• Nenhum resultado encontrado

Os museus eclesiásticos e seus alcances conceituais: possibilidades e definições

CAPÍTULO 2 – O PAPEL DOS MUSEUS NA PRESERVAÇÃO DOS BENS ECLESIÁSTICOS:

2.2 Os museus eclesiásticos e seus alcances conceituais: possibilidades e definições

Apesar da importância dos incontáveis conjuntos de bens culturais da Igreja dispersos em instituições tanto da própria instituição, quanto de matriz laica (públicas ou particulares), são poucos os trabalhos que buscam debater as especificidades acerca dos processos de formação de coleções, curadoria e produção de conhecimento no âmbito dos museus eclesiásticos. Entendendo-os como uma tipologia museológica específica, torna-se necessário refletir sobre qual o alcance conceitual e quais os objetivos destas instituições frente à apresentação de um acervo que transita entre a dimensão histórica, tecnológica e social, por um lado, e cultual e ritualística de outro. Vale apontar que apesar da Carta sobre a Função Pastoral dos Museus Eclesiásticos, de 2001, abordar diversos aspectos, ainda faltam outros debates e reflexões que possam nortear uma ação curatorial articulada e definir a missão destes organismos de base eclesial, porém com essencial função na preservação das memórias e identidades de amplo alcance territorial.

Um primeiro ponto seria compreender qual o alcance dos conceitos que envolvem o entendimento e a definição destes espaços museais que tem em comum a gestão de acervos

que guardam, em múltiplas instâncias, a memória do catolicismo. Entre as principais terminologias empregadas, podem ser citados os Museus de Arte Sacra, os Museus Religiosos e os Museus Eclesiásticos. Por mais que entre eles existam algumas similaridades, as identificações não apontam para equivalências no âmbito de suas missões, como demonstrou em seus trabalhos o pesquisador italiano e presbítero da Diocese de Milão, monsenhor Giancarlo Santi.

Para o autor, sob a ideia de Museu Religioso estaria uma multiplicidade de instituições, qualquer que fosse a sua propriedade (comunidades religiosas, entidades públicas e privadas), abertas à salvaguarda de variadas manifestações de culto e cujas coleções são compostas, sobretudo, por obras que assumem um dado caráter religioso. Neste segmento, seriam possíveis tesouros de basílicas e catedrais, museus diocesanos, paroquiais, conventuais, locais e regionais e casas-museus (como de santos, papas ou outras figuras importantes da Igreja). Já os Museus Eclesiásticos fazem “referência apenas aos museus pertencentes a entidades nas quais se expressa a Igreja Católica, seja qual for o tipo de coleção que preservam” (SANTI, 2012a, p. 9, tradução nossa)90, entre elas arte sacra e religiosa, zoologia e etnografia, nascidos, muitas vezes, “graças ao interesse e à vontade das comunidades paroquiais que desejam salvaguardar e transmitir as tradições e objetos ligados à vida, ao trabalho e à história do seu território, incluindo a vida religiosa” (SANTI, 2012a, p. 13, tradução nossa)91. Podem também ser voltados a uma determinada temática ou tipologia de objetos, como o caso dos espaços museais que recolhem apenas ex-votos, presépios, imaginária sacra, entre outros.

Dando prosseguimento a esta diferenciação de nomenclaturas, é possível aproximar-se dos estudos desenvolvidos pelo pesquisador português André das Neves Afonso. Como Santi, Afonso disserta favoravelmente a entender que as instituições que recolhem e expõem bens culturais religiosos corresponderiam a uma tipologia museológica específica. Contudo, o autor verifica que, ao longo do tempo, estes espaços acabaram por apenas replicar em suas propostas de gestão as experiências de museus de arte, tal como ocorrido em Portugal, assertiva que poderia, inclusive, ser expandida para o contexto brasileiro. Assim, estariam aqui os Museus de Arte Sacra, instituições que buscam inserir a produção de bens culturais eclesiásticos sob um recorte específico da história da arte. Para tanto, neste recorte, passa-se a analisar os itens a partir das chaves e das ferramentas metodológicas fornecidas pela área,

90 “riferimento ai soli musei di proprietà di enti nei quali si esprime la Chiesa cattolica, qualunque sia il tipo di

collezione che essi conservano”.

