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3 SEGURANÇA JURÍDICA E O PODER JUDICIÁRIO DE “CIVIL LAW”

3.3 Do gradual reconhecimento do papel construtivo dos juízes na “civil law”

3.3.1 A permissão de interpretação

Narrou-se acima que, conforme a legislação revolucionária francesa, especificamente a ―Loi sur l’organisation judiciaire des 16-24 août 1790‖, os juízes eram proibidos de interpretar a lei, devendo, quando isso fosse necessário, recorrer ao Poder Legislativo por meio do ―référé legislatif‖ facultativo.

Não tardou, entretanto, a que se percebessem os inconvenientes dessa sistemática inicial, notadamente pelo uso demasiado do ―référé‖ facultativo, que assoberbava os órgãos legislativos e atravancava o andamento dos processos judiciais.132

Foi assim que, com o Código Napoleônico, passou-se a não somente admitir, como também a impor, a interpretação da lei pelos juízes nos casos em que seu texto gerasse dúvidas. Nos termos da clássica formulação do art. 4 do Código, ―O juiz que se recusar a

julgar, sob pretexto de silêncio, de obscuridade ou de insuficiência da lei, poderá ser punido como culpado de denegação de justiça‖133. Como consequência, aboliu-se o instituto do

―référé‖ facultativo.

Nessa nova ordem de coisas, outro meio foi engendrado para se evitar que os juízes incorressem em abusos no exercício da (agora permitida) atividade interpretativa.

Esse mecanismo foi o controle da interpretação judicial pelo Tribunal de Cassação.

Logo, a Corte deixou sua função inicial de reprimir a contravenção expressa à lei e passou a funcionar como órgão controlador da interpretação e aplicação conferidas ao texto legal pelos juízes. Cabia-lhe, nessa nova conformação, determinar as corretas interpretação e aplicação da lei nos casos a si submetidos. A propósito:

[...] o Tribunal de Cassação passou a ter a função de controlar a interpretação judicial, evitando decisões judiciais fundadas em interpretações incorretas, contribuindo para a consolidação da interpretação adequada e, até mesmo, zelando pela uniformidade da interpretação da lei. A nova função do Tribunal de Cassação traz consigo a passagem do conceito de ―contravention expresse au texte de la loi‖ ao de ―fausse interprétation de la loi‖. Bastava, agora, uma falsa ou errada interpretação, ou seja, uma atribuição de sentido não verdadeiro ou incorreto ao texto legal. Mas o Tribunal, nessa perspectiva, limita-se a tratar da lei em abstrato, sem tomar em conta o caso concreto.134

Em 1837, estabelece-se em lei que a segunda cassação de decisão já cassada pelo mesmo motivo seria vinculante à autoridade judicial de reenvio.135

Com toda essa transformação, ficou o Tribunal de Cassação destinado a proferir a correta interpretação da lei (em cuja existência então se acreditava) e, por consequência, uniformizar a intepretação legal ao reiterar seus entendimentos nos muitos casos em que chamado a dar a última palavra.136

Observa-se nisso tudo já um passo, ainda que embrionário, rumo ao gradual reconhecimento de que os juízes de ―civil law‖ desempenham algum papel na determinação do sentido do direito. Deveras, além de se admitir a interpretação da lei pelo Poder Judiciário, passou-se a conferir importante força persuasiva aos entendimentos jurisprudenciais da Cassação, que com o tempo ―[...] transformou-se em órgão jurisdicional de cúpula, destinado

133 FRANÇA. República Francesa. Code civil. Disponível em: <https://www.legifrance.gouv.fr/ affichCode.do;

jsessionid=F1678979640239ACC4C79EAF05CE9B8B.tpdila07v_1?idSectionTA=LEGISCTA00000608969 6&cidTexte=LEGITEXT000006070721&dateTexte=20170405>. Acesso em: 05 abr. 2017. No original: ―Le juge qui refusera de juger, sous prétexte du silence, de l'obscurité ou de l'insuffisance de la loi, pourra être poursuivi comme coupable de déni de justice‖.

134 MARINONI, op. cit., 2014, p. 45. 135 Ibid., p. 49.

a definir a interpretação da lei e a zelar pela sua uniformidade‖137.

Tratou-se de importante relativização do dogma de que a lei seria e deveria ser auto evidente e os juízes sequer poderiam interpretá-la.

