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4 A BASE NORMATIVA PARA A CULTURA DO CONSENSO E DA

4.2 O Código de Processo Civil/2015 como marco legal

Em um dos seus primeiros dispositivos, o Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/15165), previu que o Estado deve promover a solução consensual dos conflitos

sempre que possível (art. 3o, § 2º). De início, já se constata o privilégio dado à

resolução das controvérsias a partir do diálogo a ser estabelecido pelos próprios envolvidos no litígio. Inclusive, houve previsão expressa de que os profissionais do Direito que participam do processo, quais sejam juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público devem incentivar a conciliação, a mediação, assim como outros métodos de solução consensual de conflitos (art. 3º, §3º).

Entende-se que, com a inovação legislativa, os conflitos passam a ser tratados a partir de técnicas e práticas então desvalorizadas, o que favorece o desenvolvimento, dentro do Judiciário brasileiro, de um cenário mais democrático, na

164 BUZZI, Marco Aurélio Gastaldi. Movimento pela Conciliação – um breve histórico. In: PELUSO,

Antonio Cezar; RICHA, Morgana de Almeida (Coord.). Conciliação e mediação: estruturação da Política Judiciária Nacional. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 47.

medida em que é estimulada a ativa participação das partes nos processos decisórios.166

Em outras palavras, Humberto Theodoro Júnior, Dierle Nunes, Alexandre Melo Franco Bahia e Flávio Quinaud Pedron concluem:

Sob a égide do Novo CPC, o processo democrático/justo, entre outras conquistas, elevou o grau de participação e influência das partes na preparação e formação do provimento judicial com que se haverá de solucionar o litígio em juízo.167

Nesse enfoque, o atual diploma legal foi todo estruturado a partir de um novo olhar sobre a relação processual civil. Imperioso destacar que, de acordo com o seu art. 6º, deve haver uma cooperação entre todos os sujeitos do processo a fim de que se garanta uma decisão de mérito justa e efetiva em tempo razoável. Desse modo, o modelo cooperativo do processo, conforme tratado em tópico anterior, encontra respaldo legal no supracitado artigo. Esse modelo representa a comparticipação entre os litigantes e o próprio juiz no tratamento do conflito e na busca de sua solução.

Com mais força isso transparece quando o Código de Processo Civil disciplina acerca do saneamento e organização do processo com previsão de chamamento das partes em audiência, para que participem da preparação da fase de instrução, com o esclarecimento de questões relativas às suas alegações, com nítido reflexo de cooperação, inclusive admitindo-se o acerto de negócios processuais relacionados à produção das provas (art. 357) e à fixação de calendário para a prática de atos processuais (art. 191). Tudo isso sob o olhar atento do magistrado, dentro da previsão contida no art. 190, do mesmo diploma.168

Percebe-se, de tal maneira, que a participação dos litigantes na construção da decisão do litígio não se evidencia apenas, quando juntos com a intervenção, ou não,

166 LEITE, Gisele. A autocomposição da lide em face do Novo Código de Processo Civil

Brasileiro. Disponível em: <https://professoragiseleleite.jusbrasil.com.br/artigos/188788513/a- autocomposicao-da-lide-em-face-do-novo-codigo-de-processo-civil-brasileiro>. Acesso em: 21 mai 2019.

167 THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON,

Flávio Quinaud. Novo CPC – Fundamentos e Sistematização. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 72.

168 BRASIL. Lei nº 13.105. Brasília/DF: 16 mar. 2015. Art. 190. Versando o processo sobre direitos que

admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.

do conciliador/mediador, conseguem a composição, mas também a nova legislação processual deixa claro que as partes devem participar para formação do resultado adjudicado.

Acrescente-se que, logo em seu art. 1º, a lei processual determina que os valores e normas fundamentais constitucionalmente estabelecidos devem funcionar como balizas, de modo que o processo civil seja ordenado, disciplinado e interpretado tendo os preceitos constitucionais como parâmetros. Em síntese, o texto constitucional deve orientar a compreensão das normas processuais para que sejam concretizados os comandos da Constituição. É o que a doutrina denomina de constitucionalização do Direito Processual e coloca como um dos elementos do direito contemporâneo.169

Ainda, conforme já explicitado, verifica-se que o código processual vigente, em seu art. 3o, reiterou o direito fundamental ao acesso à justiça, já tutelado

constitucionalmente (art. 5o, XXXV, Constituição da República Federativa do

Brasil/1988170), o que denota a irradiação das disposições constitucionais para o

direito processual civil.

A partir de então, retoma-se a análise dos dispositivos do Código de Processo Civil que tratam especificamente sobre os métodos autocompositivos de resolução dos conflitos.

Antes, porém, cumpre registrar que a determinação legal de realização das audiências de conciliação não é novidade trazida pela Lei nº 13.105/15, uma vez que o Código de Processo Civil de 1973171, anterior ao vigente, já previa expressamente

a sua obrigatoriedade.172 Contudo, a realização do ato detinha mero caráter formal,

sendo tratada dentro da Seção III, do Código, intitulada Da audiência Preliminar.

