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O cânone romântico: fragilidade e aparência

No documento Poesia romântica brasileira revisitada (páginas 73-84)

Capítulo II – Romantismo brasileiro

2. O cânone romântico: fragilidade e aparência

Como tem sido comentado, a expressão de elementos ligados ao ambiente nacional, muitas vezes correlacionados ao exótico e ao pitoresco, acaba sendo, no romantismo brasileiro, uma das formas de externar a busca por pacificação individual inerente ao sujeito. Em outros termos, no contato com a natureza exuberante do Brasil ocorre uma atenuação do sofrimento do Eu em conflito com o mundo, proporcionando a busca por uma catarse individual para o sujeito. Esse comportamento acarreta uma visão amplamente fragmentada diante do mundo. No dizer de Elia (1993), o romântico vê o mundo sob um prisma múltiplo, um olhar conturbado que acarreta a adoção do heterogêneo como forma de externar a carga subjetiva que assola a figura humana. Para o crítico (1993, p.117) “o relativismo é, pois, a pedra angular sobre a qual se ergueu o fantástico edifício do

Romantismo”. A visão romântica, nessa perspectiva, passa invariavelmente pelo crivo do Eu.

A tendência individual ampliada por uma gradativa influência externa alinha o movimento brasileiro ao Romantismo de caráter mais universal. A esse respeito é notável como as idéias de Rousseau e Ossian absorvidas, na maioria das vezes, pela leitura de autores europeus como Chateaubrian, Lamartine, Victor Hugo, Musset, Garrett, entre outros, estão presentes em nosso movimento. Como observa Cândido (2000, p. 15), o romantismo brasileiro originou-se “de uma convergência de fatores locais e sugestões externas, é ao mesmo tempo nacional e universal”.

Bosi (1994) vê como maior marca do movimento a latente emotividade atribuída ao fazer poético. Para o crítico (1994), o romantismo soube mobilizar a tradição medieval portuguesa e imprimir uma nota pessoal à expressão poética, pois:

a natureza romântica é expressiva. Ao contrário da árcade, decorativa. Ela

significa e revela (grifo do autor). Prefere-se a noite ao dia, pois à luz crua do sol

impõe-se ao indivíduo , mas é na treva que latejam as forças inconscientes da alma: o sonho, a imaginação. (BOSI, 1994, p. 93)

O artista romântico, por este prisma, aparece identificado ao estado de pureza contido na natureza vista como expressiva, o que contrasta com o caráter ornamental imposto pela visão árcade. Esta postura entra em consonância com o que pensa Hazard (1946) para quem o movimento romântico brasileiro

foi uma força religiosa, social, nacional. Ele não deu apenas a mais abundante florescência de romancistas e poetas; não restabeleceu somente as letras na alta dignidade que lhes competia; confundiu-se com a liberdade, com a existência mesma da jovem nação. (HAZARD, 1946, p. 68)

Como pode ser visto, tanto Bosi (1994) quanto Hazard (1946) evidenciam uma postura recorrente dentro da tradição critica nacional, qual seja, abordar o romantismo como um conjunto de valores ligados ao emotivo, ao religioso e à moral. Podemos dizer,

então, que grande parte dos críticos brasileiros7, guardadas pequenas diferenças individuais, acabam por retomar os principais preceitos cunhados por Magahães: quais sejam o nacionalismo utópico e moralista, a liberdade formal e a emotividade. É interessante ressaltar, porém, que não pretendemos afirmar que esses preceitos estejam descartados na estética romântica, pelo contrário compreendemos que no romantismo predomina a visão ideal diante do mundo, porém Magalhães, embora não tenha sido o maior teórico do movimento, mesmo porque suas idéias não se confirmam em uma produção romântica stricto sensu, é importante na medida em que delimita uma caminho estético e temático a ser seguido pelos poetas vindouros. Chamamos a atenção por um lado para a importância de suas colocações no delineamento do cânone romântico nacional, mas, por outro lado, questionamos a visão cristalizada decorrente das idéias críticas acerca do movimento romântico no Brasil.