No entanto, ainda que admitida alguma atividade judicial na interpretação legal, concebia-se esta ainda como meramente reveladora de um sentido correto já dado pela lei, em consonância com o cânon codificador.

É dizer, a (permitida) operação interpretativa dos juízes ainda deveria limitar-se à utilização de meios apropriados para se encontrar um suposto sentido unívoco do Código Napoleônico, o que se constata ante a exigência, ao Tribunal de Cassação, de que revelasse a interpretação correta da lei — no que se admitia, pois, a existência de único, correto e pronto sentido extraível do texto legal, e não a participação do intérprete na construção da norma, constatada mais tarde.

Se antes se pensava que os juízes não poderiam exercer qualquer atividade intelectiva sobre o texto legal, nesse estágio permite-se-lhes uma operação interpretativa de revelação do sentido legal, mas ainda não se admite que também sejam construtores de sentido.

As decisões da Cassação, assim, por persuasivas que fossem, não eram entendidas como construção judicial do direito, e por isso não poderiam ser denominadas precedentes no sentido da ―common law‖. Antes, eram reiterações sobre a suposta interpretação correta da lei, verdadeiro ―parâmetro para o controle da legalidade das decisões‖138. Jurisprudência,

portanto.

Entre a jurisprudência de ―civil law‖ e os precedentes de ―common law‖, com efeito, há notáveis diferenças, de cunho quantitativo e qualitativo.

No aspecto quantitativo, o precedente constitui-se geralmente de um único julgado (às vezes referido conjuntamente com poucas decisões sucessivas que o apoiam), identificado pelo juiz do caso posterior como pertinente. Já a jurisprudência consiste numa pluralidade de decisões sobre vários casos, repetidoras de um mesmo entendimento acerca de uma matéria jurídica.139

137 Ibid., p. 52. 138 Ibid., p. 117.

139 TARUFFO, op. cit., 2014, p. 3. Constatação similar é feita por Teresa Arruda Alvim Wambier: ―Numa visão

mais aproximada, enxergam-se algumas divergências interessantes. Usualmente, em sistemas de civil law, um precedente não vincula. Vincula, isto sim, um entendimento que tenha sido adotado por uma quantidade expressiva de acórdãos, durante um certo espaço de tempo [...]. Nos sistemas de common law, um precedente (um só) pode vincular, como é o que ocorre na Inglaterra, que adota o stare decisis na sua versão mais rígida [...]‖ (WAMBIER, op. cit., p. 43).

No aspecto qualitativo, há claras diferenças quanto ao modo de uso do precedente e da jurisprudência.

O precedente, como se viu, é invocado mediante identificação da pertinência de sua ―ratio decidendi‖ com caso posterior, considerando-se os fatos relevantes do caso do precedente e verificando-se sua similaridade com os fatos do caso sob julgamento. A aplicação, pois, dá-se por meio de analogia, podendo-se afirmar que ―Comparação e distinção de circunstâncias relevantes são o conteúdo normal de decisões de common law‖.140

Já a jurisprudência é empregada sem essa técnica de análise dos fatos. Ao se invocar a jurisprudência como fundamento jurídico, não se aludem os fatos de um caso concreto específico, mas enunciados abstratos, breves e gerais complementadores da lei — que teriam sido afirmados nos julgamentos de vários casos —, colhidos de máximas, súmulas, ementas e passagens de fundamentação, com a estrutura de regras aplicáveis por subsunção. Ademais, a jurisprudência uniformizada já nasce como regra voltada a atingir casos futuros — ao contrário do precedente, que é identificado sempre pelo juiz do caso posterior.

Na observação de Taruffo, a jurisprudência acaba constituindo especificação do texto legal, comungando de sua estrutura de um conjunto de regras abstratas:

O uso de jurisprudência tem características muito diferentes. Em primeiro lugar, falta a análise comparativa dos fatos, pelo menos na imensa maioria dos casos. Aqui, o problema depende do que realmente ―constitui‖ a jurisprudência: trata-se, como se sabe, sobretudo dos enunciados sumulados (massime) elaborados pelo gabinete específico que existe nos Tribunais. A característica mais importante das máximas é que se trata de declarações, concentradas em uma ou em poucas frases, que têm como objeto regras jurídicas. Essas regras têm geralmente um conteúdo mais específico do que o ditado textual da norma de que constituem uma interpretação, mas são sempre formuladas como regras, ou seja, como enunciados gerais de conteúdo preceptivo. Não por acaso, as seleções de jurisprudência assemelham-se a codificações, mais detalhadas do que aquelas que representam os códigos verdadeiros e próprios, mas sempre como ―conjunto de normas‖ [...] Aqui, portanto, visualiza-se uma primeira diferença muito relevante: em regra, os textos que constituem a nossa jurisprudência não incluem os fatos que foram objeto de decisão, de modo que a aplicação da regra formulada em uma decisão anterior não é baseada na analogia dos fatos, mas na subsunção da fattispecie sucessiva em uma regra

