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4 O PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO E A SEGURANÇA JURÍDICA

4.5 O poder judiciário brasileiro e a segurança jurídica na lida com a

Expostas as referidas críticas ao sistema de padronização decisória do Código de Processo Civil de 2015, impõe-se analisar se, e sob que condições, esse sistema é capaz de proporcionar segurança jurídica na jurisdição cível. Noutras palavras, é mister discutir:

primeiro, se o sistema deve, de antemão, ser abandonado por incompatibilidade com o

ordenamento jurídico pátrio (de modo que nem se adentraria a questão sobre sua eficácia para a consecução da segurança jurídica); segundo, se, ainda que possa sustentar-se legalmente, o sistema revela-se de plano ineficaz para o fomento da segurança jurídica; e, terceiro, quais as condutas dos membros do Judiciário brasileiro no manejo da jurisprudência cível, nesta quadra histórica de vigência do CPC/2015, que podem fomentar a segurança jurídica.

No primeiro ponto de discussão, enfocam-se as críticas apontadas nos itens 3.4.1 e 3.4.2, segundo as quais o sistema de vinculação padece de inconstitucionalidade e deve sucumbir ante o princípio do livre convencimento dos juízes.

Quanto à crítica de inconstitucionalidade do sistema, por ausência de previsão constitucional para a vinculação da totalidade dos pronunciamentos previstos no art. 927, perfilam-se, no presente estudo, formulações contrárias, para as quais, em verdade, a vinculatividade de pronunciamentos judiciais paradigmáticos, enquanto construções de sentido do direito (ante as limitações da lei escrita), decorre do próprio sistema constitucional de hierarquia judicial, dispensando uma previsão expressa sobre cada pronunciamento a que deva ser reconhecida força vinculante.262

Inclusive, nessa linha teórica, a vinculatividade não só deve incluir os pronunciamentos tipificados nos incisos III a V do art. 927, como também não deve limitar-se a eles, abrangendo, como potencialmente vinculantes, quaisquer decisões que construam sentido do direito, exaradas pelos órgãos superiores (―stare decisis‖ vertical) ou pelo próprio órgão julgador (―stare decisis‖ horizontal), tudo como decorrência lógica da estrutura constitucional hierárquica do Poder Judiciário. De fato, ―Todas as decisões que definem a interpretação ou atribuem sentido ao direito, em demandas repetitivas ou não, têm eficácia obrigatória‖.263

O tema toca a questão da separação constitucional de poderes prevista na Constituição, tradicionalmente interpretada como uma proibição ao Poder Judiciário para criar direito, posto que isso representaria invasão da esfera do Poder Legislativo, único órgão democraticamente legitimado a produzir o direito.

Mas, como se viu no capítulo anterior, o trajeto histórico de constatação e de crescimento da função construtiva da intepretação judicial inviabiliza a compreensão da separação de poderes de maneira estanque, devendo-se concluir que os Poderes Legislativo e Judiciário contribuem conjuntamente para a conformação do direito por meio de suas atividades mais típicas — edição de atos normativos abstratos, no caso do Legislativo, e julgamentos de espécies concretas, no caso do Poder Judiciário —, advindo a legitimidade democrática dos pronunciamentos do Poder Judiciário pela construção racional e fundamentada das normas a partir do texto legal democraticamente aprovado, reconduzindo- se a decisão concreta, em última análise, a uma prévia decisão do povo.264

262 Ibid., p. 24. 263 Ibid., p. 22.

264 Além da doutrina referida no capítulo anterior em relação ao universo da ―civil law‖, confiram-se as

argumentações de Ronaldo Cramer e Rodolfo de Camargo Mancuso especificamente direcionadas ao sistema brasileiro. Ambos os doutrinadores vislumbram a legitimidade da construção judiciária do direito no fato de esta basear-se na lei, a qual em última análise é reconduzível a uma decisão do próprio povo. Assim: ―Não há duvida de que os tribunais, quando emitem um precedente, sobretudo em casos difíceis, criam uma norma que deverá ser seguida nos demais casos idênticos. No entanto, num sistema de precedentes adotado pelo

Portanto, à luz desses posicionamentos teóricos ora endossados, rejeita-se a crítica de inconstitucionalidade dirigida ao sistema de vinculação previsto no novo Código. O mesmo no tocante à crítica de que o sistema deveria sucumbir perante um princípio de livre convencimento dos magistrados.