Nossa intenção é tão somente comentar que, em termos tradicionais, os compêndios historiográficos brasileiros delimitam o cânone romântico por meio da catalogação de

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Optamos por sintetizar as colocações dos críticos com vistas a dinamizar a leitura. Acreditamos que Manuel Bandeira (op.cit.), em certa medida, retoma as colocações de Magalhães (op. cit.) e Veríssimo (op. cit.), refletindo, com isso, uma tendência remissiva inerente à Historiografia literária brasileira. A esse respeito verificar: COUTINHO, A. (Dir.) A literatura no Brasil. Rio de janeiro: Record, 1968, p. 1-32.; ABDALA JÚNIOR, B. ; CAMPE DELLI, S. Y. Tempos da Literatura brasileira. 5 ed. São Paulo: Ática, 1997,. ; SODRÉ, N. W. História da literatura brasileira. 5 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969, p. 189- 197.; VERÍSSIMO, José. Estudos de Literatura brasileira: 2ª Série. Introdução de Vivaldi Moreira. Belo Horizonte: Itatiaia ; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1977, p. 9-48.; VERÍSSIMO, José.

História da Literatura brasileira. 3 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964 ; BANDEIRA, M. Românticos.

In.: ______. Apresentação da poesia brasileira. Rio de Janeiro: Tecnoprint S.A., 1963. BOSI, A. História

concisa da literatura brasileira. 37. ed. São Paulo: Cultrix, 1994. ; CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira. 3 ed. São Paulo: Cultrix, 2000. v. II. ; CÂNDIDO, A. o Romantismo no Brasil.São Paulo:

Humanitas/ FFLCH/SP, 2002. CASTELO, J. A. Introdução do Romantismo no Brasil. Tese mimiografada. São Paulo: 1950.; HADDAD. Almansur. Pesquisas francesas sobre o Romantismo brasileiro. Diário de S.

Paulo. 10 dez, 1946. ; HAZARD, Paul. “De l’ancien au noveau monde: les origines du romantisme au

Brésil”. Revu de litteéature Comparée. Paris, jan.-março de 1927. Tradução na Revista da Academia

Brasileira de Letras. XXV. As origens do Romantismo no Brasil. número 69, setembro de 1927, p. 24-25.

PROENÇA, F. D. Estilos de época na literatura (através de textos comentados). 13 ed. São Paulo: Ática, 1992., p.206 – 237; BROCA, Brito. Românticos, pré-românticos, ultra-românticos: vida literária e Romantismo no Brasil. São Paulo: Polis; Brasília: INL, 1979. Destas fontes baseamos as colocações arroladas nesse ponto do trabalho.

procedimentos estético/temáticos como: i) o abandono ao cânone clássico, implicando antes de tudo a mudança da noção de belo artístico e o questionamento da cultura greco- romana; ii) a valorização de temas e traços particulares de cada região ou país (o nacionalismo); iii) a predominância de um sentimento emotivo e impulsivo proveniente de um desajuste do Eu com a realidade circundante; iv) a valorização do traço subjetivo, passando a expressão romântica a ser centrada na individualidade; v) a referência a um sentido de religiosidade de base cristã e moralista, vi) a aceitação do mistério e do noturno, muitas vezes, correlacionado a uma busca evasiva diante da realidade; vii) a expressão de um lirismo amoroso sentimental influenciado, no Brasil, pela poesia trovadoresca e viii) uma gradativa rebeldia estética, acarretando a adoção de novas formas de expressão, entre elas, uma maior liberdade formal.

Essa postura conservadora diante do ideário romântico nacional pode ser percebida inclusive nos compêndios destinados ao ensino de Literatura brasileira nas escolas de Ensino Médio. Prova disso, são as colocações arroladas por José de Nicola e Faraco & Moura8, entre outros que, de certa forma, confirmam a rigidez dos valores canônicos ligada ao romantismo brasileiro, fato evidenciado nas constantes reedições dos compêndios listados há pouco.