geral.141

Portanto, aproximando-se muito mais da estrutura de jurisprudência do que da de precedente, as decisões reiteradas do Tribunal de Cassação, nessa segunda fase, constituíam esclarecimentos ou explicitações do que seria o correto sentido da lei, não se as concebendo como construção do direito pela Corte. Por isso, não se cogitava de conferir vinculatividade

140 BANKOWSKI; MACCORMICK; MARSHALL, op. cit., posição 7642-7643, tradução nossa – no original:

―Comparison and distinction of relevant circumstances are the normal content of common law decisions‖.

dessa jurisprudência aos juízos ordinários.

Foram necessárias novas vivências práticas e achegas teóricas para se visualizar que os juízes, mesmo no ―civil law‖, não são apenas reveladores, mas imprescindíveis construtores do sentido do direito. A respeito disso, o próximo subtópico.

3.3.2 A ausência de univocidade do sentido da lei e a inevitável atividade construtiva dos juízes na ―civil law‖

Após uma fase de proibição da interpretação judicial do direito, seguida de uma fase de permissão da mera revelação do sentido do texto normativo pelos juízes, a história dos ordenamentos de ―civil law‖ revelou uma realidade diversa daquela que pressupunha o movimento de codificação — segundo o qual, como visto, o texto legal poderia ser completo e coerente em sua estrutura e ainda fornecer sentidos unívocos em sua interpretação.

Primeiramente, constatou-se que o direito não goza de completude, sendo-lhe impossível prever soluções para todo e qualquer caso.

Com a experiência do envelhecimento das leis, presenciou-se o surgimento cada vez mais frequente de hipóteses não previstas pelo legislador, a evidenciar a insuficiência dos códigos para concederem respostas a todos os casos.142

Enxergou-se, logo, a existência de lacunas na lei, a serem preenchidas mediante atividade integrativa do juiz e não mediante colmatação pelo legislador em cada caso, por impraticável. O juiz, aí, de mero declarador da solução já prevista pelo legislador, passa a ser construtor da resposta diante da lacuna — ou, pelo menos, passa a ter mais interferência na determinação do direito do que quando simplesmente subsume um fato a uma hipótese legal expressa. Sobre o tema, já observava Cavalcanti Filho:

Em primeiro lugar, o edifício, que se considerava maravilhosamente completo, capaz de conter a solução de todos os problemas, revelou-se cheio de lacunas, com falhas graves e numerosas, e portanto incapaz de atender as crescentes exigências da sociedade [...]. Não obstante, conflitos frequentemente surgiam, e necessariamente deviam ser resolvidos, pois os juízes não podiam, sob pena de faltar à sua função fundamental, negar-se a solucioná-los. E tais soluções, realmente, vinham, embora o direito estatal não lhes propiciasse diretamente os meios para tanto. O julgador era assim forçado a buscar em outras fontes os elementos normativos de que necessitava para elaborar a solução para o caso que lhe era submetido. [...]. Quão distantes, portanto, estamos daquela figura puramente passiva, que outra tarefa não tinha senão a de buscar a vontade do legislador através das expressões gramaticais da lei.143

142 A esse propósito, Elizeu Amaral Camargo: ―Começou-se a perceber que as grandes codificações, estáticas,

envelheciam e, com o decorrer do tempo, tornavam-se insuficientes para solucionar as demandas suscitadas pela revolução social e industrial‖ (CAMARGO, op. cit., p. 149).

Além de se ter observado que o direito não é completo, pôde-se historicamente ver que não é ele coerente, por vezes contendo determinações conflitantes (antinomias) sem oferecer critérios para a resolução do conflito normativo. Nessas situações, a solução a ser dada fica assaz dependente de construção pelo juiz.

