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6. AS CONSEQUÊNCIAS DO MEDIA BLACKOUT

6.3 O caso Sotloff

A discussão sobre o media blackout ganhou novos contornos depois da morte do jor- nalista americano Steven Sotloff em setembro de 2014. Sotloff havia sido sequestrado na Síria um ano antes, enquanto cobria a guerra civil no país. Ele foi morto pela organização extremis- ta Estado Islâmico, cujo objetivo é estabelecer um califado único que congregue os muçulma- nos sunitas. Assim como aconteceu com James Foley, Sotloff foi decapitado e um vídeo em que seu corpo aparece separado da cabeça foi amplamente divulgado pela internet, inclusive por sites de notícias e canais de televisão (uma parte deles, porém, omitiu as partes com as imagens mais fortes).

O sequestro de Sotloff foi mantido fora da mídia a pedido da família e dos amigos. Ele era um repórter freelance, ou seja, não contava com o suporte de nenhuma empresa de comu- nicação. Além disso, era apenas mais um entre os tantos repórteres sequestrados por rebeldes sírios. Segundo o Comitê de Proteção para Jornalistas, a Síria é o país mais perigoso para o exercício do jornalismo. Nesse panorama, não foi preciso realizar nenhuma grande operação para manter o caso em silêncio. Ao que parece, a mídia em si não tinha muito interesse no caso.

Entretanto, havia um fator fundamental para que a família entendesse que a melhor sa- ída era manter o sequestro longe da imprensa: Sotloff era judeu e tinha cidadania israelense. A grande preocupação era que, se isso fosse descoberto por seus sequestradores (na época, não se sabia ao certo quem eram, mas devido ao histórico de conflitos no Oriente Médio, era de se esperar que nutrissem forte ódio a Israel), ele seria morto. Um grupo de amigos e familiares se

lançou em uma iniciativa para apagar da internet todo o tipo de conteúdo que pudesse dar pistas sobre sua religião e cidadania israelense. O silêncio só foi rompido quando Sotloff apa- receu no vídeo em que James Foley é morto.

Com a decapitação do jornalista diante das câmeras, a comunidade jornalística se vol- tou para refletir não mais a questão moral do media blackout, mas sua eficácia em garantir a segurança dos reféns. O chefe do Comitê de Proteção para Jornalistas, Joel Simon, que outro- ra defendia a prática, inclusive durante o sequestro de Rohde, escreveu um longo artigo na Columbia Journalism Review (revista da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos), sobre a necessidade de repensar e frear o boicote da imprensa. Simon argumenta que não é possível mensurar até que ponto os blackouts são de fato efetivos e que podem, na verdade, ser prejudiciais para os reféns.

Poucas semanas depois que Rohde escapou do cativeiro, eu me encontrei com ele e sua mulher, Kirsten Mulvihill, para almoçar em Nova York. Nós falamos sobre sua experiência, e sobre a melhor maneira para o CPJ poder ser útil na próxima vez em que um jornalista fosse sequestrado. Apesar do media blackout não ter nada a ver com a fuga de Rohde, ele acreditava que foi um componente vital para fazer daquela situação algo mais fácil de se manejar. Eu apoiei o blackout sobre o caso de Rohde e acredito que era deci- são certa naquele momento. Mas muitas coisas aconteceram desde então e minha visão atual é de blackouts só devem ser utilizados em raríssimas cir- cunstâncias (SIMON, 2014).

O próprio Rohde também escreve um artigo para seu blog na Reuters, onde trabalha atualmente, em que cita os malefícios do blackout. No seu caso, ele diz que não é possível saber se ajudou mesmo a fazer com que os sequestradores estivessem dispostos a negociar um resgate razoável. No momento em que ele escapou, o grupo taliban pedia uma quantia de US$ 7 milhões e a libertação de sete prisioneiros de Guantánamo. A proposta era completamente inviável, mas era uma pechincha diante dos US$ 25 milhões e 15 prisioneiros pedidos no pri- meiro contato dos sequestradores com sua família.

O que ele afirma ter constatado, porém, é que o media blackout evita que os governan- tes se sintam pressionados. No seu caso especificamente, a pressão da imprensa sobre o go- verno americano poderia ter implicado em um cerco maior ao governo paquistanês. Como já falamos, Rohde foi mantido prisioneiro nas áreas tribais do Paquistão. A região é dominada pelo Taliban e o exército e o serviço secreto paquistanês fazem vista grossa a esta situação. Durante a fuga, Rohde e Tahir não precisaram andar mais que algumas poucas centenas de metros para encontrar abrigo em uma base militar paquistanesa. Rohde também afirma que o blackout põe em risco outros jornalistas e profissionais que trabalhem com ajuda humanitária que se dispõem a ir até as zonas de conflito, uma vez que não contam com as informações reais sobre a situação nesses locais. Isso pode fazer com que subestimem os riscos e negligen- ciem alguns cuidados que poderiam evitar novos sequestros.

No caso de Sotloff, a cobertura midiática poderia ter influenciado os EUA a tomarem atitudes contundentes contra o EI antes que esse atingisse a força e tamanho que têm hoje. A organização controla poços de petróleo nas regiões da Síria e Iraque, e a renda proveniente destes servem como financiamento para as mais diversas atrocidades que cometem contra aqueles que consideram seus opositores (a lista vai do governo sírio a xiitas e pessoas de ou- tras religiões, como os yazidis). Por onde passa, o EI deixa um rastro de sangue e cadáveres.

