• Nenhum resultado encontrado

4 O PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO E A SEGURANÇA JURÍDICA

4.3 O Código de Processo Civil de 2015 e as soluções adotadas

Num movimento de aproximação a institutos da ―common law‖, propuseram-se, no Código de 2015, soluções para os problemas diagnosticados pela doutrina na aplicação da uniformização jurisprudencial.

Entretanto, como se verá nas críticas abordadas no tópico seguinte, como essas soluções procuraram remediar alguns problemas na aplicação de jurisprudência uniformizada, refletem elas ainda, em grande parte, pressupostos quanto às possibilidades dessa jurisprudência uniformizada (notadamente a crença na possibilidade de sua aplicação por subsunção, prescindindo-se de qualquer labor interpretativo), não elidindo por completo, pois, os problemas decorrentes desses pressupostos.

Para remediar o primeiro dos problemas acima referidos, consistente na inobservância à jurisprudência uniformizada, o Código estabeleceu, além do dever de uniformização da jurisprudência (art. 926), a obrigatoriedade dos juízes e tribunais de observarem determinados pronunciamentos jurisprudenciais (art. 927).

Ou seja, conferiu-se a essa jurisprudência verdadeiro caráter vinculante, prescrevendo o art. 927 que os juízes e tribunais deverão observar: (1) as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; (2) os enunciados

233 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes: o desenvolvimento judicial do direito no constitucionalismo

de súmula vinculante; (3) os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; (4) os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; e (5) a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.

Para se assegurar esse caráter vinculante, previu-se no art. 988 o cabimento de reclamação para garantir a observância a alguns daqueles tipos de pronunciamentos previstos no art. 927, nomeadamente, enunciado de súmula vinculante, decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade, julgamento de casos repetitivos (que engloba, segundo o art. 928, incidente de resolução de demandas repetitivas e recursos especial e extraordinário repetitivos) e julgamento de assunção de competência. Posteriormente, a Lei 13.256, de 4 de fevereiro de 2016, modificou os incisos III e IV do art. 988, retirando a referência a julgamento de casos repetitivos e inserindo a referência a incidente de resolução de demandas repetitivas.

As previsões do art. 927 e 988 ampliaram, a demais pronunciamentos, a sistemática que antes se estabelecera em relação exclusivamente às súmulas vinculantes, consistente em determinar obrigatoriedade de observância ao pronunciamento jurisprudencial e prever o cabimento de reclamação em caso de sua inobservância.

Essa solução adotada no novo Código atendeu aos reclames e sugestões de parte da doutrina, que vislumbrava na vinculação de jurisprudência uma aproximação ao ―common

law‖, apta não apenas a promover unidade na aplicação do direito — por afastar a

possibilidade de inobservância aos entendimentos uniformizados, tornando-os vinculantes —, mas também a dar maior eficiência e celeridade ao Poder Judiciário — que não precisaria rediscutir temas uniformizados, podendo resolver uma multiplicidade de casos similares mediante sua subsunção a um enunciado uniformizador.

Nessa linha, já em 1996, Elen Gracie Northfleet (então Juíza Vice-Presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, posteriormente Ministra do Supremo Tribunal Federal) apregoava a necessidade de concessão de efeito vinculante à jurisprudência no Brasil, sobretudo como forma de resolver o problema de congestionamento do Poder Judiciário com causas repetitivas. A seu ver, com a vinculatividade, o Judiciário deixaria de ocupar-se com ―questões que já não oferecem relevo ou dificuldade‖, permitindo-se aplicação de seus recursos ―[...] nas questões que têm maior atualidade e demandam reflexão e atividade

criativa por parte dos magistrados‖234.

