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4 O PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO E A SEGURANÇA JURÍDICA

4.4 Críticas ao sistema estabelecido no Novo Código de Processo Civil

4.4.4 Redundância, limitação, equívoco e impertinência da previsão de quais

Há também críticas à enumeração, no art. 927, dos pronunciamentos judiciais que devem ser observados por juízes e tribunais.

Conforme se referiu acima, certos doutrinadores perceberam a tensão existente, no novo Código, entre o estabelecimento de uma metodologia de aplicação de precedentes vinculantes, inspirada na ―common law‖, e a atribuição de vinculação a pronunciamentos com típica feição de jurisprudência uniformizada.

Nessa perspectiva foi que se teceram críticas ao art. 927 do Código, que prevê os pronunciamentos que os juízes e tribunais devem necessariamente observar.

Uma primeira crítica ao artigo direcionou-se ao fato de este pretender, enquanto lei infraconstitucional, ser responsável por conferir caráter vinculante aos pronunciamentos das Cortes Supremas, bem como ao fato de o dispositivo restringir o rol de pronunciamentos que devem ostentar esse caráter vinculante.

Num sistema que pretenda proporcionar unidade ao direito por meio de observância à construção judicial do sentido da norma, decorre da própria ordem constitucional (e não de lei infraconstitucional, como um Código de Processo Civil) que os juízes e tribunais observem as atribuições de sentido do direito realizadas pelos órgãos judiciários que lhe são superiores. Pelo mesmo motivo, é desnecessária, além de excessivamente limitadora, a discriminação tipificante dos pronunciamentos que devem possuir eficácia vinculante, já que da mesma ordem constitucional também deriva que as razões de decidir das decisões dos órgãos judiciais superiores logicamente devem ser o local para a procura do sentido do direito pelos órgãos inferiores, acaso haja efetiva preocupação com a unidade e coerência ao direito.

Portanto:

[...] um Código de Processo Civil não pode ter a pretensão de limitar a eficácia das decisões das Cortes Supremas. O art. 927, caput, somente pode ser compreendido como uma norma equivocada e destituída de modéstia, pois a lei infraconstitucional não só não precisa dizer que as rationes decidendi das decisões das Cortes Supremas têm eficácia obrigatória, como obviamente não pode ter a pretensão de escolher as decisões ou definir os enunciados que podem ter essa eficácia. A eficácia obrigatória das rationes decidendi das decisões das Cortes Supremas é algo que logicamente deflui da leitura da Constituição à luz da teoria do direito [...].256

256 MARINONI, Luiz Guilherme. O julgamento nas cortes supremas: precedentes e revisão do recurso diante

Nesse espeque, o mesmo Marinoni observa o equívoco que é a não inclusão, dentre os pronunciamentos vinculantes, dos julgamentos de recursos especiais e extraordinários não repetitivos, nos quais as Cortes superiores atribuem sentido ao direito:

[...] é evidente que não são apenas as decisões proferidas em recursos extraordinários repetitivos que obrigam os juízes e tribunais, mas as proferidas em

todo e qualquer recurso extraordinário. As rationes decidendi dos julgados

proferidos pelo STF têm claro e inocultável efeito vinculante, conforme algumas decisões da própria Corte Suprema já puderam esclarecer. É um grosso equívoco imaginar que apenas as decisões proferidas em recursos repetitivos têm eficácia obrigatória. A letra do art. 927 parece supor que a função das Cortes Supremas é resolver litígios que podem se repetir em massa para, dessa forma, otimizar a administração da justiça.257

Se, portanto, a preocupação de um sistema precedental é com a coerência do direito, não se pode atribuir a condição de vinculatividade apenas a decisões sobre temas com repetição em massa nos juízos e tribunais. O que deve importar, em verdade, para que uma decisão possa vir a ser precedente, é que tenha determinado uma questão legal.

Pensar contrariamente é entender que a vinculatividade teria o objetivo de apenas descongestionar os tribunais, conferindo-lhes celeridade, o que seria compatível com uma abordagem tradicional da jurisprudência uniformizada e sua forma de aplicação (conforme abordado supra), mas não com um sistema inspirado nas funções e na forma de uso de precedentes, que o CPC/2015 procurou instituir.

Uma segunda crítica ao art. 927 é a de que determinados pronunciamentos judiciais nele arrolados não se assemelham minimamente à estrutura de precedentes para serem utilizados com uma metodologia similar à de uso daquele instituto.