169 DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao Direito Processual Civil,

Parte Geral e Processo de Conhecimento.17. ed. Salvador: Jus Podivm, 2015, p. 46-47.

170 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília/DF: 05 out. 1988. Art.

5o, XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. 171 BRASIL. Lei nº 5.869 Brasília/DF: 11 jan. 1973.

172 BRASIL. Lei nº 5.869. Brasília/DF: 11 jan. 1973. Art. 331. Se não ocorrer qualquer das hipóteses

previstas nas seções precedentes, e versar a causa sobre direitos que admitam transação, o juiz designará audiência preliminar, a realizar-se no prazo de 30 (trinta) dias, para a qual serão as partes intimadas a comparecer, podendo fazer-se representar por procurador ou preposto, com poderes para transigir.

No procedimento sumário, por exemplo, via de regra, a audiência era conduzida pelo próprio juiz, que poderia ser auxiliado pelo conciliador173. Assim, desde já,

denota-se colocada em segundo plano a atividade do conciliador, sendo destacado o papel do magistrado como condutor da conciliação. Ainda, na própria audiência, caso restasse infrutífera a composição amigável, o réu já deveria oferecer, resposta escrita ou oral, inclusive acompanhada de documentos e rol de testemunhas.174

Em outras palavras, a realização das audiências de conciliação nos moldes do antigo Código serviria apenas para cumprimento de uma formalidade imposta pela lei. Isso porque as partes já compareciam ao ato preparadas para o contencioso. Assim, depreende-se que, diante de tais determinações legais, dificilmente a solução consensual seria exitosa, estando todos os sujeitos da relação processual submersos na cultura do litígio.

Também, da análise dos dispositivos do Código anterior, verifica-se que este não fazia menção às audiências de mediação. Como opção de método autocompositivo para resolução dos litígios, era oferecida apenas a conciliação.

Pois bem. As Audiências de Conciliação e Mediação ganham capítulo próprio dentro do Novo Código (Capítulo V), mais precisamente no art. 334, o qual prevê que o réu será citado para comparecer à audiência de conciliação ou mediação designada pelo juiz, antes mesmo de apresentar contestação. Essa previsão mostra-se adequada, na medida em que, caso a defesa já fosse apresentada antes de tentada a autocomposição, dificilmente as partes estariam dispostas a se sentarem à mesa de negociação, preferindo a solução adjudicada da lide.

Em regra, essas audiências devem ser conduzidas pelo conciliador/mediador (art. 334 § 1o), podendo, se necessário à composição das partes, serem estendidas

por mais de uma sessão (art. 334, § 2o). É o que geralmente ocorre em casos

complexos, com muitas questões a serem trabalhadas, demandando maior tempo para que o consenso se estabeleça, tais como ocorrem nas ações de família. Ainda, a realização do ato pode se dá por meio eletrônico (art. 334, 7o), favorecendo o diálogo

entre partes que não residem na mesma comarca ou no país.

173 BRASIL. Lei nº 5.869. Brasília/DF: 11 jan. 1973. Art. 277, §1º. A conciliação será reduzida a termo

e homologada por sentença, podendo o juiz ser auxiliado por conciliador. (grifo acrescido)

174 BRASIL. Lei nº 5.869. Brasília/DF: 11 jan. 1973. Art. 278. Não obtida a conciliação, oferecerá o réu,

na própria audiência, resposta escrita ou oral, acompanhada de documentos e rol de testemunhas e, se requerer perícia, formulará seus quesitos desde logo, podendo indicar assistente técnico.

Em que pese o esforço do novo diploma processual no incentivo à busca pela solução consensual das controvérsias, na prática, ainda se constata que as partes, habituadas em receber uma resposta jurisdicional impositiva, não demonstram interesse em participar de conciliações e mediações. Nesse sentido, uma medida coercitiva foi prevista a fim de que as partes compareçam à audiência e, assim, mesmo que obrigadas, sejam-lhes propiciado um primeiro contato com os meios autocompositivos e, a partir de então, compreendam a relevância e eficácia desses métodos. Assim, conforme dicção do art. 334, §8o, caso autor ou réu não compareça,

sem justificativa à audiência de conciliação, considerar-se-á cometido ato atentatório à dignidade da justiça e lhe será imposta multa de até dois por cento da vantagem econômica pretendida ou do valor da causa, revertida em favor da União ou do Estado.

Do mesmo artigo, evidencia-se que o interesse de apenas uma das partes na realização da conciliação/mediação já é suficiente para que o ato seja realizado. Em outras palavras, para que a audiência não se realize, faz-se necessária manifestação expressa de desinteresse na composição por ambos envolvidos na lide (art. 334, § 4o).

Assim como a Resolução nº 125 do Conselho Nacional de Justiça, a nova lei processual também previu a criação pelos tribunais dos Centros Judiciários de Resolução de Conflitos (CEJUSCs), onde são realizadas as sessões e audiências de conciliação e mediação. Também, nesses centros, devem ser desenvolvidos programas com o fim de que a autocomposição seja incentivada (art. 165). Para que se forme uma cultura do consenso no âmbito do Judiciário, é preciso que se vá além da determinação legal de realização de conciliações e mediações. Torna-se necessária a implantação de projetos que propiciem às partes o conhecimento dessa nova ferramenta de enfrentamento de seus desentendimentos, de modo a estimulá- las a participarem do processo resolutivo de suas questões como reais atores.