Ao enfrentar o argumento de que a vinculação pudesse resultar em engessamento acrítico do direito, a doutrinadora manifestou confiança em que o legislador brasileiro viesse a inspirar-se em boas práticas da ―common law‖: ―[...] o legislador brasileiro, quando cogitar da adoção de algum efeito vinculante para as decisões judiciais, levará em consideração todas as nuanças que emprestam particular eficiência ao sistema tal como é adotado nos países do

common law‖.235

Em 1999, Carlos Mário da Silva Velloso, então Ministro do Supremo Tribunal Federal, defendia que ―[...] a eficácia erga omnes e o efeito vinculante das súmulas [...] seriam de grande utilidade para o descongestionamento da máquina judiciária‖236, também fazendo

referência à experiência da ―common law‖ ao afirmar: ―No Poder Judiciário que talvez seja o mais eficiente do mundo, que é o Judiciário norte-americano, o efeito vinculante não tem sabor de novidade, já que ele ali existe em razão do stare decisis, que é adotado no sistema do

common law‖.237

A ideia de que a vinculatividade das súmulas representaria uma aproximação do ―civil law‖ brasileiro à família de ―common law‖ também se observa em doutrina posterior à instituição das súmulas vinculantes:

Parece-nos que a filiação jurídica do Brasil tornou-se híbrida ou eclética, a meio caminho entre a common law (o binding precedent, sistema do stare decisis) e a civil

law (direitos codicísticos), ou seja, a fonte de direitos e obrigações entre nós deixou

de ser apenas a norma, para também incluir a súmula vinculante. Essa rota de aproximação entre as duas famílias jurídicas é reconhecida pela doutrina [...].238

Mais tarde, na exposição de motivos do Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil (CPC/2015), subscrita pela Comissão de Juristas encarregada de sua elaboração, observou-se que o incentivo à uniformização jurisprudencial e a determinação de observância de entendimentos uniformizados eram vistos como mecanismos aptos a evitar a dispersão jurisprudencial239 e a conferir celeridade ao processo240. Em passagem sintética, a comissão

234 NORTHFLEET, Ellen Gracie. Ainda sobre o efeito vinculante. Revista de Informação Legislativa, Brasília,

ano 33, n. 131, p. 133-134, jul./set. 1996. p. 133-134.

235 Ibid., p. 134.

236 VELLOSO, Carlos Mário da Silva. O poder judiciário e a súmula vinculante. Revista da EMERJ, v. 2, n. 5,

p. 23-38, 1999. p. 26.

237 Ibid., p. 26.

238 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Questões controvertidas sobre a súmula vinculante. In: MEDINA, José

Miguel Garcia et al. (Coord.). Os poderes do juiz e o controle das decisões judiciais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 1188-1194. p. 1192.

239 Tendo-se afirmado, na Exposição de Motivos, que: ―[...] haver, indefinidamente, posicionamentos diferentes e

explicita esses dois objetivos: ―Criaram-se figuras, no novo CPC, para evitar a dispersão

excessiva da jurisprudência. Com isso, haverá condições de se atenuar o assoberbamento de trabalho no Poder Judiciário, sem comprometer a qualidade da prestação jurisdicional‖.241

Segundo leitura de Bruno Dantas a respeito do projeto:

O projeto do novo Código de Processo Civil procurou enfrentar dois dos maiores males que afligem atualmente a sociedade brasileira na seara jurídica: a fragmentação e a instabilidade da jurisprudência. Em diversos pontos, o projeto revela verdadeira mitigação do rígido modelo de civil law que tradicionalmente conhecemos, aproximando-nos em razoável medida da família do common law.242

Contudo, se a vinculação jurisprudencial do novo Código atendeu aos reclames da referida parcela da doutrina, verdade é que não deixou de contrariar os alertas de outro segmento de juristas, segundo os quais o apregoado ―stare decisis‖ brasileiro — por meio de vinculação de jurisprudência uniformizada e tendo como um de seus objetivos expressos o descongestionamento do Judiciário —, além de não se assemelhar, em essência, à experiência com precedentes vinculantes na ―common law‖, poderia agravar os problemas de falta de isonomia e segurança jurídica, decorrentes da praxe vigente de aplicação subsuntiva de enunciados jurisprudenciais. Assim, a ponderação de Nery Junior e Abboud:

situações idênticas, tenham de submeter-se a regras de conduta diferentes, ditadas por decisões judiciais emanadas de tribunais diversos. Esse fenômeno fragmenta o sistema, gera intranqüilidade e, por vezes, verdadeira perplexidade na sociedade. Prestigiou-se, seguindo-se direção já abertamente seguida pelo ordenamento jurídico brasileiro, expressado na criação da Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal (STF) e do regime de julgamento conjunto de recursos especiais e extraordinários repetitivos (que foi mantido e aperfeiçoado) tendência a criar estímulos para que a jurisprudência se uniformize, à luz do que venham a decidir tribunais superiores e até de segundo grau, e se estabilize‖ (BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Comissão de Juristas Responsável pela Elaboração de Anteprojeto de Código de Processo Civil. Código de Processo Civil: anteprojeto. Brasília: Senado Federal; Presidência, 2010).