Justamente no dispositivo voltado a explicitar os pronunciamentos judiciais que são de observação obrigatória na nova ordem processual, o Código elenca figuras que não podem (salvo se com certo esforço interpretativo) ser assemelhadas a precedentes, aplicáveis com uma metodologia de uso de precedentes, antes constituindo pronunciamentos representativos de jurisprudência uniformizada, aplicáveis por meio de metodologia de invocação de jurisprudência (subsunção de casos concretos a teses abstratas de direito).

Marinoni, a esse propósito, critica a previsão de súmulas e de acórdãos em incidente de resolução de demandas repetitivas e em julgamentos de recursos extraordinário e especial repetitivos (art. 927, incisos II, III e IV)258.

257 Ibid., p. 21-22. 258 Ibid.

Sobre as súmulas, observa o doutrinador que estas não podem, em seu breve enunciado, refletir as razões de decidir dos casos que as originaram, sendo impossível que, por si sós, permitam uma adequada verificação da pertinência entre essas razões de decidir e as circunstâncias de casos futuros. Assim:

Lamentável, ainda, é a insistência em relação às súmulas. Essas nunca conseguiram contribuir para a unidade do direito. Foram pensadas a partir de uma compreensão muito superficial do sistema em que as decisões têm efeito obrigatório ou a partir de máximas – uma lamentável e ineficaz tentativa de alguns sistemas de civil law, como o italiano, para o encontro da uniformidade da interpretação. As súmulas foram concebidas como enunciados abstratos voltados a facilitar o trabalho de correção das decisões dos tribunais. É ilógico tentar dar-lhes função de precedentes, na medida em que só a decisão do caso concreto é capaz de espelhar em toda a sua plenitude o contexto fático em que a ratio decidendi se insere.259

Já no tocante aos acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas, e em julgamentos de recursos extraordinário e especial repetitivos, o Código não esclarece qual parte desses acórdãos deve ser observada pelos juízes de casos posteriores. Somente se pode conceber a aplicação, a esses elementos jurisprudenciais, de uma metodologia similar à de uso de precedentes, acaso se acrescente que são as razões de decidir dos referidos acórdãos que devem ser consideradas vinculantes:

Por outro lado, falar na observância dos acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos também diz pouca coisa. Note-se que a palavra ―acórdão‖ nada diz sobre a sua substância e, assim, sobre a porção da substância do acórdão que realmente pode obrigar os juízes e tribunais. Essa porção não pode ser o resultado do julgamento ou a decisão propriamente dita. Só pode ser a ratio

decidendi ou o fundamento determinante do alcance do resultado.260

E um terceiro enfoque de crítica ao art. 927 é o de que faz previsão desnecessária, qual seja, a de que juízes e tribunais deverão observar decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade.

A desnecessidade da previsão decorre de que a obrigatoriedade da observância de tais decisões já resulta de sua própria coisa julgada ―erga omnes‖, com assento constitucional, e não de previsão de sua vinculatividade no diploma processual civil. Ainda segundo Marinoni, a única maneira de se entender que a figura do art. 927, inciso I, desempenhe o papel de orientar os juízes de casos posteriores, é interpretar que a decisão em controle de constitucionalidade de uma lei (mais precisamente suas razões de decidir) deva ser observada

259 Ibid., p. 23. 260 Ibid., p. 21.

em posterior controle de constitucionalidade de lei similar. Nas palavras do autor:

[O art. 927] Diz, em primeiro lugar, que os juízes e tribunais observarão as decisões do STF em controle concentrado de constitucionalidade. Trata-se de previsão que chega a ser absurda, na medida em que tais decisões produzem coisa julgada erga

omnes e, apenas por isso, por ninguém podem ser questionadas. Para salvar o

equívoco, é necessário esclarecer que a ratio decidendi das decisões proferidas em sede de ação direta de inconstitucionalidade têm, por exemplo, valor precedental diante de caso em que se questiona lei estadual que possui o mesmo teor da lei estadual já declarada inconstitucional. Nessa perspectiva, admite-se que os fundamentos determinantes ou a ratio decidendi da decisão proferida na ação de inconstitucionalidade têm eficácia vinculante.261

Com toda essa exposição constata-se que o sistema de padronização decisória implantado no novo Código de Processo Civil sofreu críticas em variados aspectos, sob variadas perspectivas, impondo-se uma reflexão acerca de tais críticas para que se conclua: (1) se o sistema sustenta-se constitucionalmente, (2) se é apto a promover suas finalidades norteadoras e, (3) em caso de resposta positiva às duas primeiras indagações, de que forma o Judiciário deve compreendê-lo e operá-lo para a consecução daquelas finalidades, notadamente a de proporcionar segurança jurídica.

4.5 O poder judiciário brasileiro e a segurança jurídica na lida com a jurisprudência