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O cenário de enfrentamento entre Democracia e Constitucionalismo

CAPÍTULO II – A atuação do Princípio Contramajoritário na realização dos Direitos

2. Considerações sobre a Democracia à luz do Princípio Contramajoritário aplicado na

2.5. O cenário de enfrentamento entre Democracia e Constitucionalismo

As divergências acerca da relação entre Estado de Direito (direitos fundamentais) e democracia, ou entre constitucionalismo e democracia como por vezes denominada, independentemente do suposto consenso de complementariedade entre os dois princípios, ressurgem a cada novo confronto entre a liberdade individual e os interesses da maioria e constantemente ocupam o centro dos atuais debates filosóficos e jurídico-constitucionais422.

A problemática em discussão emerge repetidamente em decorrência do cenário contemporâneo, onde estão presentes: a rivalidade entre o liberalismo e o republicanismo;

417 Idem, ibidem.

418 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais e Justiça..., ob. cit., p. 24. 419 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos..., ob. cit., p. 22. 420

Idem, ibidem.

421 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais e Justiça..., ob. cit., p. 25. 422 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos..., ob. cit., p. 22.

discussões acerca da natureza da democracia; o ressurgimento da controvérsia sobre a justiça constitucional; o estímulo das questões políticas face à dramática relação entre os princípios do Estado de Direito democrático; as novas realidades originadas pelo fundamentalismo islâmico423.

Ocorre que, mesmo quando essa oposição é reconhecida, o potencial enfrentamento ao princípio democrático, frequentemente, ao invés de ser atribuído aos direitos fundamentais, é imputado à dificuldade contramajoritária, que demonstra as limitações estabelecidas pela Constituição rígida e pela jurisdição constitucional ao espaço de livre decisão da maioria política424.

Alexander Bickel, um dos Constitucionalistas mais influentes do século XX, formulou originariamente a expressão “the contermajoritarian difficulty” (dificuldade contramajoritária) para tratar da oposição, presumida em qualquer democracia, à prerrogativa concedida ao Judiciário, instituição não eleita democraticamente, de anular atos dos demais Poderes instituídos, estes sim, detentores de legitimidade democrática.

O autor de “The Least Dangerous Branch”, enunciando que “The root difficult is that judicial review is a countermajoritarian force in our system”425 (a revisão judicial é uma força contramajoritária. Tradução livre.), esclareceu o motivo pelo qual o controle judicial é antidemocrático426:

An abstraction obscuring the reality that when the Supreme Court declares unconstitutional a legislative act or the action of an elected executive, it thwarts the will of representatives of the actual people of the here and now; it exercises control, not in behalf of the prevailing majority, but against it. (Quando a Suprema Corte declara inconstitucional um ato legislativo ou uma ação do executivo eleito, distorce a verdadeira vontade dos atuais representantes do povo; exerce controle, não em favor daquela maioria, mas contra ela. Tradução livre.)

Todavia, em verdade, como esclarece o Professor Doutor Jorge Reis Novais, por trás dos debates acerca da natureza contramajoritária dessas instituições está o inseparável vínculo entre Constituição e direitos fundamentais. Tanto em sua procedência histórica, como em sua reconstituição investigativa, o fundamento do Estado constitucional está diretamente relacionado à salvaguarda dos direitos do homem e à sua garantia enquanto direitos

423 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais e Justiça..., ob. cit., p. 25-26. 424 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos..., ob. cit., p. 23. 425

BICKEL, Alexander. The Least Dangerous Branch: The Supreme Court at the Bar of Politics. 2ª ed. New Haven: Yale University Press, 1986, p. 16-17.

fundamentais e somente encontra sentido na qualidade de compromisso, assumido pelas instituições estatais, de preservação dos anteriores direitos naturais427.

Para o ilustre Constitucionalista, que parte de uma perspectiva jurídico-constitucional e faz uma abordagem centrada no sentido e alcance contramajoritário dos direitos fundamentais, o questionamento da relação entre Estado de Direito (direitos fundamentais) e democracia adequa-se melhor a um método construtivo de reconhecimento de uma tensão, baseado na especificação de cada conceito inerente aos atuais sistemas democráticos. Ressalta ser vantajoso perceber que a garantia dos direitos fundamentais (garantia individual) é a essência do conceito de Estado de Direito, ao passo que a regra da maioria é o cerne do conceito de democracia, o que implica, portanto, adoção de uma perspectiva de potencial conflito entre os dois princípios428.

Esclarece que a alternativa apresentada proporciona adequado tratamento jurídico aos casos difíceis em que a liberdade individual entra em confronto com a vontade da maioria, o que não significa que sempre haverá prevalência do interesse da liberdade individual429.

As presentes considerações teóricas são justificadas na medida em que o reconhecimento da mencionada tensão, além de identificar o ideal normativo de democracia e a plenitude sistemática de seus conceitos, possibilita o aperfeiçoamento dos mecanismos de controle de constitucionalidade das intervenções restritivas que atingem os direitos fundamentais em Estado de Direito430.