Desde setembro, quando as barbaridades do EI passaram a fazer parte da cobertura di- ária da imprensa mundial, os governos americano e britânico têm feito apelos para que os veículos evitem noticiar que outros reféns estariam em poder do grupo. A justificativa seria de que a visibilidade serviria de propaganda para os extremistas e poria em perigo a vida das vítimas. O jornalista Jamie Detmer, em um artigo para o site The Daily Beast, afirma que é preciso fazer justamente o contrário. Para ele, evitar falar no EI é dar aos terroristas todo o poder sobre as informações veiculadas, sobre a identidade de suas vítimas e sobre quando é interessante que sejam notícia.

Visibilidade minaria o controle dos jihadistas sobre o choque causado na po- pulação a respeito de seus assassinatos. Os EUA e o Reino Unido com seus blackouts estão dando ao EI a iniciativa, deixando para que eles decidam quando os reféns devem ter seus nomes reveleados, permitindo-lhes acres- centar o drama do desconhecido quando ele ameaçam pela primeira os reféns em frente à câmera e quando de fato os matam de maneira brutal. Ao menos

esse poder de nomeá-los poderia ser retirado os jihadistas, que já estão em posição de insultar seus inimigos e tornar o abate de ocidentais em um espe- táculo global. (DETMER, 2014)

É inegável, porém, que algumas informações podem de fato pôr em risco a vida dos reféns. A cidadania israelense de Sotloff é uma delas. O que Joel Simon (2014), do CPJ, pro- põe, é que os casos precisam ser noticiados, mas que alguns detalhes podem ser omitidos para garantir a segurança das vítimas. Entretanto, é preciso deixar claro à população que nem tudo está sendo falado, e que isso acontece para preservar o reféns. Ainda que os terroristas possam divulgar tais informações na internet e que quem realmente esteja interessado nelas irá desco- bri-las, o fato da imprensa não noticiá-las diminui as chances de que possam complicar as negociações ou por as vítimas em perigo.

Conseguir evitar esse vazamento não é uma tarefa simples. Em 2002, quando Daniel Pearl foi sequestrado no Paquistão, o Wall Street Journal, jornal para o qual trabalhava, pediu às empresas de comunicação que não mencionassem que os pais do jornalista eram israelenses e que ele era judeu. Em um programa da CNN Internacional, porém, um analista de segurança falou sobre a nacionalidade dos pais de Pearl. A CNN retirou o vídeo do ar. Em outro episó- dio, o Washington Post publicou uma matéria em que dizia que o repórter era judeu. (SHA- FER, 2006). Pearl foi decapitado e esquartejado em frente a uma câmera por terroristas da Al Qaeda depois de cinco semanas em cativeiro.

Essa é uma solução que exige compromisso e desafia um ambiente competi- tivo em que empresas de comunicação não têm mais o monopólio da infor- mação. Apesar disso, se essas empresas conseguem concordar sobre não co- brir sequestro de jornalistas, certamente poderão chegar a um acordo sobre como cobrir tais situações (SIMON, 2014).

7. CONCLUSÃO

No trabalho aqui apresentado, buscamos analisar a interlocução entre terrorismo e jor- nalismo e analisar os impactos da prática do media blackout para a imagem pública da im- prensa, o cumprimento de seu papel social de informar a sociedade e para a segurança dos jornalistas que procura proteger. Em relação ao fato do terror se beneficiar do noticiário e se valer dele para atingir seus objetivos, entende-se que é um efeito colateral de um direito que deve ser exercido: o direito à informação. As pessoas querem e devem ser informadas de fatos que têm impacto para suas vidas e para o mundo. Entretanto, é preciso que a imprensa se policie e esteja sempre envolvida em um processo de reflexão sobre como cobrir o terrorismo e que enquadramentos podem ser evitados para não deixar que a informação possa servir co- mo propaganda para o crime.

A partir da análise do sequestro de David Rohde foi possível identificar que, embora os fatos envolvendo o sequestro de jornalistas sejam, em geral, permeados de valores-notícia e sejam de interesse público, podem ser omitidos desde que haja um esforço das empresas de comunicação nesse sentido.

Identificamos que, ao passo que o media blackout é visto como uma forma de garantir a segurança das vítimas, há poucos indícios de que o faça de fato. Ainda assim, pode ser bené- fico em casos específicos, ou pode ainda ser utilizado de forma seletiva, quando apenas algu- mas informações, e não o fato como um todo, são omitidas. Entre os benefícios prometidos pelo blackout estão:

a) Diminuição do risco a que as vítimas estão naturalmente expostas

b) Evita que os sequestradores acreditem que o refém é alguém muito importante e que podem pedir altas quantias de dinheiro pela sua libertação

c) Impede que os terroristas se apropriem do noticiário para fazer propaganda de suas atrocidades

Os problemas, por sua vez são:

a) Diminuem a pressão sobre os governos, que podem demorar mais para agir ou mesmo fazê-lo de forma pouco convincente e eficaz

b) Não há comprovações de que garanta a segurança dos reféns

c) Põe em risco outros jornalistas que se dispõem a ir cobrir conflito de risco, justa- mente porque estes não têm dimensão da situação como um todo e podem negli- genciar alguns cuidados

d) Deixa que os terroristas controlem o discurso através da ação destes pelas mídias sociais

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