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CAPÍTULO 1 – A IGREJA E SEUS BENS CULTURAIS NA CONTEMPORANEIDADE:

1.1 O Concílio Vaticano II e os espaços de culto

O Concílio Vaticano II é fruto do movimento de renovação da liturgia, nascido na Europa no fim do século XIX12. Segundo Juan Javier Flores e Burkhard Neunheuser, OSB, a última grande reforma litúrgica tinha se dado com o Concílio Ecumênico de Trento, realizado na Itália entre 1545 e 1563. Assim, era necessário repensar a situação da instituição e de seu culto frente às novas transformações e desafios impostos à Igreja moderna. Como mostra Flores, a reforma tridentina

propôs-se a uma tentativa de volta às fontes litúrgicas e à autêntica tradição litúrgica. A reforma litúrgica tridentina, embora muito importante e benéfica em certos aspectos, não conduziu a uma nova visão do culto através de uma teologia que excluísse a missa sacrifício e, ao mesmo tempo, patrocinasse um retorno à comunhão (...) Sem negar os muitos valores da reforma tridentina, depois dela e com

12 Como afirma Maria Paiano, “le radice del movimento liturgico affondano in quella cultura intransigente che, definitasi tra la Rivoluzione francese e la Restaurazione, era divenuta largamente egemone già nella seconda metà dell‟Ottocento. Tale cultura si caratterizzava per un‟analisi di tutta l‟età moderna – dal l‟umanesimo alla Rivoluzione francese, passando per le tappe intermedie della riforme protestante e del razionalismo illuminista – come un processo di rovinoso decaimento dello spirito cristiano, sempre più respinto ai margini della vita politica e sociale da un‟umanità che, cedendo all‟orologio, aveva preteso di dare un fondamento autonopmo a tutte le dimensioni della propria existeza, prescindendo dal necessario riferimento alla religione e in particola agli insegnamenti della chiesa cattolica” (PAIANO, 2000, pp. 6-7).

ela a liturgia continuou sendo o que era, um culto externo e um fato clerical, distante do povo, que, no entanto, continuava se refugiando em suas práticas devocionais, dentro e fora da celebração litúrgica, que comportará com o tempo uma superabundância de devoções (FLORES, 2006, pp. 60-61).

Deste modo, percebe-se que o Concílio Ecumênico de Trento quis reformar a liturgia com vistas a uma continuidade com a tradição, sempre buscando uma maior uniformidade nos ritos e rubricas. As maiores alterações teriam ocorrido somente no final quando, a quatro de dezembro de 1563, por ocasião da última sessão de trabalho, os padres conciliares pediram ao Papa que nomeasse uma comissão para rever o missal (finalizado em 1570) e o breviário (de 1568), com vistas a uma reforma.

Um aspecto importante é que a revisão do missal, ocorrida já no papado de Pio V (1504-1572), levou à constituição de um novo rito para a Igreja ocidental, propondo uma uniformização do culto litúrgico após Trento, ficando o mesmo conhecido como Missa Tridentina ou Missa de São Pio V. Esta forma de liturgia vigorou de 1570 a 1962, e sua forma implicou em inúmeras modificações nos espaços de culto e nos objetos neles utilizados. Ao mesmo tempo, em torno do rito oficial, por meio da piedade dos fiéis, foram sendo constituídos diversos ritos extraoficiais, ditos paralitúrgicos, para os quais, também, foi desenvolvido um aparato material extremamente complexo.

Foram justamente contra estas formas de devoções públicas que teólogos do século XVIII passaram a lutar, especialmente aquelas desenvolvidas pelos fiéis no momento das celebrações eucarísticas, como rezas, ladainhas e terços. Para Flores e Neunheuser, citando a obra de Mayer, os homens ilustrados teriam se oposto contra certas formas do culto público, como as devoções ao Sagrado Coração de Jesus e, depois, contra a prática do rosário, as confrarias, as procissões, as peregrinações (MEYER apud NEUNHEUSER, 2007, p. 193)13. Esta “limpeza” da religião, que afetaria consequentemente a liturgia, apontava para uma ideia mais racional, utilitária e com um filantropismo moralizante, tendo sempre em vista a crítica estabelecida a “falta de lógica” do barroco, suas deformações e subjetivismos14

. Em outras

13 Ainda segundo Mayer, pode-se dizer que com sua luta contra a exuberância do Barroco, transformada com o

tempo em puro vazio, o Iluminismo prestou grandes serviços também no campo da liturgia. Antes de tudo, fez da questão litúrgica um fato que afetava a Igreja; a liturgia transformou-se num movimento litúrgico popular. MAYER apud FLORES, 2006, p 67).