Nessa seara, o presente estudo segue a esteira de doutrina segundo a qual o dito livre convencimento não pode ser considerado em termos absolutos, como que a autorizar cada juiz a decidir conforme a própria consciência e a ignorar o histórico de interpretação gradual do direito pelo Poder Judiciário do qual constitui um componente.

Nessa leitura, portanto, o livre convencimento não pode ser considerado incompatível com a observância a pronunciamentos judiciais decisivos na construção do sentido do direito, mesmo porque cada juiz detém o poder de soberanamente apreciar os fatos do caso concreto e argumentativamente avaliar sua similitude ou não com os fatos subjacentes ao precedente, a fim de concluir pela aplicabilidade ou não deste (similarmente ao

distinguishing abordado no item 3.2.2.2).265

Sendo assim, não há motivos para o rechaço, de plano, do sistema do Código por inconstitucionalidade ou incompatibilidade com um princípio de livre convencimento.

Dito isso, passe-se ao segundo ponto de discussão acima colocado, sobre se o sistema não se revelaria, de plano, ineficaz para o fomento da segurança jurídica. Está-se, pois aludindo à crítica exposta no item 3.4.3.

Também nesse ponto rejeita-se a crítica formulada, segundo a qual a vinculação decisória seria ineficaz para o incentivo à segurança jurídica (a qual dependeria muito mais da qualidade da fundamentação das decisões judiciais).

Acompanham-se, neste trabalho, as formulações doutrinárias no sentido de que a vinculação decisória pode sim — ainda que não como meio exclusivo — fomentar a ou da observação dos costumes da sociedade, mas com base em texto normativo, que, por sua vez, ou é a própria lei ou não pode ser contrário à lei. Como as leis são produto da vontade popular – uma vez que os parlamentares que as criam são representantes eleitos pelo povo -, os tribunais, quando extraem a norma do precedente a partir das leis ou em harmonia com elas, conformam-se com essa vontade‖ (CRAMER, Ronaldo. Precedentes judiciais: teoria e dinâmica. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 65). Similarmente: ―Por mais que se reconheça a eficácia expandida da jurisprudência dominante, ainda assim se cuida de um produto da função judiciária estatal (dimensão dinâmica), e, não, de uma manifestação do Judiciário enquanto Poder (dimensão estática), o que serve afastar o argumento de que o direito pretoriano possa, de per si, abrir (mais um) foco de tensão, de atrito ou de desequilíbrio com o Legislativo ou o Executivo. E, quando ocorre que uma decisão judicial projeta eficácia expandida – erga omnes, ultra partes – é bem de ver que é o próprio Direito que assim o prevê [...], vale dizer: em fim de contas, tudo reflui ao império da lei‖ (MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Sistema brasileiro de precedentes: natureza: eficácia: operacionalidade. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 399).

265 Cf., a propósito, PUGLIESE, 2016, p. 70-71. Esse autor, abordando como se deu em países de ―common law‖

o enfrentamento à tese de violação dos precedentes à independência dos juízes, refere linhas teóricas segundo as quais a jurisdição deve ser considerada uma atividade una, e cada órgão judicial é participante apenas temporário no processo de interpretação, que no seu todo deve ser coerente.

segurança jurídica, desde que posta em prática de uma maneira adequada (conforme se verá a seguir no enfrentamento do terceiro ponto de discussão) e sobretudo se considerada a segurança jurídica não em termos absolutos (como definição, imutabilidade e previsibilidade), mas de maneira atenta às reais possibilidades do direito e de sua interpretação (portanto, como cognoscibilidade, confiabilidade e calculabilidade).

Embora seja real a possibilidade de que a vinculação siga o perigoso caminho atual de aplicação subsuntiva de enunciados jurisprudenciais, tal não significa que não possa ela ser concretizada de maneira diversa, mormente quando o próprio Código prevê metodologia para um uso mais seguro dos pronunciamentos judicias paradigmáticos.

Com efeito, os cuidados com a fundamentação de decisões que invocam a jurisprudência uniformizada, inspirados na ―common law‖, contribuem para remediar os problemas da aplicação subsuntiva da jurisprudência, tornando relevante a necessidade de atenção a fatos (tanto os do caso sob julgamento quanto os dos casos geradores da jurisprudência uniformizada) — embora se deva reconhecer que a assimilação dessa metodologia demande uma readequação de concepções e de práticas correntes do Poder Judiciário brasileiro.