Luiz Costa Lima (2001) assim se manifesta, ao delimitar o cânone poético consagrado no Brasil no século XIX :

Suponho que me tivessem dado a tarefa de dizer em poucas palavras em que consistiria o cânone poético que, consagrado no século 19 brasileiro, se mantém até hoje. Proporia a fórmula seguinte: tematicamente, o poeta há de mostrar apreço pela moral e os bons costumes enquanto aclimata seus cenários à natureza tropical; estilisticamente, trovões de eloquência estremecem uma superfície sentimental – embalante. Castro Alves ( 1847-1817) e Gonçalves Dias ( 1823-

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A esse respeito verificar NICOLA, J. de. Língua, literatura & redação. São Paulo: Scpione, 1998, v II, p.43- 67.; FARACO, E. C.; MOURA, M. F. Língua e literatura. 15 ed. São Paulo: Ática, 1995, v 2, p. 18-25; 60 – 64.

1864) são seus paradigmas, seguidos a certa distância por Álvares de Azevedo, Fagundes Varela e o inefável Casimiro.( Folha de S. Paulo. 25/03/2001)

Se analisarmos as palavras de Lima (2001) à luz das idéias de Magalhães, podemos comprovar que realmente ocorre, em termos historiográficos, um contínuo jogo parafrásico entre os críticos literários nacionais no que se refere à delimitação de nosso cânone romântico. Em termos gerais, não encontramos uma mudança radical no que tange à compreensão de nosso cânone romântico. Tal procedimento acarreta uma visão limitada da diversidade romântica nacional. As palavras de Wanderley (1992) podem servir de exemplo da abrangência dos equivocos críticos acerca da diversidade romântica brasileira

Efetivamente uma vertente clássica na visão da literatura realça o primado da razão, o rigor, a precisão, a obediência à norma culta, o horror ao desvio; do mesmo modo, uma vertente romântica privilegia a emoção, a expressão livre dos estados afetivos e algum desvio da norma culta em favor dos sentimentos e sua liberdade. Para esta visão romântica, a literatura aparece como algo que se relaciona com as idéias (bem típicas do romantismo) de gênio e de inspiração. Elas se casam com as idéias de inefabilidade e de beletrismo que caracterizam a literatura em muito do romantismo e que foram o objeto principal da reação modernista. (WANDERLEY, 1992, p.258)

Posicionamentos como o de Jorge Wanderley (1992) demonstram uma visão limitada, não só do romantismo brasileiro, como também da dinâmica evolutiva da tradição literária no Brasil. Dizer que o romantismo é um “desvio da norma culta em favor dos sentimentos e sua liberdade” implica considerar que as manifestações clássicas são desprovidas de sentimento, fato que descaracteriza a importância de toda e qualquer manifestação artística. Deixemos de lado a consistência crítica de posicionamentos como o de Wanderley (1992) para considerarmos eles são resultantes de uma atitude ingênua diante da complexidade das manifestações românticas no Brasil.

Levados pela dualidade clássico versus romântico, emotividade versus razão, religiosidade versus paganismo, contenção estética verus liberdade formal, muitos críticos literários nacionais, de cuja vertende Wanderley é apenas um nome, entre tantos outros, tendem a ver no romantismo uma forma de expressão alienante diante da realidade e da

tradição literária nacional. Nosso romantismo, visto sob a égide da impulsividade e do crivo sentimental alienante, perde o caráter reformulador que o aproxima dos primeiros influxos modernistas.

