em face dos demais elementos de convicção existentes no processo.

As questões de direito, por diferente razão, também estão excluídas do objeto da prova, uma vez que ao juiz é dado conhecer do direito (jura novit

curia), de modo a aplicá-lo à situação de fato trazida aos autos pelas partes.

Trata-se, inclusive, de decorrência da regra geral prevista na Lei de Introdução ao Código Civil, que estabelece a presunção do conhecimento do direito por

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Fato notório é aquele cuja existência e sabida por todos. Dizer apenas isso, contudo, não é suficiente para se identificar com segurança o que caracterize um fato notório, na medida em que não delimitado o universo de pessoas que compõem o grupo “todos”, que deve ter ciência de certo fato para que ele possa ser havido por notório.

A questão mostra-se ainda mais relevante quando se põe em evidência o julgamento das questões de fato na 2ª instância. É que estando o tribunal mais afastado da comunidade em que ocorreram os fatos objeto do litígio, dificilmente poderá o julgador aferir, por conhecimento próprio, a notoriedade. Isso acontece, por exemplo, quando o TRF, cuja jurisdição abrange vários Estados, julga causa originária de seção judiciária que seja distante da sede da corte. Vê-se, de logo, que a notoriedade não pode estar, como de fato não está, gizada pelo órgão julgador.

A qualificação de notoriedade não é, pois, aferível no âmbito do órgão jurisdicional ou, sequer, no círculo social em que porventura viva o magistrado. A notoriedade é determinada no contexto da causa. A classificação de um determinado fato como notório é eminentemente relativa, pois varia de acordo com o local e com o tempo.

Assim, a notoriedade deve ser aferida pelo juiz a partir do contexto da causa, isto é, em relação à parcela da população a que interessam os fatos da causa.

Nesse sentido é a jurisprudência do STJ: “prova - fato notório - dispensa. A circunstancia de o fato encontrar certa publicidade na imprensa não basta para tê-lo como notório, de maneira a dispensar a prova. Necessário que seu conhecimento integre o comumente sabido, ao menos

em determinado estrato social por parcela da população a que interesse. recurso especial

- reexame de prova - inadmissibilidade.” (REsp 7555, Rel. Ministro Eduardo Ribeiro, DJ 03.06.1991, p. 7425) – grifo nosso.

todas as pessoas (art. 3º). Contudo, o CPC prevê exceção a essa regra, estabelecendo que “a parte que alegar direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário provar-lhe-á o teor e a vigência, se assim o determinar o juiz”.

Veja-se que a prova não se dá sobre a existência do direito material em litígio. O que o Código prevê é que a parte faça prova da existência e da vigência do texto legal de cujo teor pretende extrair, em cotejo com os fatos alegados, o direito subjetivo afirmado em juízo. Caberá sempre ao juiz fazer a interpretação do texto legal, determinando sua hipótese de incidência e aplicando-lhe ao caso concreto, a fim de verificar a real existência do direito subjetivo da parte.

A identificação das alegações de fato que deverão ser objeto de prova cabe ao juiz que, por ocasião do saneamento do processo, fixa os pontos controvertidos e determina as provas a serem produzidas.

Nem todos os pontos controvertidos, contudo, deverão ser objeto de prova. Apenas as questões relevantes para o deslinde da causa é que deverão ser objeto da instrução processual. Na identificação do que seja relevante o juiz, diferentemente do historiador, não tem ampla liberdade em tal definição102.

A identificação das questões relevantes faz-se a partir do exame do pedido e da causa de pedir delineados pelo autor em sua inicial. Somente aquilo que for necessário para autorizar a incidência da norma jurídica que, acaso aplicada à espécie, fará surgir o suporte jurídico para o deferimento da

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“Nel processo si dimonstrano fatti non per soddisfare esigenze di conocenza allo stato puro, ma per risolvere controversie giuridiche vertenti sull’esistenza di diritti: si accerta cioè il fatto non in sè ma in quanto esso è il presuposto per l’aplicazione di norme nel caso concreto. (...) nel processo i fatti di cui ocorre stabilire la verità vengono individuati sulla base di criteri giuridici, rapresentati essenzialmente dalle norme che si ritengono applicabili per decidere la specifica controversia. Per usare una formula sintetica: è il diritto che definisce e determina ciò che nel processo constituisce ‘il fato’”. (TARUFFO, Michele. La prova dei fatti giuridici. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1992, p. 68-69).

pretensão do autor, deve ser objeto de prova103. Assim, antes de iniciar a instrução do processo, deve o juiz verificar quais fatos foram juridicizados pela norma que se pretende aplicável à lide, para, a partir da identificação da tal hipótese de incidência (fattispecie), definir quais alegações serão objeto de prova104.