Portanto, compreende-se que o sistema de vinculação decisória do Código pode sim (a depender de como seja empregado) ser eficaz para a consecução da segurança jurídica. Com essa retenção, pode-se enfrentar o terceiro ponto de discussão, relativo às condições sob as quais pode haver essa eficácia do Código para o atingimento da segurança jurídica.

Nesse ponto, acolhem-se as críticas abordadas no item 3.4.4, entendendo-se que, para que o sistema promova segurança jurídica, deve o Poder Judiciário, em o utilizando, adotar determinadas condutas específicas.

Como primeira conduta, deve-se encarar o art. 927 como previsão de um rol meramente exemplificativo, de modo que se considerem vinculantes, a um juiz ou tribunal, os pronunciamentos de órgão superior que tenha construído o sentido do direito, notadamente das Cortes superiores, independentemente de se tratar de decisões de casos repetitivos.

Desse modo torna-se possível que as aplicações ulteriores do direito possam dar- se de forma coerente com aqueles pronunciamentos, evitando-se que órgãos inferiores deem ao direito conformação contrária àquela que lhe tenha dado um órgão de jurisdição superior, circunstância que prejudicaria a capacidade de orientação dos cidadãos. Com a condição ora apontada, há relativa segurança dos cidadãos de que, uma vez adotada determinada orientação pelos órgãos superiores, podem-se planejar comportamentos e exercerem-se direitos com base

naquela orientação, pois eventual discussão e solução judicial de casos futuros não desbordará daquele parâmetro.

Assim, portanto, há eficácia para a produção de segurança jurídica enquanto cognoscibilidade material — posto ser possível conhecerem-se os entendimentos nos quais o Poder Judiciário há de basear-se ao aplicar o direito — cognoscibilidade intelectual — por aplicação uniforme do direito —, confiabilidade — enquanto eficácia normativa, posto que proporcionada a efetiva aplicação dos entendimentos anteriores — e calculabilidade — na forma de vinculatividade normativa, por ser possível aos cidadãos saberem em que parâmetros legais o Judiciário nortear-se-á em suas atuações futuras.

A segunda conduta para que o sistema de vinculação decisória do Código de 2015 promova segurança jurídica consiste em admitir a vinculatividade não especificamente dos enunciados formulados com o uso dos institutos de uniformização arrolados do art. 927, mas sim das razões de decidir dos julgamentos dos casos concretos que nortearam a formulação desses enunciados. Somente assim se permite um trabalho com precedentes, pela possibilidade de comparação entre as circunstâncias relevantes do caso sob julgamento e as do caso precedente (art. 489, §1º, incisos V e VI, do CPC/2015).

Com isso, alimenta-se a segurança jurídica nos estados de: (1) cognoscibilidade material — visualizando-se nas razões de decidir as balizas que nortearão a conduta do Poder Judiciário —; (2) cognoscibilidade intelectual — pela determinabilidade, com visualização dos métodos e critérios argumentativos usados para a obtenção dos entendimentos jurisprudenciais, e pela aplicação uniforme do direito, decorrente de darem-se soluções iguais apenas a casos com similaridades relevantes —; (3) confiabilidade — como eficácia normativa, ao se possibilitar que os entendimentos sejam efetivamente aplicados a casos que guardem alguma similaridade com os casos que os originaram —; e (4) calculabilidade — enquanto vinculatividade normativa, pela limitação do espectro de consequências aplicáveis a um ato ou fato, que passam a ser aquelas consequências extraíveis das razões de decidir da jurisprudência relativa a casos similares, e pela limitação da discricionariedade judicial, ao se extraírem das razões de decidir parâmetros para a interpretação de breves máximas ou enunciados de jurisprudência.

Uma terceira conduta identificável é a de efetivo zelo, pelos membros e órgãos do Poder Judiciário, para que a formulação de enunciados da uniformização jurisprudencial reflita minimamente as circunstâncias fáticas dos casos que motivaram sua criação (art. 926, §2º, do Código).