14 Este processo de mudanças pode ser explorado ao analisar as reformas propostas pelo Sínodo de Pistóia,

realizado entre 18 e 28 de setembro de 1786 e convocado por Scipione de‟Ricci (1741-1810), bispo de Pistóia e Prato. Com direção teológica do teólogo e jurista italiano Pietro Tamburini (1737-1827), professor da Universidade de Pavia, entre suas ponderações, buscou um retorno à Eucaristia como fonte central da Igreja, afastando todo e qualquer tipo de devoções populares (como a do Sagrado Coração), desencorajando o uso de relíquias e imagens e invalidando as indulgências. Além disso, afirmou a centralidade do altar. Entretanto, o Sínodo foi condenado pelo Papa Pio VI com a bula Auctorem fidei (Roma, 28 de agosto de 1794), por considerar heréticos os 15 primeiros decretos que se referiam à Igreja e à hierarquia.

palavras, havia uma intenção, desde meados do século XVIII, de encontrar uma lógica para a liturgia, “em contraste com uma falsa e exagerada estima do opus operatum, queria-se mostrar o verdadeiro valor do opus operantis de Cristo e da Igreja” (NEUNHEUSER, 2007, p. 193), visível nos primeiros tempos do cristianismo de matriz apostólica. O século XIX, por sua vez, traria um momento de retrocesso nestes debates, uma vez que, frente a movimentos de cunho material, se estabeleceria e se concretizaria um aumento de muitas “devoções”, propondo um culto onde a situação da liturgia, em relação aos períodos anteriores, recairia para um segundo plano e a piedade popular se intensificaria.

Mesmo assim, uma série de mudanças continuaria no seio da cristandade católica, tendo início com o movimento de renovação monástica. Este foi iniciado na França e se espalhou pela Bélgica e, particularmente, pela Alemanha, tendo em Dom Próspero Louis Pascal Guéranger15 (1805-1875), abade de Solesmes entre os anos de 1831 e 1875, um ponto de partida imediato daquilo que se constituiria como o movimento litúrgico, cujas principais linhas estavam pautadas na teologia, na espiritualidade e na pastoral.

O fim do século XIX e toda a primeira metade do século XX foram terrenos profícuos deste movimento de exigência de um segmento litúrgico particular, buscando uma relação cada vez mais estreita e orgânica entre a espiritualidade e o apostolado, sempre em vias de um processo de recristianização da sociedade. Assim, é válido apontar que, para Maria Paiano, todo o processo de renovação deve ser visto e lido por meio da chave e do embate da Igreja frente aos processos de secularização da sociedade. Estas efervescências em torno das renovações litúrgicas foram sentidas pela Santa Sé, podendo-se apontar como um primeiro reflexo o motu próprio do Papa Pio X, Tra le sollecitudini, sobre a música sacra, de 22 de novembro de 1903, o qual insistia em uma restauração da liturgia.

Os debates em torno de uma arte e arquitetura que pudesse fazer transparecer esta liturgia clara16 tomaram também espaço, compondo um quadro de disputas entre o velho e o novo estilo. Isto pode ser refletido por meio dos vários documentos eclesiais, desde Tra le

sollecitini, o primeiro impulsionador, à carta encíclica sobre a sagrada liturgia do Papa Pio X,

15 A liturgia, segundo D. Guéranger, é considerada como a tarefa principal dos monges e o meio mais eficaz para

a sua santificação. Ela era essencialmente o culto público que a Igreja oferece a Deus, o exercício social da virtude da religião. Segundo Zeller, “foi de particular providência de Deus que o grande reformador da vida beneditina [e da restauração litúrgica] saiu do clero secular, familiarizado como tal com a piedade cristã entre o clero e o povo da sua terra. D. Guéranger conhecia por experiência o individualismo e sentimentalismo que separava os adeptos da liturgia galicana e da piedade sóbria e objetiva da Igreja Romana. Ele via os perigos do separatismo litúrgico”. Para mais, ver ZELLER, 1942.

16 “Na verdade, sendo Nosso vivíssimo desejo que o verdadeiro espírito cristão refloresça em tudo e se mantenha

em todos os fiéis, importa garantir, antes do mais, a santidade e a dignidade do templo, onde os fiéis se juntam precisamente para atingir esse espírito, na sua primeira e insubstituível fonte, que é a participação activa nos sacrossantos mistérios e na oração pública e solene da Igreja” (PIO X, 1903).