Cabe ressaltar, porém, que abordar o romantismo como uma tendência em que predomine o traço emotivo não é algo desprovido de coerência, mas compreendê-lo como uma negação do passado ou unilateralmente como expressão emotiva em essência é algo extremamente ingênuo. Essa observação – ver o romantismo como uma tendência alienante – é algo inerente a grande parte da tradição crítica no Brasil. Essa constatação ganha força se pensarmos na corrente associação, perpetuada pelos compêndios literários, da poética romântica a um ar predominantemente sentimental e sistematicamente impulsivo. Para Coutinho (1976)

O estado de alma ou temperamento romântico é uma constante universal, oposta à atitude clássica, por meio das quais a humanidade exprime sua artística apreensão do real. Enquanto o temperamento clássico se caracteriza pelo primado da razão, do decoro, da contenção, o romântico é exaltado, entusiasta, colorido, emocional e apaixonado. Ao contrário do clássico, que é absolutista o romântico é relativista, buscando satisfação na natureza, no regional, pitoresco, selvagem, e procurando, pela imaginação, escapar do mundo real para um passado remoto ou para lugares distantes ou fantasiosos. Seu impulso básico é a fé, sua norma a liberdade, suas fontes de inspiração a alma, o inconsciente, a emoção, a paixão. O romântico é temperamental, exaltado, melancólico. Procura idealizar a realidade, e não reproduzi-la. (COUTINHO, 1976. p. 143.)

Afirmações como a de Coutinho (1976) demonstram um esqueatismo que acarreta a cristalização do cânone romântico brasileiro como predominantemente sentimental e impulsivo, mais que isso, delimitam um lastro rígido diante da materialização desse cânone. Nossa postura, entretanto, concordando com Valéry (1999), é considerar que para chegarmos às reais dimensões das inovações românticas é importante compreender a diversidade de temas e tendências que compõe esse movimento. É a heterogeneidade de manifestações que pode ser vista como uma das suas grandes características Como o heterogêneo é fundamental para a compreensão do Romantismo, podemos vislumbrar que,

em certos momentos, alguns poetas românticos brasileiros transcenderam a adequação aos preceitos descritos há pouco como pertencentes ao código romântico, sobretudo no que concerne à tendência idealizadora própria da estética. E, nesses momentos, de renovação os poetas implementaram uma nova face ao romantismo brasileiro.

Silvio Romero (1901), primeiro crítico a sistematicamente propor a delimitação das constantes estético-temáticas inerentes à literatura brasileira, compreenderia o romantismo como resultado de uma atitude marcadamente nacionalista, emotiva e revolucionária. Segundo o crítico, o uso da natureza como representação do nacional e uma atitude ambígua face à figura humana superam o lirismo árcade, proporcionando o surgimento de uma sensibilidade individual própria ao romantismo. Romero comenta que, aliado a essa corrente singularizadora, existe um viés religioso e rebelde norteando a concepção romântica nacional. Segundo o crítico, a junção, nem sempre harmônica dessas constantes, comporia, em termos primários, o cenário para a materialização do lirismo romântico no Brasil.

Pensamos, portanto, que uma das marcas mais relevantes de nosso romantismo consiste na visão idealista diante do homem e da realidade. O romântico, como um Quixote, acredita na possibilidade de plenitude humana diante do caos social vivido pela sociedade. Sua visão, conturbada e emotiva, expressa o choque do homem diante de um mundo corrompido e degradado. Da presença da diversidade de manifestações inerentes às obras de poetas como Álvares de Azevedo, Fagundes Varela, Junqueira Freire, Sousândrade e, mesmo poetas mais tradicionais como Gonçalves Dias e Castro Alves advém da constatação discutível da visão utópica presente no cerne do idealismo romântico. Uma vez abalada a confiança plena no ideal de perfeição humana, o sujeito

fecha-se em uma atitude introspectiva que, em alguns casos, chega à alienação e reclusão na melancolia e no desespero.