De fato, os três critérios clássicos de resolução de antinomias144 mostravam-se insuficientes em duas hipóteses, a saber, quando as normas em conflito fossem similares em termos de hierarquia, cronologia e especialidade, e quando houvesse conflito insolúvel entre os próprios critérios.145

Na primeira situação, sendo as duas normas de mesma hierarquia, não haveria uma norma superior que pudesse prevalecer sobre uma inferior. Sendo as duas contemporâneas, não existiria norma posterior para derrogar norma anterior. E sendo ambas igualmente gerais ou especiais, inexistiria norma especial que pudesse prevalecer sobre norma geral.

Na segunda situação (conflito insolúvel entre os próprios critérios), fala-se em antinomias de segundo grau, observáveis em três casos específicos: conflitos entre os critérios cronológico e hierárquico (quando uma norma anterior-superior conflita com uma posterior- inferior), entre os critérios de especialidade e cronológico (quando uma norma anterior- especial contraria com uma posterior-geral) e entre os critérios hierárquico e de especialidade (quando uma norma inferior-especial confronta-se com uma superior-geral).146

Para tais casos, a doutrina formulou os seguintes metacritérios pretensamente solucionadores das antinomias: (1) metacritério ―lex posterior inferiori non derogat priori

superiori‖ (norma posterior-inferior não derroga norma anterior-superior), aplicável no caso

de conflito entre os critérios cronológico e hierárquico; e (2) metacritério ―lex posterior

generalis non derogat priori speciali‖ (norma posterior-geral não derroga norma anterior

especial), aplicável no conflito entre os critérios de especialidade e cronológico.147

Sucede que também no caso das antinomias de segundo grau há situações de ausência de meios para a composição do conflito normativo, verificáveis quando os metacritérios revelam-se insuficientes. Um primeiro desses casos é o de conflito entre os

144 Quais sejam: (1) o critério hierárquico, segundo o qual a lei de nível mais alto prevalece sobre a de nível mais

baixo (―lex superior derogat legi inferior‖); (2) o critério cronológico, a determinar, em caso de conflito de normas de mesmo escalão, que prevaleça a norma mais recente sobre a mais antiga (―lex posterior derogat

legi priori‖); e (3) o critério de especialidade, pelo qual prospera a norma especial sobre a geral (―lex speciali

derogat lex generali‖).

145 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6. ed.

São Paulo: Atlas, 2012. p. 179.

146 DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 49. 147 Ibid., p. 50.

critérios de especialidade e cronológico.

Com efeito, o metacritério ―lex posterior generalis non derogat priori speciali‖ é parcialmente inefetivo, apontando a doutrina casos em que, contrariamente à sua disposição, a norma posterior geral derroga a anterior especial. Conclui Diniz que nessa hipótese ―Não há uma regra definida; conforme o caso, haverá supremacia ora de um, ora de outro critério [de especialidade ou cronológico]‖.148

O segundo caso de insuficiência de parâmetros para resolução de antinomias de segundo grau é o do conflito entre os critérios hierárquico e de especialidade, para o qual não há sequer um metacritério generalizável. Segundo Ferraz Júnior, nesse caso, ―[...] a opção pelo critério hierárquico ou de especialidade contraria a própria necessidade prática do direito de adaptabilidade‖.149

Nessas situações de ausência de critérios para a solução da antinomia, dirá a doutrina, o magistrado, dada sua obrigação de decidir, adquire discricionariedade para eleger qual das duas normas revela-se a mais indicada para aplicação naquele caso concreto. Esse juízo faz-se por meio de uma interpretação corretivo-equitativa150, analisando-se as normas em conflito à luz dos valores inspiradores da ordem jurídica e optando-se pela aplicação daquela que mais seja capaz de realizá-los nas circunstâncias do caso concreto.

Trata-se de mais uma situação que revelou a inevitabilidade da construção da solução pelo juiz, para além da mera subsunção do caso a uma hipótese legalmente prevista ou da aplicação de um critério formal de solução de antinomias. Deve-se observar nesse campo, com Chevallier, que a proliferação de textos legais nos tempos atuais, notadamente após o advento do Estado-Providência, ainda aumenta a possibilidade de antinomias.151

E enfim, além das lacunas e antinomias, pode-se mencionar outro dado da realidade que contraria o pressuposto codificador de um direito capaz de fornecer uma única e pronta resposta correta a cada caso.