Mediator Dei17 que, datada de 20 de novembro de 1947, foi considerada a Magna Carta da

renovação litúrgica, que teria captado “o resultado positivo do Movimento Litúrgico a respeito da compreensão teológica da Sagrada Liturgia; por outro, saiu em defesa das devoções populares contra o que se chamada panliturgismo atribuído ao Movimento Litúrgico” (BECKHÄUSER, 2012, p. 8). Como aponta Neuenheuser,

O movimento litúrgico, a esse ponto floresce e em crescente expansão, passado pela experiência da guerra, exprime sempre mais claramente o desejo de reformas voltadas a tornar a celebração litúrgica mais clara, mais autêntica, mais significativa. Agora já não se fala apenas de educação para a liturgia, mas de reforma da própria liturgia. Trata-se abertamente disso nas revistas, nos convênios, e com base nessas reflexões se avançam desiderata à Santa Sé (NEUNHEUSER, 2007, p. 213). Contudo, tais desejos de uma reforma oficial, já evidentes desde o Concílio Vaticano I (1869- 1870), foram atendidos somente cerca de 60 anos após o início do movimento litúrgico, por meio do Concílio Ecumênico Vaticano II, tido como o consolidador da doutrina tridentina e de sua adaptação aos novos horizontes enfrentados pela hierarquia eclesiástica. Vale ressaltar que, desde os anos 1950, a Sagrada Congregação dos Ritos já havia iniciado, a pedido do Papa Pio XII, o processo de reforma da liturgia, porém os resultados foram lentos e pouco ousados (BECKHÄUSER, 2012, p. 9).

Refletindo as discussões em torno da renovação litúrgica18, durante o Concílio, aberto em 11 de outubro de 1962, formou-se uma comissão especial responsável por analisar o tema, chamada De sacra liturgia. A importância do assunto era tamanha e premente que a reforma da liturgia foi a primeira questão a ser discutida entre os padres conciliares, o que ocorreu de forma exaustiva. Entre os aspectos principais, a comissão buscava renovar e fazer progredir a liturgia, com base nas questões do movimento litúrgico, preocupando-se com a redescoberta

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“Certamente conheceis, veneráveis irmãos, que, no fim do século passado e nos princípios do presente, houve singular fervor de estudos litúrgicos; já por louvável iniciativa de alguns particulares, já sobretudo pela zelosa e assídua diligência de vários mosteiros da ínclita ordem beneditina; assim que não somente em muitas regiões da Europa, mas ainda nas terras de além-mar, se desenvolveu a esse respeito uma louvável e útil emulação, cujas benéficas conseqüências foram visíveis, quer no campo das disciplinas sagradas, onde os ritos litúrgicos da Igreja oriental e ocidental foram mais ampla e profundamente estudados e conhecidos, quer na vida espiritual e íntima de muitos cristãos. As augustas cerimônias do sacrifício do altar foram mais conhecidas, compreendidas e estimadas; a participação aos sacramentos maior e mais frequente; as orações litúrgicas mais suavemente saboreadas e o culto eucarístico tido, como verdadeiramente o é, por centro e fonte da verdadeira piedade cristã. Além disso, pôs-se em mais clara evidência o fato de que todos os fiéis constituem um só e compacto corpo de que é Cristo a cabeça, com o conseqüente dever para o povo cristão de participar, segundo a própria condição, dos ritos litúrgicos” (PIO X, 1947)

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Quando da convocação do Concílio por João XXIII, em 1959, o tema da Liturgia não era o mais importante, visto que a finalidade de se “convocar um Concílio Ecumênico, em que hão de participar os sagrados pastores do orbe católico para tratarem dos graves problemas da religião, era a de conseguir o incremento da fé católica e a saudável renovação dos costumes no povo cristão e para a disciplina eclesiástica se adaptar melhor às necessidades dos nossos tempos” (JOÃO XXIII, 1959). Como colocam alguns autores, a intenção de João XXIII não era a de promover alterações tão significativas como as que ocorreram, sobretudo no que tangia à liturgia da Igreja, algo que mudou frente às diversas propostas de debates.

dos sacramentos da iniciação e buscando modificar as práticas pastorais a favor de uma “volta às fontes, ou a volta à Fonte” (BARROS, 1994, p. 66), modelo para uma Igreja que se perdia frente a uma contemporaneidade considerada desregrada. Essa nova espiritualidade da renovação litúrgica se refletiu em todos os campos da religião, e foi consolidada com a promulgação da Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia, em 4 de dezembro de 1963 (exatamente 400 anos depois da sessão final de Trento, de 1563), cujos trabalhos foram iniciados em 23 de outubro de 1962 e debatidos da 3ª a 18ª Congregação Geral.

