• Nenhum resultado encontrado

6. AS CONSEQUÊNCIAS DO MEDIA BLACKOUT

6.2 A segurança como justificativa

A justificativa da segurança não convenceu a todos. Depois que Rohde conseguiu fu- gir do cativeiro e a imprensa americana podia falar livremente sobre o assunto, alguns jorna- listas se debruçaram sobre os impactos do media blackout e sobre sua eficácia em garantir a segurança dos reféns. Como já falamos, a prática não era nova, mas nunca foi tão bem orques- trada. Por sete meses, ao menos 40 empresas de comunicação que tiveram conhecimento do caso se mantiveram caladas sobre um assunto com grande potencial noticioso. Não fosse o sequestro de grande valor notícia por si só, houve ainda o fato de que Rohde e Kirsten só es- tavam casados por dois meses e que o repórter não poderia receber o prêmio Pulitzer porque estava em poder do Taliban.

É curioso que Rohde tenha agido de maneira completamente diferente em relação à sua detenção por facções sérvias na Guerra da Bósnia. Ao passo que durante o sequestro no Afeganistão/Paquistão Rohde tentou ao máximo convencer os sequestradores a se manterem longe dos olhos da imprensa, em 1995 ele acreditava que a cobertura da mídia poderia benefi- ciá-lo. Na época, antes de sair a campo, Rohde disse a seu editor que, caso não desse notícias até o dia combinado, ele deveria publicar uma matéria sobre o seu desaparecimento no jornal do dia seguinte. O repórter pediu também que pressionassem a embaixada americana em Sa- rajevo para que essa, por sua vez, pressionasse os sérvios. Rohde acreditava que a visibilidade

poderia contribuir para que os sérvios se sentissem pressionados e o libertassem (KURTZ, 2009).

Em 2009, porém, esse argumento já não fazia mais sentido. Quase ninguém parecia acreditar que o Taliban fosse se sentir minimamente incomodado com a opinião pública. A família de Rohde e o NYT justificaram a omissão sob o argumento de que era preciso pensar primeiro na segurança dos reféns. David Carr, também jornalista do New York Times, em depoimento cedido em 6 de agosto de 2014, em São Paulo, afirmou que o mais importante no caso de Rohde foi o resultado: ele voltou em segurança. Ele defendeu que a decisão da família deve ser respeitada sempre que possível, que cada caso deve ser avaliado individualmente e que o tratamento para aqueles que não são jornalistas deve ser o mesmo. Abaixo, um trecho da entrevista:

Eu não era responsável por esse tipo de decisão, mas eu sabia que David ti- nha sido sequestrado e fui parte da conspiração pelo silêncio. Eu não sei qual é a coisa certa a se fazer, e se meus chefes, que são responsáveis por sua se- gurança, fazem silêncio, eu irei agir da mesma forma. Você poderia dizer que nosso trabalho é publicar notícias, mas ele voltou para casa são e salvo. Então, isso significa que o silêncio valeu a pena. Algumas vezes é preciso gritar para o mundo todo ouvir e, em outras, você precisa se calar e deixar as coisas se resolverem por si. Eu acho que essa decisão deve ser feita de acor- do com cada caso, baseada na decisão da família. Se eles não querem falar sobre isso, eu acho que devemos, na medida do possível, respeitar. Eu não ligo para as críticas. Ele voltou para casa em segurança (CARR, 2014).

Quando se iniciou o debate sobre o media blackout, alguns jornalistas que passaram pela experiência do sequestro deram suas impressões baseadas naquilo que viveram. Stephen Farrell, na época correspondente em Bagdá pelo NYT, saiu em auxílio de Bill Keller. Farrell

foi sequestrado12 por militantes sunitas no Iraque em 2004, quando era repórter do jornal in- glês The Times. O jornal não publicou nenhuma notícia sobre o seu sequestro.

Quando eu fui sequestrado no Iraque há alguns anos – por pouco tempo, gra- ças a Deus –, estabeleci certa ligação com os sequestradores. Eu me lembro de rezar várias vezes para que o jornal não publicasse nada porque a última coisa que eu precisava era que aquela frágil bolha fosse quebrada por algum político ou especialista jogando ao vento palavras como “terrorista”. O jornal de fato manteve silêncio. Eu também estava no hotel em Bagdá quando o correspondente do Guardian foi sequestrado há alguns anos. A notícia se es- palhou muito rápido e o escritório do jornal acabou inundado de telefone- mas, emails, solicitações de entrevistas, fofocas, pistas e falsas informações (Citado em BACHKO, 2009).

Um dos questionamentos feitos após a notícia da fuga foi até que ponto a justificativa da segurança é universalmente válida. Ao passo que a imprensa parece compactuar com a ideia de proteger repórteres, o mesmo não é necessariamente válido para outros profissionais sequestrados em áreas de risco.

Enquanto Rohde estava em cativeiro, John Soleck, um americano que trabalhava para a ONU, foi sequestrado no Paquistão por um grupo secular e nacionalista que queria a indepen- dência de uma província paquistanesa. Em A Rope and a Prayer, Kirsten Mulvihill afirma ter tido conhecimento do caso através do rádio e jornais, o que indica que rapidamente a impren- sa noticiou o rapto. É interessante ressaltar que, nesse caso, o envolvido não era jornalista ou membro de nenhum veículo de comunicação. Isso reforça o argumento de que as empresas têm uma atitude diferente quando a vítima é um dos seus, sendo mais fácil respeitar e apoiar o pedido da família por um blackout midiático.