Em termos práticos, um conflito de direitos fundamentais manifesta-se em juízo provocado por uma situação na qual um individuo ou um grupo busca a proteção da ordem jurídica de Estado de Direito, uma vez que entende que seu direito individual está afetado ilegitimamente pelo Estado431.

Na demanda judicial não há discussão teórica sobre as virtudes da democracia ou do Estado de Direito, cabendo ao juiz limitar-se a examinar se, com a suposta afetação, os poderes estatais deixaram de cumprir algum dos deveres impostos pela Constituição, a maior norma de proteção do direito fundamental. Em suma, verificar-se-á a constitucionalidade da intervenção restritiva em causa432.

427 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais: Trunfos..., ob. cit., p. 23-24. 428 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais e Justiça..., ob. cit., p. 27-28. 429 Idem, p. 28.

430

Idem, ibidem. 431 Idem, p. 28-29. 432 Idem, p. 29.

O primeiro passo dessa análise judicial será, precisamente, identificar as razões que justificam a pretendida prevalência, o que evidenciará a contenda entre a intervenção estatal dos poderes democráticos e o direito fundamental do indivíduo afrontado433.

Caso acolha-se concepção baseada na ideia de integração entre Estado de Direito e democracia, o mencionado confronto de interesses será camuflado, lesando o controle do mérito e a consequente transparência da decisão judicial434.

O Professor Doutor Jorge Reis Novais demonstra, portanto, que a tese da integração construída pelo consagrado Constitucionalista Ronald Dworkin, apesar de convincente na ótica da filosofia política, não apresenta utilidade efetiva na perspectiva jurídica direcionada para o controle da constitucionalidade das restrições aos direitos fundamentais435.

Assim, conforme analisado, enquanto o princípio democrático está relacionado à premissa majoritária (exercício do poder político a partir da livre escolha da maioria do eleitorado) ou à premissa da parceria de Dworkin (regime no qual é concedido oportunidade a todos os cidadãos de se constituírem parceiros ativos e iguais de um autogoverno coletivo), o princípio de Estado de Direito apresenta enfoque, essencialmente, na garantia da autonomia individual436.

A Constituição de Estado de Direito, aprovada pela maioria, estabelece os requisitos de formação e funcionamento de um Governo democrático representativo, também fundado mediante livre escolha majoritária, mas concomitantemente vinculado aos direitos fundamentais constitucionais437.

Em sentido contrário, o ilustre Professor Doutor Jorge Miranda entende que Estado de Direito democrático representa a convergência de Estado de Direito e democracia. A despeito de as expressões “Estado de Direito democrático” e “Estado de Direito” terem surgido em momentos diversos e sob distintas influências, hoje, diante das imposições de respeito aos direitos das pessoas e de funcionalidade jurídica, uma democracia representativa e pluralista não pode deixar de ser um Estado de Direito. O poder político pertence ao povo e é exercido conforme a regra da maioria. Contudo, está subordinado, materialmente e formalmente, à Constituição e à fiscalização jurídica dos atos de poder438.

O Douto Constitucionalista português entende que há uma interação dos princípios substantivos da soberania do povo e dos direitos fundamenteis e uma propagação dos 433 Idem, ibidem. 434 Idem, ibidem. 435 Idem, ibidem. 436 Idem, p. 35-36. 437 Idem, p. 36.

princípios da adjetivos da constitucionalidade e da legalidade. Enquanto o princípio democrático, num caráter extremo de irrestrito domínio da maioria, poderia violar conteúdo essencial de direitos fundamentais, igualmente, o princípio da liberdade, em condições radicais, poderia recusar qualquer decisão jurídica em seus moldes. Alcança-se o equilíbrio por meio do esforço conjunto, constantemente atualizado, de princípios, valores e interesses, bem como de uma profunda conexão entre órgãos políticos e jurisdicionais439.

Portanto, de acordo com sua concepção, o constitucionalismo não retrata a concepção dos trunfos como maioria, mas a teoria segundo a qual a maioria deve ser limitada para a eficaz proteção dos direitos individuais. Assim como os direitos fundamentais não podem ser efetivamente garantidos e consolidados fora da democracia representativa, esta também não se concretiza, senão por meio do exercício dos direitos fundamentais440.

Na visão do Professor Doutor Jorge Miranda, Estado de Direito democrático, cujo primado é assegurado constitucionalmente, ainda significa um pouco mais. O Estado democrático é justificado e organizado pelo Direito que, simultaneamente, reflete e corresponde a uma sociedade que deseja pessoas livres e iguais. Admitindo a existência de contrastes e conflitos de classes, grupos, gerações, setores e regiões, entende que tais antagonismos estão inseridos numa visão dinâmica do processo social em que se almeja superação por meio da crescente informação e participação da população dentro de um rígido quadro constitucional e da estabilidade dos valores que geram caráter e razão de ser à comunidade política441.

3. A Concepção dos Direitos Fundamentais como Trunfos contra a Maioria aplicada na