De um modo geral, a Sacrosanctum Concilium, ao refletir sobre temas como a eucaristia, os sacramentos, o ano litúrgico, as alfaias, a música e as artes sacras, buscava apresentar a liturgia como presença sacramental da obra redentora na Igreja, tendo centralidade na manifestação de Cristo, o Mistério Pascal, e seu valor na assembleia cristã. Conforme o próprio texto, a liturgia é entendida como

(...) o exercício da função sacerdotal de Cristo. Ela simboliza através de sinais sensíveis e realiza em modo próprio a cada um a santificação dos homens; nela o Corpo Místico de Jesus Cristo, Cabeça e membros, presta a Deus o culto público integral (SC 7).

Por isso, toda celebração litúrgica, como obra de Cristo sacerdote e do seu corpo, que é a Igreja, é uma ação sagrada por excelência, cuja eficácia nenhuma outra ação da Igreja iguala, sob o mesmo título e grau (SC 7).

Neste mesmo sentido, a Constituição abriu caminho para a ideia da participação plena e ativa dos fiéis, tanto pela possibilidade do uso das línguas vernaculares, quanto pela atuação na própria liturgia19. De fato, anteriormente, era nítida a separação entre liturgia e vida, havendo grande quantidade de rubricismos, passividade e pouca participação dos fiéis, sobretudo pelo uso do latim em um texto único universal. Segundo os padres conciliares, a liturgia estaria divorciada do catolicismo dito popular, com um culto exagerado aos santos e pouca referência à Páscoa como centro da vida. Elemento caro ao movimento litúrgico, estas considerações passariam a atuar em todas as instâncias, sobretudo nas artes, sendo que a figura do Cristo voltaria a ser vista como central e o Altar, símbolo da sua presença no espaço do culto, cada vez mais valorizado.

Às artes e às alfaias litúrgicas foi dedicado o capítulo sete da Constituição. Em seu início, fica latente uma discussão que envolve a diferença entre a arte religiosa e “o seu mais

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“É desejo ardente da santa Igreja que todos os fiéis cheguem àquela plena, consciente e ativa participação na celebração litúrgica que a própria natureza da Liturgia exige e à qual, por força do batismo, o povo cristão, “raça escolhida, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido” (1 Ped. 2,9; cf. 2, 4-5), tem direito e obrigação. Na reforma e incremento da sagrada Liturgia cumpre dar especial atenção a esta plena e ativa participação dos fiéis, porque ela é a primeira e necessária fonte, da qual os fiéis haurem o espírito genuinamente cristão. Esta é a razão que deve levar os pastores de almas a procurarem-na com o máximo empenho, através da devida formação”. (SC 14).

alto cimo” (SC 122), a arte sacra. Para recuperar esta discussão, pode-se visitar a obra do filósofo e escritor suíço-alemão Titus Burckhardt (1908-1984), Arte Sagrada no Oriente e no

Ocidente, publicada em 1958. Nela, o autor propõe uma distinção básica:

Os historiadores da arte, que aplicam o termo “arte sagrada” para designar toda e qualquer obra de tema religioso, esquecem-se de que a arte é essencialmente forma. Para que uma obra de arte possa ser propriamente qualificada de “sagrada” não basta que seus temas derivem de uma verdade espiritual. É necessário, também, que sua linguagem formal testemunhe e manifeste essa origem (BURCKHARDT, 2004, p. 17).

Burckhardt afirma, contudo, que a arte “ligada ao culto” só havia conseguido florescer em alguns momentos da história, não sendo “o caso da arte religiosa como a que encontramos, por exemplo, no Renascimento ou no Período Barroco, que absolutamente não se distingue, enquanto estilo, da arte fundamentalmente profana da mesma época” (BURCKHARDT, 2004, p. 17). Seria neste ponto que se firmaria uma diferença entre a arte tida como sacra daquela apenas religiosa, já que

emprestar temas da religião, de modo totalmente exterior e, por assim dizer, literário, não é suficiente para outorgar-lhe um caráter sagrado, tampouco os sentimentos devocionais de que se impregna e, nem mesmo a nobreza da alma que nela possa estar sendo retratada (BURCKHARDT, 2004, p. 17).