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Nesse sentido decidiu o TRF 2ª Região, no julgamento da AC – Apelação Cível – 325064, no processo 2000.51.01.519743-6, Rel. Des. JUIZ SERGIO SCHWAITZER, DJ 17/05/2004, p. 324:

“PREVIDENCIÁRIO - PROCESSUAL CIVIL - CUMULAÇÃO DE PEDIDOS - PROVAS - PERÍCIA E INDEFERIMENTO - IMPERTINÊNCIA DE APURAÇÃO DE ÍNDICES DE CORREÇÃO MONETÁRIA E EVOLUÇÃO DO VALOR DOS BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS EM FEITO CUJO OBJETO É A CONCESSÃO DE APOSENTADORIA ESPECIAL - AGENTES AGRESSIVOS NÃO INDICADOS NA INICIAL - INOVAÇÃO EM SEDE RECURSAL DE CAUSA DE PEDIR - PRESTÍGIO DO LAUDO TÉCNICO EM FACE DE OUTRAS PROVAS.

I - No direito processual civil brasileio, é absolutamente inadmissível o ajuizamento de pedidos cumulados em face de dois réus sem que entre eles haja qualquer identidade em relativamente à ação ou ao objeto desta.

II - In casu, da leitura da peça inaugural, evidencia-se que o autor propõe duas ações distintas, com objetos específicos, em face de réus diversos, em franca afronta ao disposto no caput do art. 292 do CPC, o qual, em sua literal disposição, autoriza, tão somente, "a cumulação, num único processo, contra o mesmo réu, de vários pedidos, ainda que entre eles não haja conexão", impondo-se, portanto, a extinção em relação à SIEMENS LTDA..

III - Não se há falar em cerceamento do direito de defesa face a aduzido indeferimento da produção de prova pericial, vez que o inc. II, art. 420, do CPC, é conferido ao Juiz, que é o destinatário da prova, através da qual formula seu convencimento, o poder de indeferir ou dispensa-las, sendo também certo que o Juiz é através da qual formulará seu convencimento. Deve ser indeferida a produção de prova pericial para apurar a evolução dos índices de correção dos benefícios previdenciários em ação cujo objeto seja a concessão de aposentadoria especial, vez que só se vislumbra sua conveniência em feito cujo objeto seja pertinente à revisão de benefício em manutenção ou de renda mensal inicial.

IV - Melhor sorte não deve ter o pedido nomeação de perito para comprovar, em sede de recurso, a exposição a fatores químicos e biológicos quando não são causa de pedir da petição inicial, vez que fixada a lide na exposição a agente físico (raio X).

V - Revelam-se absolutamente idôneos para o julgamento da lide, prescindindo de perícia judicial, os Laudos Técnicos acostados, ainda quando contrastem com as Informações sobre Atividades com Exposição a Agentes Agressivos, vez que, na valoração da prova carreada aos autos, o Laudo Técnico deve ser prestigiado, mormente em se considerando que este é peça produzida por perito, enquanto aquelas Informações são prestadas pelo empregador, ou seus representantes, em atividades precípuas de administração, portanto, não se amparando, necessariamente, em qualificação técnica.”

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“Poderíamos afirmar que em certa medida, a realidade é composta de fatos que coexistem ou se sucedem, estando vinculados entre si, ou não. Nessa realidade múltipla, alguns fatos são juridicamente relevantes, enquanto outros são destituídos desse significado. Estes, classificam- se como fatos meramente naturais e aqueles, como fatos jurídicos. Esta qualidade lhes é atribuída porque contêm na sua composição elementos que o ordenamento jurídico considera hábeis a fazê-los ingressar no mundo jurídico, tornando-os juridicamente conseqüentes.” (MACEDO, Ronaldo Porto. Prova dos atos jurídicos. Revista de Processo, n. 16, outubro- dezembro de 1979, p. 60).

As demais alegações que, por vezes, fazem parte do discurso (supra item 2.3.4 – retórica persuasiva) das partes no processo, com a finalidade última de sensibilizar o julgador, não devem ser objeto de prova, se não forem elas pressupostos fáticos (hipóteses de incidência), para a aplicação da norma jurídica que, a juízo do magistrado, regula a situação posta em julgamento.

O mesmo pensamento deve ser aplicado à prova das alegações do réu. Aquelas alegações que não se constituam óbices à incidência da norma jurídica reguladora da conduta em exame, notadamente, as alegações que não se reportem a fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado pelo autor, não devem ser objeto de prova.

As alegações sobre fatos secundários, isto é, aqueles que não estão incluídos na hipótese de incidência da norma, podem vir a ser objeto de prova apenas quando sejam relevantes para a formação do convencimento do julgador acerca da existência do fato principal.

Assim, somente serão produzidas provas das alegações referentes a fatos secundários na medida em que deles possa o magistrado extrair a existência ou o modo de ser do fato principal. Tal ocorre com os indícios, que possibilitam a formação das presunções legais ou judiciais, configurando a chamada ‘prova indireta’.

A produção de provas acerca de fatos irrelevantes para a incidência da norma jurídica reguladora que daria sustentação à pretensão das partes implica ofensa ao modelo constitucional de processo, mormente no que se refere à garantida de um processo sem dilações indevidas (art. 5º, LXXVIII), além de, obviamente, ser um injustificado gasto de tempo e dinheiro, a contribuir fortemente para o agravamento das dilações patológicas do processo.

No documento Prova judiciária e dade: enfoque (páginas 76-82)