O natural, visto por esse prisma, deixa entrever o desejo pela catarse inerente ao Eu. O tom ameno e singelo, percebido, muitas vezes, na adoção de imagens delicadas como o “céu azul e límpido”, “o campo verdejante”, “a alvura das nuvens”, “o rio limpo que segue seu curso”, “a beleza das flores”, “a pureza da amada comparada à mãe e à irmã”, “a imagem angelical da virgem”, entre outros recursos expressivos, são evocados para resgatar um estado de pureza perdido pelo contato do homem com o mundo civilizado.

Essa tendência em exprimir uma visão ideal do mundo leva, quando contrastada à consciência diante da impossibilidade de purificação do sujeito, à constatação da imperfeição humana. Holanda (2003) chamaria a atenção para a ingenuidade do idealismo romântico em relação às terras recém-descobertas. Segundo o crítico, os artistas do século XIX viam nos nativos uma inocência primitiva que, perdida pela exposição desse “ser puro” às culturas colonizadas, denuncia a degradação imanente à cultura civilizada. Não é de estranhar, portanto, que na consolidação do romantismo brasileiro surja, de um lado, a necessidade de delimitar uma identidade própria à cultura brasileira e, de outro, um parâmetro externo como baliza formativa. Cândido (2000.p. 20) observa que “o espírito cavalheiresco é enxertado no bugre, a ética e a cortesia do gentil-homem são trazidas para interpretar o seu comportamento.” O crítico afirma, ainda, que

o indianismo dos românticos preocupou-se sobremaneira em equipará-lo qualitativamente ao conquistador, realçando ou inventando aspectos do seu comportamento que pudessem fazê-lo ombrear com este – no cavalheirismo, na generosidade, na poesia. (CANDIDO, 2000, p.21)

Podemos dizer, então, que a análise detida das constantes temáticas do romantismo brasileiro mostra que, em alguns momentos, a visão harmônica entre o Eu e o Mundo é questionada pela consciência diante da fragilidade da situação humana inserida no mundo.

Nesse sentido, o dilema individual de “Macário”, em Álvares de Azevedo, exemplificaria bem essa atitude heterogênea do romântico. “Macário”, atormentado pelas palavras de “Penseroso” e “Satan”, oscila entre a pureza e o conflito da dualidade humana. A consciência dessa dualidade provoca um redimensionamento dos valores positivos ligados à moral e à ética da então sociedade burguesa. A vitória de “Satan” pode ser entendida, então, como a constatação da fragilidade humana e, conseqüentemente, leva ao amadurecimento da personagem e à fragmentação do otimismo face a essa figura.

Em poemas como “Desejo”, de Junqueira Freire, podemos vislumbrar essa nuance romântica.

Desejo

Se além dos mundos esse inferno existe, Essa pátria de horrores,

Onde habitam os tétricos tormentos, As inefáveis dores;

Se ali se sente o que jamais na vida O desespero inspira:

Se o suplício maior, que a mente finge, A mente ali respira;

Se é de compacta, de infinita brasa O solo que se pisa:

Se é fogo, e fumo, e súlfur, e terrores Tudo que ali se visa;

Se ali se goza um gênero inaudito De sensações Terríveis; Se ali se encontra esse real de dores Na vida não possíveis

Se é verdade esse quadro que imaginam As seitas dos cristãos;

Se esses demônios , anjos maus, ou fúrias, Não são uns erros vãos ;

Eu – que tenho provado neste mundo As sensações possíveis; Que tenho ido da afetação mais terna Às penas mais incríveis;

Eu – que tenho pisado o colo altivo De vária e muita dor; Que tenho sempre das batalhas dela Surgido vencedor;

Eu – que tenho arrastado imensas mortes, E que pareço eterno;

Eu quero de uma vez morrer pra sempre, Entrar por fim no inferno! Eu quero ver se encontro ali no abismo Um tormento invencível: – Desses que achá-los na existência toda Jamais será possível!

Eu quero ver se encontro alguns suplícios, Que o coração me domem; Quero lhe ouvir esta palavra incógnita: – “Chora por fim, – que és homem!” Que, de arrostar as dores desta vida, Quase pareço eterno ! Estou cansado de vencer o mundo, Quero vencer o inferno!