240 A esse respeito, também da Exposição de Motivos: ―[...] levam a um processo mais célere as medidas cujo

objetivo seja o julgamento conjunto de demandas que gravitam em torno da mesma questão de direito, por dois ângulos: a) o relativo àqueles processos, em si mesmos considerados, que, serão decididos conjuntamente; b) no que concerne à atenuação do excesso de carga de trabalho do Poder Judiciário – já que o tempo usado para decidir aqueles processos poderá ser mais eficazmente aproveitado em todos os outros, em cujo trâmite serão evidentemente menores os ditos ‗tempos mortos‘ (= períodos em que nada acontece no processo)‖ (Ibid.).

241 Ibid., grifo nosso. Refira-se que, no anteprojeto aí comentado, ainda que não estivesse consolidado o

tratamento atual de vinculatividade jurisprudencial (arrolamento do art. 927 e previsão de cabimento de reclamação no art. 988), o art. 847, nos incisos II, III, e IV, previa: que os órgãos fracionários seguiriam a orientação do plenário, do órgão especial ou dos órgãos fracionários superiores aos quais estivessem vinculados; que a jurisprudência pacificada de qualquer tribunal deveria orientar as decisões de todos os órgãos a ele vinculados; e que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores deveria nortear as decisões de todos os tribunais e juízos singulares do país. Outrossim, o anteprojeto já previa o cabimento de reclamação em caso de desrespeito à tese firmada em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 906).

242 DANTAS, Bruno. Concretizar o princípio da segurança jurídica: uniformização e estabilidade da

jurisprudência como alicerces do CPC projetado. In: FREIRE, Alexandre et al (org.). Novas tendências do Processo Civil: estudos sobre o projeto do novo código de processo civil. Salvador: Editora JusPODIVM, 2013. p. 125-143. p. 125.

A partir do supramencionado alerta é que devem ser visualizados os já existentes artigos 543-B e 543-C do CPC e a criação de jurisprudência vinculante a partir do NCPC. Isso porque, sempre que os mecanismos vinculatórios são vistos como instrumento para aceleração e homogeneidade de processos, a decisão vinculante não pretende constituir parâmetro argumentativo para as partes apresentarem suas razões jurídicas, muito menos constituir como fundamentos normativos para o magistrado problematizar e alcançar sua legislação, mediante uma ponderação dos fundamentos jurídicos postos no caso concreto. Pelo contrário, a decisão dotada de efeito vinculante almeja constituir-se como regra decisória de uma multiplicidade de casos concretos, tal como se viesse a norma pronta e acabada que pudesse substituir- se às alegações das partes, à fundamentação e à problematização decisional, de modo que se tornaria despiciendo que o magistrado ou os tribunais locais precisassem socorrer-se à interpretação da lei e da Constituição Federal, bem como ao exame das alegações das partes para solucionar as lides sobrestadas.243

Em passagem conclusiva do mesmo estudo, os doutrinadores observam que a sistemática que então se pretendia instituir no novo Código não se assemelharia, portanto, ao modo de trabalho com precedentes na ―common law‖ (e, pois, não reproduziria suas virtudes), diferentemente do que imaginou a parcela da doutrina simpática à vinculação jurisprudencial:

Desse modo, a jurisprudência vinculante estabelecida no NCPC não pode ser confundida com o sistema do stare decisis do common law. Em verdade, ela caracteriza uma forma particular de nosso ordenamento em forçar a uniformização da jurisprudência, ignorando a conflituosidade que é ínsita à atividade jurisprudencial, característica de toda atividade que contenha um devir histórico que é, aliás, elemento essencial da cultura humana, o que nos faz crer que o pretendido sistema de vinculação jurisprudencial não foi inspirado no common law, mas em tipos organizacionais de trabalho contínuo e estagnado, e.g., sociedade de formigas, abelhas etc, supondo que a perfeição de seu funcionamento se deve à tal imutabilidade, como se a facticidade estagnada dessas sociedades pudesse ser equiparada à de nossa sociedade cada vez mais complexa.244