O Código de Processo Civil, em seu art. 166, elenca os princípios que devem nortear a conciliação e mediação, os quais se assemelham àqueles previstos no Código de Ética de Conciliadores e Mediadores Judiciais, constante no Anexo III, da Resolução nº 125, CNJ.

A imparcialidade, como um desses princípios, é decorrente da própria natureza da autocomposição, tendo em vista que, a partir da atuação de terceiro neutro, a busca por uma solução consensuada será facilitada. Exige-se, portanto, que o

conciliador/mediador atue com imparcialidade, sem tomar partido em favor de nenhuma das partes.

Os princípios da autonomia da vontade e da independência175 também

merecem destaque na medida em que, tratando-se de métodos autocompositivos, em que a solução do conflito é construída pelas próprias partes, nada mais justo do que a autocomposição seja conduzida a partir da livre vontade e independência de seus interessados. Às partes é facultado inclusive definir regras procedimentais, desde que respeitados os demais princípios norteadores da autocomposição.

Outrossim, a fim de que se sintam verdadeiramente confortáveis em expor e dialogar a respeito de suas questões e interesses, é garantida às partes a confidencialidade de tudo o que foi tratado no procedimento autocompositivo. Inclusive, é dentro desse contexto que se coloca em questão a viabilidade da atuação do magistrado como conciliador, considerando que este é o responsável por decidir a lide no caso de não ser obtida uma composição entre seus envolvidos. Desse modo, caso conduza a conciliação, o juiz pode ser influenciado pelo que foi discutido pelas partes. Por esse motivo, determina-se que a autocomposição seja, preferencialmente, realizada por conciliadores e mediadores judiciais (art. 139, V).

No tocante à oralidade e informalidade, pode-se dizer que estas são igualmente inerentes ao procedimento autocompositivo, visto que é por intermédio do viés discursivo que as partes interagem e colocam à mesa de negociação suas questões e interesses, buscando-se o consenso.

A diferença entre a conciliação e a mediação, já abordada na doutrina, foi também trazida pela nova legislação processual, ao tratar do modo como deve atuar o conciliador e mediador. Assim, orienta-se que a conciliação seja realizada nos casos em que não houver relação prévia entre as partes, podendo o conciliador propor soluções para o litígio, sem, no entanto, coagir as partes para realização do acordo. A mediação, por sua vez, é adequada aos casos em que houver relação prévia entre as partes. Ao mediador cabe auxiliar os envolvidos no litígio, de modo a favorecer a compreensão dos interesses em conflito para que, assim, a comunicação seja reestabelecida e seja possível a identificação de soluções consensuais pelas próprias partes (art. 165, § 2o e 3o).

175 No que pese o CPC/15 tratar esses princípios separadamente, o Código de Ética de Conciliadores

Ainda na parte do Código que trata dos Conciliadores e Mediadores Judiciais, foram previstas algumas regras gerais para atuação desses profissionais. Exige-se, por exemplo, a inscrição em cadastro nacional, assim como junto ao tribunal os quais se encontram vinculados (art. 167, caput) e também capacitação em curso cujo parâmetro curricular é definido pelo Conselho Nacional de Justiça (art. 167, § 1º). Denota-se, portanto, a preocupação do diploma processual no treinamento desses agentes em prol da resolução consensual nos processos judiciais.

Ademais, além dos dispositivos que especificamente tratam da conciliação e mediação, outros artigos fazem referência aos métodos autocompositivos. Ao tratar das ações de família, por exemplo, o art. 694 determina que, nesses casos, todos os esforços devem ser empregados para que se tenha a solução consensual da controvérsia através da mediação e conciliação. É que as relações de família envolvem, sobretudo, emoções e sentimentos, sendo estes melhores trabalhados a partir das técnicas multidisciplinares utilizadas na autocomposição.

Tem-se, portanto, que é possível identificar, no Código de Processo Civil de 2015, dois valorosos pontos que direcionam para uma nova visão do sistema processual civil de solução de conflitos. O primeiro deles refere-se à estrutura da fase prévia de conciliação e mediação. Seguramente, o desenvolvimento dessas atividades autocompositivas servirá como estímulo à concretização da cultura do consenso, distanciando-se do seu enfoque puramente centrado no litígio. O segundo ponto está associado ao disciplinamento de uma postura participativa dos litigantes, quando, por exemplo, na audiência de saneamento do feito, poderão agir positivamente, na discussão da causa de seus pontos controvertidos.

Desse modo, a Lei nº 13.105/15 inaugurou uma nova fase do processo civil que tem por base a participação das partes no processo decisório de suas demandas, seja a partir do consenso estabelecido em uma autocomposição ou do agir cooperativo que orienta a solução adjudicada. De modo geral, para a resolução legítima das controvérsias judicializadas, o incentivo à consensualidade e à comparticipação configuram, hoje, verdadeiros avanços no sistema processual.