12

Farrell foi sequestrado novamente em 2009, no Afeganistão, pelo Taliban, juntamente com seu intérprete, Sultan Munadi. Os dois saíram de Kabul em busca de informações sobre a morte de civis depois de um ataque das forças americanas,apesar de terem recebido diversos avisos a respei- to dos perigos na região. Foi feita uma operação para libertá-los alguns dias depois. Munadi e um soldado britânico morreram durante o resgate.

É preciso considerar, porém, os motivos que tornam mais fácil conter as notícias quando a vítima é um repórter. Quando jornalistas são alvo de ações terroristas, é normal que colegas de trabalho se compadeçam da situação e procurem ajudar da melhor forma possível. Por uma questão de empatia, as empresas jornalísticas parecem mais dispostas a contornar as regras se a vítima for um dos seus, até porque cai sobre elas o peso de serem responsáveis pela segu- rança de sua equipe. Outro ponto a ressaltar é que, nesses casos, o contato com a família cos- tuma ser imediato, de maneira que essa pode expressar desde o início seu desejo de não ver o caso na mídia.

Mesmo no meio jornalístico, repórteres free-lance costumam ter muito menos benefí- cios que aqueles com vínculo empregatício. Como estão por conta própria, geralmente não têm o apoio das grandes empresas de comunicação, seja para manter o caso fora da imprensa, seja para dar-lhe a devida atenção.

Vários analistas indicam que o sequestro de jornalistas freelance não são ex- postos ao mesmo nível de cuidado anterior à publicação que aqueles que são membros das equpes dos jornais. Alguns casos de freelancers são publicados mesmo quando aparentam ser similares àqueles que envolvem jornalistas contratados e que são mantidos em sigilo. Em outras situações, os casos com freelancers recebem pouca atenção da mídia mesmo quando a cobertura in- tensa poderia ajudá-los (SMYTH, 2013).

O blackout para o sequestro de jornalistas também se torna difícil de explicar quando se considera que diariamente a imprensa noticia casos que de alguma ou outra forma prejudi- cam a vida das pessoas. É difícil pensar que, em casos de sequestro dentro dos Estados Uni- dos, por exemplo, a imprensa americana se calaria por se preocupar com o impacto que a co- bertura poderia ter para a segurança da vítima.

O uso de blackouts para sequestros em que jornalistas são vítimas é descon- fortável porque organizações midiáticas rotineiramente publicam informa- ções que são constragedoras, prejudiciais e mesmo perigosas para indivíduos por uma variedade de motivos. Elas fazem isso porque sua principal missão é informar o público, e elas justificam toda a forma de invasão com base nessa premissa. Tomar a decisão de suprimir notícias sobre um colega inevi- tavelmente pode levantar questões sobre o uso de dois pesos e duas medidas. (SIMON, 2014)

O ponto mais crítico, porém, se refere a um direito violado pelo media blackout: o di- reito à informação. O artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma que “toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.

Segundo Traquina (2005a, p. 50), a relação entre jornalismo e democracia se torna in- trínseca a partir do momento em que é dado a esse a responsabilidade de cumprir um papel duplo: 1) deve vigiar o governo e proteger os cidadãos de seus abusos; 2) “deve fornecer aos cidadãos as informações necessárias para o desempenho de suas responsabilidades cívicas, tornando central o conceito de serviço público como parte da identidade jornalística”. Do jor- nalismo espera-se o cumprimento de certas funções sociais definidas para o bom funciona- mento da democracia. Assim, deve munir a sociedade das informações de que ela precisa e lhe confia para servir de intermediário.

Tal função não existe à toa. Entende-se que, para exercer o direito democrático ao voto e poder participar ativamente da esfera política, o cidadão precisa estar ciente do contexto que o cerca. O jornalismo, portanto, é um meio pelo qual o indivíduo vê atendido o seu direito à informação, que por sua vez serve como um meio para o exercício do direito político.

A principal função da imprensa é informar. À medida que esta opta por omitir infor- mações de interesse público do próprio público, deixa de cumprir a mais básica das premissas que estabelece o contrato social da imprensa com a sociedade. Ainda que o mito da objetivi- dade tenha sido derrubado no século passado, sociedade espera que a mídia a mantenha in- formada sobre os temas de relevância. Aceita-se que as notícias tragam algumas deturpações oriundas de visões e conceitos do repórter e da empresa jornalística, ou até mesmo que uma

ou outra informação seja omitida em razão do contexto, mas não é, sob a ótica do público e da democracia, aceitável que a imprensa possa simplesmente esconder num fato.

Assumir tal posição implica necessariamente em fazer com que o público questione o poder e a credibilidade dos veículos jornalísticos. Não foi um pequeno site de notícias que decidiu não noticiar o sequestro de Rohde, mas 40 grandes organizações midiáticas que o fi- zeram a pedido do maior jornal do mundo. Ainda que sejam pautadas na preservação da segu- rança e da vida de indivíduos, situações como essas geram dúvidas sobre o que mais a im- prensa pode estar escondendo, e sobre quais justificativas.

Documentos relacionados