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Reflexão: um princípio irônico

No documento Poesia romântica brasileira revisitada (páginas 43-49)

Capítulo I – Romantismo: universal e individual

5. Reflexão: um princípio irônico

Pode-se dizer, então, que o romantismo de Iena, influenciado pelo olhar racional, tende a ver na correlação homem/natureza um prolongamento da atividade humana. Essa visão humanizada e consciente do mundo materializa uma das principais características do Frühromantick, qual seja, a mediação reflexiva do sujeito face ao mundo. Como vimos há pouco, Novalis (1988) assinala que o poeta romântico busca “ser ao mesmo tempo o eu de seu eu”, ou seja, prevalece, no Frühromantick, uma postura consciente diante da materialização do impulso emotivo primário.

O sujeito, imbuído de uma consciência crítica face à realidade, dialoga com o mundo por meio de uma atitude amplamente paradoxal: a ironia. A postura irônica, como salienta Novalis (1988), é correlacionada ao princípio reflexivo definido por Schlegel (1994). Segundo Novalis (1988), a ironia é

a conseqüência, o caráter da genuína clareza de consciência – da verdadeira presença de espírito. O espírito aparece sempre apenas em forma alheia, aérea .

A ironia de Schlegel parece-me ser genuíno humor. Vários nomes são proveitosos a uma idéia.(NOVALIS, 1988, p. 89)

A ironia romântica, nesse sentido, imprime uma visão bipartida diante da realidade, pois ao mesmo tempo que o Eu se projeta efusivamente na materialização do impulso emotivo, busca a sublimação do entusiasmo da “autolimitação” proposta por Schelegel (1994). Esse fato cria a consciência diante do objeto poético que influenciado pelo crivo racional reflexivo passa à expressão de um universo finito, pois materializado em linguagem. O drama romântico estaria então construído na busca incessante em transcender a finitude imposta pela palavra e o viés reflexivo e irônico vêm, nessa linha de raciocínio, materializar o prolongamento dessa atitude conflitante.

No poema “Bom conselho”, de Hölderlin, podemos vislumbrar o embate entre emoção e razão, configurando o traço paradoxal comentado há pouco.

GUTER RAT BOM CONSELHO

Hast du Verstand ein Herz, so zeige nur von beiden; Beides verdammen sie dir, zeigest du beides zugleich

Se tens razão e coração, mostra somente um deles Pois ambos te condenariam se os mostrasses juntos

Nesse poema o binômio razão/ emoção (coração) aparece como resultado de uma opção prática do eu-poético. É preciso conter o impulso emotivo, uma vez que sua exposição deflagra a carência de profundidade significativa. Esse conter a emoção pode ser verificado claramente se pensarmos na metáfora da “criança ingênua” de Novalis. A “criança ingênua” é o resultado final da mediação do adulto face às adversidades do presente.

Em “O bom conselho” a contenção do veio emotivo apresenta a tensão entre a emoção e uma visão crítica materializada no poema por meio da ascensão intelectual que domina o eu-lírico, o que aponta para uma dinâmica individual inerente ao texto. A “razão” e o “coração” acabam por carregar implicitamente traços híbridos uma vez que advêm do

mesmo impulso criador: o Eu. Nesse sentido, razão e emoção podem ser compreendidos como elementos de síntese e não como traços excludentes. Tal postura implica a necessidade de distanciamento do sujeito face à matriz emotiva e, conseqüentemente, em uma redefinição do princípio emotivo condicionado ao traço racional. Wellek (1967) comenta que a ironia romântica pode ser compreendida como uma cisão momentânea do sujeito diante do mundo. Nessa pequena ruptura, o sujeito adquire um nível de consciência diante da realidade, possibilitando a compreensão do caráter paradoxal e incoerente que norteia as organizações sociais. Podemos pensar que a ironia romântica, por meio do crivo racional, questiona a essência da organização social e, nesse processo, amplia o nível de compreensão em relação ao real. Schlegel (1994) comenta que:

A filosofia é a verdadeira pátria da ironia, que se poderia definir como beleza lógica: pois sempre que não se filosofa de maneira inteiramente sistemática, seja em linguagem escrita ou falada, devemos exigir a ironia e aceitá-la; mesmo os estóicos consideravam a urbanidade uma virtude. (...) Existem poemas antigos e modernos que respiram inteiramente, em todas as suas partes, do divino sopro da ironia. Neles vive uma bufanaria realmente transcendental. No interior, a disposição que tudo abrange e se eleva infinitamente para além de todo o condicionamento, para além até mesmo de sua própria arte, virtude ou genialidade, no exterior, na execução, o estilo mínimo de um bufão italiano competente.” ( SCHLEGEL, 1994, p. 87)