Prevaleceu, entretanto, como dito e sabido, o discurso da vinculação jurisprudencial, norteando a arquitetura do que alguns denominam um ―sistema de precedentes‖ no novo Código, com o qual se pretendeu solucionar o primeiro problema acima apontado, de inobservância aos entendimentos uniformizados.

O segundo problema identificado na padronização decisória por meio de uniformização jurisprudencial, também apontado acima, consistia na aplicação da jurisprudência uniformizada mediante simples subsunção de casos a enunciados breves, com riscos à isonomia e, por conseguinte, à cognoscibilidade e calculabilidade do direito (pois daquela maneira não seria possível aferir a similaridade ou dissimilaridade entre os casos originadores da jurisprudência e o caso sob julgamento, correndo-se o risco de dar a casos

243 NERY JUNIOR, Nelson; ABBOUD, Georges. Stare decisis vs direito jurisprudencial. In: FREIRE,

Alexandre et al. (Org.). Novas tendências do Processo Civil: estudos sobre o projeto do novo código de processo civil. Salvador: Editora JusPODIVM, 2013. p. 485-514. p. 496-497.

diversos soluções iguais, ou a casos iguais solução diversa).

Como solução, previu-se no novo Código o dever de os juízes, quando da aplicação de ―precedente ou enunciado de súmula‖, identificarem seus fundamentos determinantes e demonstrarem a pertinência daqueles fundamentos ao caso em julgamento, sob pena de prolatarem decisão nula (art. 489, §1º, V). Igualmente, previu-se que os juízes, ao deixarem de seguir ―enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte‖, devem demonstrar a distinção entre o caso sob julgamento e os casos que originaram aqueles pronunciamentos prévios, ou mesmo a superação dos entendimentos neles contidos (art. 489, §1º, VI).245

Essas duas previsões inspiram-se nos modos de trabalho com precedentes nos ordenamentos de ―common law‖ (vide item 3.2.2.2), procurando instituir, no ordenamento brasileiro de ―civil law‖, a prática ali consolidada de avaliação da pertinência ou não da aplicação do precedente tomando-se por base sua ―ratio decidendi‖, a fim de se demonstrar que os elementos determinantes dessa ―ratio‖ ocorrem no caso ―sub judice‖ (hipótese em que se aplica o precedente) ou não ocorrem (promovendo-se um ―distinguishing‖ e afastando-se a aplicação do precedente), ou mesmo demonstrar que a ―ratio decidendi‖ merece superação (―overruling‖).

Ao problema da ausência de cuidado para que a enunciação da jurisprudência uniformizada refletisse minimamente as circunstâncias fáticas e razões legais invocadas nos julgamentos dos casos que a originaram (terceiro problema acima referido), ofereceu-se como solução o §2º do art. 926, referente, contudo, exclusivamente à formação de enunciados de súmulas, prevendo que ―Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação‖.246

Por fim, para fazer frente ao quarto problema acima referido, da ausência de cuidado na modificação da jurisprudência uniformizada, o legislador estabeleceu cautelas a serem adotadas previamente ou por ocasião dessa modificação, previstas nos §§2º a 4º do art. 927 do Código, a saber, realização de audiências públicas e oitiva de pessoas órgãos ou entidades previamente à ―alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos‖ (§2º); modulação de efeitos quando da alteração de ―jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos‖ (§3º) e fundamentação adequada e específica, ―considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia‖,

245 BRASIL, op. cit., 2015. 246 Ibid.

para a modificação de ―enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos‖ (§4º).247

Por meio de todas essas disposições, o legislador quis conferir unidade, estabilidade e previsibilidade ao direito, recobrando-lhe a segurança jurídica enquanto cognoscibilidade, confiabilidade e calculabilidade.

Mas a tais disposições foram dirigidas veementes críticas, dignas de consideração, das quais trata o tópico seguinte.