(BARBOSA, F. Cinco séculos de Poesia: antologia da poesia clássica brasileira. São Paulo: Landy, 2000, p. 191-192.)

O poema apresenta um eu-lírico dotado de força individual suficiente para desafiar e subjugar o real e o fantástico “se além dos mundos esse inferno existe”. O confronto com

o desconhecido, expresso no desejo pela morte e, por correlação, o contato com o inferno, descrito no poema de forma incrédula e com certo desdém, “Se é verdade esse quadro que imaginam / As seitas dos cristãos; / Se esses demônios, anjos maus, ou fúrias, / Não são uns erros vãos”, desequilibra a confiança plena na pureza humana.

O desespero contido na inquietação do eu-poético pode ser compreendido como um gesto extremado pela conciência das injunções do real empírico. Ao negar a natureza do real e desejar compreender o místico – “morte” e “inferno”– o sujeito-poético entra em conflito em virtude da propensa plenitude associada à figura humana. Podemos perceber, então, uma oscilação no que se refere à confiança diante da capacidade de resolver empiricamente seus problemas individuais. A visão idealista – o homem capaz de dominar o mundo – entra em choque com a busca transcendente: desejo de dominar o “inferno”. Esse confronto acaba revelando, em nível profundo, uma carência humana em gerir suas ações no universo real, a qual se revela, justamente, pela transição do real ao místico, demonstrando a impossibilidade da afirmação total da plenitude humana.

O encontro com a “morte”, no poema de Junqueira Freire, reafirma a ambigüidade inerente ao humano. “Cansado de vencer o mundo”, o eu-lírico projeta a necessidade de transformação de suas ações humanas e, ao fazê-lo, denota a ingenuidade em se conceber a a figura humana como detentora de um conhecimento ilimitado e pelno face ao real. Sua dúvida perante a materialização do “inferno” – como evidenciam os primeiros versos do poema – compromete a afirmação da individualidade que se apresenta, portanto, como incrédula e fragmentada.

Desse modo, a ascendência mística e religiosa, inerente ao espírito romântico, oferece-se como uma das formas de compreensão do universo real. O romântico projeta no âmbito transcendente uma forma de amenizar o sofrimento do Eu em contato com o

mundo. O traço religioso, visto como fonte de esclarecimentos e explicações para a degradação do homem em sociedade, remonta ao desejo de purificação do sujeito. Novamente, nesse processo, revela-se uma atitude paradoxal, pois os influxos místicos – aceitação da morte como libertação; visão angelical do mundo e, por conseguinte, do homem, entre outros traços – são contrapostos ao idealismo romântico, causando a fragmentação do sujeito, a chamada inversão do “liame tradicional” detectada por Bosi (1994).

O romântico é idealista, pois acredita no homem, porém, em alguns momentos, demonstra consciência face à precariedade da condição humana, projetando, assim, um olhar mais lúcido e crítico diante da complexidade da natureza humana. Segundo Volobuef (1999, p. 12) o movimento romântico brasileiro transcende a mera afetação emocional, pois reflete a inquietação do homem em conflito com o meio em que vive e, por isso, se apresenta como síntese de uma individualidade em constante busca por inovação. Segundo a autora, o romantismo “foi um movimento crítico, rebelde, inquisitivo, renovador. Houve lágrimas, sem dúvida, mas também a diligência inovadora; houve o espírito voltado para o passado, mas também o olhar em busca do futuro.”

Concordando com Lobo (1986) e Volobuef (1999), compreendemos a necessidade de rever o cânone romântico brasileiro para perscrutar, na sua diversidade, a delimitação da chamada “Gestalt”, comentada por Lobo (1986). Ao pensarmos por esse prisma,

No documento Poesia romântica brasileira revisitada (páginas 73-84)

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