Esse embate emotivo/racional pode explicar o caráter político assumido pelo romantismo na Alemanha. Na busca por compreensão da realidade o sujeito contrapõe à realidade os valores subjetivos do Eu e, nesse processo, por meio da forte influência filosófica e da consciência transcendental, o poeta se identifica ao homem agredido pela situação econômica e social. Para o mesmo Schlegel (1994) a ironia romântica se caracteriza pela compreensão do heterogêneo como elemento preponderante não só no sujeito como também no mundo e isso implica o distanciamento crítico do sujeito diante do mundo, agora individualizado. O individualismo visto como filtro irônico dimensiona a carga reflexiva atribuída ao sujeito. Novalis (1988) toca nesta questão ao afirmar que

a fantasia põe o mundo futuro seja na altura, ou na profundeza, ou na metempsicose, em relação a nós. Sonhamos com viagens através do todo cósmico: então o universo não está dentro de nós? As profundezas de nosso espírito nós não conhecemos. – Para dentro vai o misterioso caminho. Em nós, ou em parte nenhuma, está a eternidade com seus mundos, o passado e o futuro. O mundo exterior é o mundo das sombras, lança suas sombras no reino da luz. Agora parece-nos, sem dúvida, inteiramente tão escuro, solitário, amorfo, mas quão totalmente diferente nos parecerá, quando esse entenebramento tiver passado, quando o corpo de sombra estiver afastado. Iremos fruir mais que nunca, pois nosso espírito passou privação. (NOVALIS, 1988, p.44)

A fusão entre passado e futuro proposta por Novalis (1988) denuncia a existência de um crivo racional na atitude altruísta própria do poeta romântico, uma vez que o individualismo é visto, antes de tudo, como uma forma de auto-conhecimento. Esta busca pela compreensão do indivíduo em sua totalidade possibilita a consciência diante da complexidade do Mundo. O subjetivismo romântico, nesse sentido, é um meio de reflexão diante da complexidade do “todo cósmico”. A alusão a Platão – o “exterior é o mundo da sombras” – indica uma atitude consciente de Novalis (1988) diante da construção do universo poético, ou seja, a “fantasia”.

Considerar a subjetividade romântica como um processo gradativo de introspecção reflexiva implica diretamente a reavaliação do místico presente nesse processo de filtrar o real. O poeta romântico expressa, por meio da individualidade, além da afetação sentimental diante do Mundo uma forma, em muitos momentos paradoxal, de chegar à síntese diante do caos imposto ao sujeito pelo contato com o Mundo. A “privação” do espírito, comentada por Novalis (1988), denuncia, nessa linha de análise, a complexidade da dualidade Eu/Mundo inerente à perspectiva romântica e, por isso, pode ser entendida como um caminho para a compreensão de ambos uma vez que na confusão sentimental do Eu irônico o Mundo se revela como heterogêneo e, como tal, é inteligível pela mediação racional imposta à emotividade, definindo a essência da ironia romântica.

Para Hölderlin (1994, p. 49), a atitude reflexiva “devolve ao coração tudo o que dele retirou. É arte reavivada como antes foi arte espiritualizada. E, numa percussão

mágica e sucessiva, de maneira ainda mais bela, até que a vida se sinta novamente tão inteira como se sentia na origem”. Por esse prisma a “bufanaria transcendental”, comentada por Schlegel (1994), pode ser entendida como uma visão consciente do homem diante do mundo.

Levando em consideração as colocações de Schelegel (1994), podemos perceber no princípio reflexivo a presença de um traço purificador diante do mundo. A visão irônica, de cunho reflexivo, projeta, assim, uma reorganização da própria realidade e, nesse olhar conturbado, a poesia, recheada de pendores filosóficos, retorna para a realidade em busca de sua construção transcendental. Através da ironia o poeta romântico reorganiza a postura eminentemente emotiva característica do Romantismo. Tal postura, revelando uma visão crítica face à realidade, projeta, segundo Rosenfeld (1963. p. 161), “um sentimento efusivo e jubiloso de liberdade, de ‘sublime insolência’ reorganizando, com isso, os valores sociais e ironizando, por vezes, seus próprios anseios”.

O olhar irônico tende, então, a apresentar um distanciamento do plano emotivo primário. A ironia, condicionada à visão rebelde do Eu diante do mundo, questiona a própria efusão emotiva, transfigurando, em alguns momentos, o sublime em grotesco e, nesse processo, revela um olhar realista e crítico diante da realidade circundante. Como observa Elia (1993), o romântico busca a expressão de um olhar individual diante da realidade e, por isso, impregna seu lirismo de emotividade. A nota pessoal diante da realidade, por conseqüência, reorganiza e redimensiona a tradição clássica, materializando o olhar fragmentado e vacilante tão comum ao movimento romântico.

Como tem sido comentado, o romantismo alemão, de certa forma, associa à emotividade um alto teor crítico, configurando a ironia romântica. Nos capítulos seguintes retomaremos o conceito de ironia romântica e, por meio da discussão de textos poéticos

brasileiros, procuraremos observar a existência de um olhar racional no interior de nosso romantismo. No Brasil acreditamos que a postura irônica, nesse sentido, denota a reorganização crítica imposta ao cânone romântico. Dessa forma, o romantismo brasileiro, por meio do pricípio reflexivo, próprio à ironia romântica de Iena, proporciona , em alguns autores, a mobilização consciente dos traços canônicos, indicando posicionamentos mais racionais no que se refere à materialização do lastro emotivo e libertário comum ao movimento.

Antes de discutirmos a presença da ironia romântica no Brasil, acreditamos ser importante delimitar a abrangência do pensamento romântico brasileiro com vistas a comentar alguns aspectos formativos de nosso cânone romântico.

No documento Poesia romântica brasileira revisitada (páginas 43-49)

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