Assim, para se criar uma arte simbólica que refletisse uma visão espiritual, dita sacra por excelência, seria necessário recorrer a formas, modelos e regras específicos capazes de veicular uma determinada tradição. A arte sagrada, antes de tudo, não deveria evocar sentimentos nem transmitir impressões, já que é um símbolo e, como tal, necessita apenas de formas simples, corretas e dignas. Além disso, este tipo de manifestação nunca perderia o vigor, pois seria dirigida ao Eterno, ao atemporal.

Esta ideia de Burckhardt pode ser constatada em diversos teólogos e artistas sacros da segunda metade do século XX, bem como na própria Sacrosanctum Concilium, quando se cria uma distinção hierárquica entre a arte religiosa e a arte sacra, esta entendida como superior à primeira. Assim, apesar da validade, os objetos produzidos para o culto devocional dos fieis, tais como a imaginária sacra, estariam abaixo daqueles de uso nas celebrações litúrgicas, como paramentos e alfaias, por exemplo. Tal distinção, pode-se afirmar, aponta para o estopim de toda a segregação realizada entre determinados itens presentes nos antigos espaços de culto, legados por uma dinâmica tridentina. Muitos daqueles entendidos sob o viés devocional e sentimentalista serão gradativamente removidos sob o discurso e bandeira da nova liturgia.

Na sequência, é afirmado na Constituição conciliar o valor dado pela Igreja às artes e aos artistas ao longo de sua história, sempre com o objetivo de prover o culto dos melhores,

mais dignos, decorosos, honrosos e belos objetos “sinais e símbolos do sobrenatural” (SC 122). Aos bispos ficava o encargo de zelar pelos templos sob suas jurisdições e, especialmente, pelas obras localizadas em seus interiores. Quando ocorresse qualquer atividade que interferisse nestes acervos, os epíscopos deveriam sempre ouvir o parecer de peritos ou de uma Comissão de Arte Sacra, a ser implantada no seio das dioceses. A proposta da criação de comissões diocesanas ou interdiocesanas para assuntos como Liturgia, Música e Arte Sacra, formadas por pessoas especializadas (entre o clero e os leigos), é apontada pelo texto da Constituição, prevendo-se que elas “trabalhem em conjunto, e não raramente será oportuno que se unam numa só Comissão” (SC 46), como incremento da ação pastoral da Igreja. Estava em jogo, neste entendimento, a ideia de compatibilizar a arte, a cultura e as doutrinas cristãs.

As novas construções precisariam também ser realizadas com o decoro necessário, devendo ser funcionais, tanto para o bom desenvolvimento das celebrações, como para a participação ativa da comunidade. Nelas, era necessário ter o máximo de cuidado com a “digna e funcional construção das igrejas, à forma e disposição dos altares, à nobreza, disposição e segurança do tabernáculo eucarístico, à conveniência e honra do batistério, bem como à determinação razoável das sagradas imagens, da decoração e ornamentação” (SC 128). Tendo em vista a reforma da liturgia e os templos, o texto era claro: “o que parecer convir menos à reforma da Liturgia, seja emendado ou abolido; o que, porém, a favorecer, seja mantido ou introduzido” (SC 128). Como apontado por Beckhäuser, os pontos levantados no número 128 foram depois regulamentados no Capítulo V da Instrução Geral sobre o Missal Romano, acerca da disposição das igrejas para a celebração eucarística (BECKHÄUSER, 2012, p. 153).

Sobre as imagens, no parágrafo 125, os padres reafirmam sua importância para a veneração dos fiéis. Porém, que “sejam no entanto em número comedido e na ordem devida, para que não causem admiração ao povo cristão nem favoreçam devoções menos corretas” (SC 125). Esta determinação, em linhas gerais, segue a mesma ideia expressa na sessão XXV do Concílio Ecumênico de Trento, intitulada De invocatione, veneratione, et Reliquiis,

Sanctorum, et sacris imaginibus, realizada entre os dias 3 e 4 de dezembro de 1563, 400 anos

antes. Apesar das similitudes conceituais, contudo, ao Vaticano II credita-se um movimento contrário daquele de Trento, isto é, em vez de, na prática, a imagem ser usada como artifício