Certo é, segundo referencial teórico já abordado, que breves enunciados não podem refletir detalhadamente as circunstâncias dos casos que os motivaram, e que não é possível, no julgamento de determinado incidente, prever a complexidade fática de casos futuros em cuja resolução venha a ser invocado um enunciado266. Não se crê, outrossim, que o uso meramente subsuntivo de um enunciado possa proporcionar segurança jurídica, por mais rica que pretenda ser sua formulação.

Contudo, se o Código não abandonou os enunciados de jurisprudência uniformizada, uma melhor redação destes pode constituir melhor ponto de partida que uma má redação, pois pelo menos diminui a possibilidade de confusão quanto ao alcance dos julgados motivadores da elaboração do enunciado e quanto aos casos que possam com eles ter pertinência. Além disso, um enunciado que aponte para a riqueza fática de seus casos originadores pode motivar a constatação da necessidade de se pesquisarem e estudarem esses casos.

Eis, portanto, que o cuidado na elaboração do enunciado jurisprudencial pode ser eficaz à promoção da cognoscibilidade (por aplicação uniforme do direito, com atenção às circunstâncias fáticas dos casos inspiradores do enunciado e as dos casos sob julgamento) e calculabilidade (enquanto vinculatividade normativa, por permitir saber que o enunciado, iluminado pelo estudo de seus julgados originadores, será futuramente observado pelo Judiciário no julgamento de casos que guardem identidade com as razões de decidir daqueles julgados).

Por fim, a quarta condição para que a vinculação decisória do novo Código promova segurança jurídica é a efetivação, pelo Judiciário, dos cuidados com mudança de orientação, previstos nos §§2º a 4º do art. 927.

266 Rememore-se que, conforme dito no segundo capítulo, o alcance do precedente na ―common law‖ delineia-se

gradualmente ao longo da história de sua aplicação, e o precedente somente é reconhecido como vinculante no julgamento futuro de casos aos quais se possa demonstrar a pertinência de sua ratio decidendi. Ali, pois, não nascem as decisões com a intenção de serem uma regra geral aplicável a situações futuras que se amoldem à sua ―fattispecie”, e sim como potenciais (eventuais) precedentes vinculantes. No sistema jurisprudencial brasileiro, há como que uma antecipação da formulação da regra do precedente e a crença de que a decisão uniformizadora já nasce como ―precedente‖. Assim: ―Toda análise sobre precedente judicial não pode perder de vista que ele não constitui decisão-piloto apta a solucionar diversos casos paradigmas. Ou seja, o Tribunal Superior, ao julgar um leading case, não pode determinar que ele tenha valor de precedente judicial, posto que somente se, historicamente, ele for utilizado na argumentação das partes e na fundamentação de novas decisões judiciais é que ele começará a ganhar o status de precedente. Destarte, ontologicamente, o precedente constitui decisão judicial proferida para solucionar caso concreto, ele nunca pode pretender nascer desde sempre como precedente. Assim, a aptidão dele para constituir critério normativo apto a solucionar novos casos dependerá, inevitavelmente, do processo histórico referente a sua futura aplicação‖ (NERY JUNIOR; ABBOUD, op. cit., p. 490). Outrossim: ―O alcance do holding do caso normalmente não é conhecido antes que casos subsequentes interpretem e apliquem o caso anterior‖ (FINE, op. cit., p. 74).

São tais cuidados eficazes ao alcance da segurança jurídica, enquanto cognoscibilidade material (haja vista o delineamento de marcos temporais acerca da vigência de novo entendimento), confiabilidade (por estabilidade normativa, evitando-se a alteração brusca da orientação judicial e a frustração das confianças geradas pelo entendimento superado) e calculabilidade (na forma de continuidade normativa, posto que se impedem alterações bruscas e drásticas nos entendimentos dos tribunais).

Com as quatro condições referidas, tem-se delineado um perfil de conduta do Poder Judiciário brasileiro que se revela eficaz à consecução da segurança jurídica na lida com a jurisprudência cível, no atual contexto de vigência do Código de Processo Civil de 2015.

Tendo-se por base esse perfil, é possível passar-se ao derradeiro capítulo desta dissertação, em que será analisada a conduta do TJMA no uso de institutos de uniformização de jurisprudência, a fim de se avaliar se constitui conduta eficaz à promoção da segurança jurídica.

5 O TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO MARANHÃO, A