148 Ibid., p. 49.

149 FERRAZ JUNIOR, op. cit., p. 179. 150 DINIZ, op. cit., p. 55.

151―A disciplina jurídica sofreu intensos abalos em razão da proliferação anárquica de regras, o que tornou mais

indeterminados os contornos da ordem jurídica, comprometeu a sua coesão e perturbou a sua estrutura: a existência de ‗hierarquias entrelaçadas‘, de ‗objetos jurídicos não identificados‘, de competências concorrentes testemunham uma nova desordem. Enquanto a hierarquia clássica das normas foi colocada em dúvida em virtude do fato do declínio da lei, da explosão de regulamentos, transformados na era do Estado- Providência na fonte essencial de obrigações e coerções para os administrados, tal como pela ampliação do poderio do poder jurisdicional, notadamente no nível constitucional, algumas novas normas, de origem exterior, vieram se integrar à ordem jurídica estatal, em condições que permanecem complexas; a produção do direito, a partir de então, parece menos regida por uma lógica dedutiva, atuante por via de crescente concretização, do que resultar de iniciativas desordenadas, adotadas por múltiplos atores e cuja harmonização é problemática‖ (CHEVALLIER, op. cit., p. 121-122).

Cuida-se do fato, revelado pela prática da aplicação do direito na ―civil law‖, de que o texto legal não fornece interpretações unívocas, mas possibilidades interpretativas, e que diferentes sujeitos, diante de um mesmo enunciado da lei e de casos concretos semelhantes, podem extrair consequências diversas, ainda que utilizem cânones pretensamente seguros de interpretação legal.152

Disso resultam circunstâncias como as divergências jurisprudenciais (quando diferentes órgãos julgadores interpretam de forma diferente um mesmo enunciado legal) e as mudanças jurisprudenciais (quando determinado órgão, que conferia uma dada interpretação à lei, passa a conferir-lhe outra possível), ambas contrárias à ideia de total determinação do direito.

Herbert Hart, por exemplo, reconhece que o direito, para estabelecer padrões gerais de conduta, deve valer-se de uma linguagem referente a categorias gerais. No entanto, casos há em que não é clara a possibilidade de subsunção dos fatos às categorias previstas na lei, e os cânones clássicos de interpretação não possibilitam que se chegue a uma única resposta correta153. Para o pensador inglês, em conjunturas como essa, nas quais não haja critérios para se determinar qual resposta deve prevalecer, está-se diante de crise na comunicação, a impor seja feita uma escolha.154

152 Sobre os métodos, pautas e cânones tradicionais de interpretação, Eros Grau critica que não diminuem a

arbitrariedade judicial. Pelo contrário, incrementam-na, haja vista que, não havendo regras que ordenem o uso de tais métodos, são os juízes que decidem qual método empregar em cada caso, geralmente para fundamentar uma decisão que o intérprete já se predeterminara a alcançar (noutro verbo, decidir antes, fundamentar depois): ―É necessário ainda dizermos que a reflexão hermenêutica repudia a metodologia tradicional da interpretação e coloca sob acesas críticas a sistemática escolástica dos métodos, incapaz de responder à questão de se saber por que um determinado método deve ser, em determinado caso, escolhido. Inexistindo regras que ordenem, hierarquicamente, o uso dos cânones hermenêuticos, eles acabam por funcionar como justificativas a legitimar os resultados que o intérprete se predeterminara a alcançar; o intérprete faz uso deste ou daquele se e quando lhe aprouver, para justificá-los‖ (GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 5. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros Editores, 2009. p. 43).

153 ―Em todos os campos da experiência, e não só no das regras, há um limite, inerente à natureza da linguagem,

quanto à orientação que a linguagem geral pode oferecer. Haverá na verdade casos simples que estão sempre a ocorrer em contextos semelhantes, aos quais as expressões gerais são claramente aplicáveis («Se existir algo qualificável como um veículo, um automóvel é-o certamente») mas haverá também casos em que não é claro se se aplicam ou não («A expressão «veículo» usada aqui inclui bicicletas, aviões e patins?»). Estes últimos são situações de facto, continuamente lançadas pela natureza ou pela invenção humana, que possuem apenas alguns dos aspectos dos casos simples, mas a que lhes faltam outros. Os cânones de «interpretação» não podem eliminar estas incertezas, embora possam diminuí-las; porque estes cânones são eles próprios regras gerais sobre o uso da linguagem e utilizam termos gerais que, eles próprios, exigem interpretação. Eles, tal como outras regras, não podem fornecer a sua própria interpretação‖ (HART, Herbert L. A. O conceito de Direito. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. p. 139).