91 “grazie all‟interesse e alla volontà di comunità parrocchiali desiderose di salvaguardare e tramandare le

criando categoriais pautadas, muitas vezes, no discurso estilístico e na análise das técnicas e materiais.

Tendo isso em vista, Afonso aponta em direção a uma diferenciação entre as identificações terminológicas de “Museu de Arte Sacra” e de “Museu Eclesiástico”, os últimos geridos exclusivamente pela própria hierarquia da Igreja e os primeiros mais voltados para a tipologia das coleções. Como disserta, as indefinições conceituais teriam

(...) contribuído, no nosso entendimento, para o não desenvolvimento sustentado de um modelo museológico teórico e prático próprio que apenas pontualmente tem sido positivamente quebrado. [...] O museu eclesiástico, enquanto instituição de tutela eclesiástica, surge, assim, como um espaço onde se prolonga a ação da Igreja no mundo concreto, inserindo-se no contexto da sua missão. Assume, assim, uma clara função pastoral, associada à cultural, mas é, sobretudo, esta função pastoral que o diferencia das demais tipologias de museus e sobre a qual gravitam as tradicionais funções museológicas (AFONSO, 2013, pp. 87-88).

Os museus eclesiásticos, enquanto organismos tuteladas por uma entidade da Igreja, deveriam concorrer para a missão principal da instituição, isto é, a evangelização (AFONSO, 2015, p. 27). Nesta linha, seria possível entender que o objetivo não seria unicamente a salvaguarda do patrimônio apenas pela valorização da memória e da cultura, mas também o incremento dos projetos pastorais. Assim,

quando a Igreja interpela e chama os museus que tutela ou que pretende criar a intervir no contexto da sua missão, a referida função ou missão pastoral não pode ser entendida e limitada à circunstãncia de ser apenas mais uma função entre as demais funções museológicas, mas sim como uma macrofunção que, além de as agregar e fazer gravitar sobre si, lhes define o seu sentido, objetivos e metas (AFONSO, 2015, p. 29).

Vale apontar que estas variações terminológicas são, justamente, reflexos de certa política de aquisição dos acervos preservados nas instituições. Por mais que no último quartel do século XX os documentos oficiais tenham passado a usar a ideia de bens culturais da Igreja, ainda há a prevalência de um discurso que entende que os esforços de preservação devem ser voltados exclusivamente para aqueles itens considerados de relevância histórica e artística, compostos por materiais nobres e preciosos, utilizados por grandes personalidades ou confeccionados por artistas de renome regional ou nacional. Esta mesma proposta pode ser lançada quando o patrimônio cultural da Igreja é lido sob a chave da Arte Sacra. À esta corresponde apenas uma fatia dos bens culturais eclesiásticos, isto é, aqueles objetos que estão diretamente vinculados ao culto litúrgico, o que deixa de lado incontáveis outros itens que ajudariam a também recontar a história de dada porção da Igreja e seu território.

Tendo isto em vista, defende-se o uso do termo bens culturais eclesiásticos (ou da Igreja) ao invés de arte sacra, procurando valorizar uma ideia alargada de que este patrimônio pertence e é de responsabilidade da comunidade católica, mas sua fruição, ao mesmo tempo,

deve ser generalizada. A quantidade de bens gerados no seio da Igreja é extremamente grande, distribuídos em todo o território dos países, limitados não somente ao espaço dos pequenos oragos ou das grandes catedrais e ao serviço litúrgico ali realizado, mas também fruto das relações e das sociabilidades dos fiéis em ambientes extra religiosos, por exemplo. Contudo, a dimensão sacra não pode ser creditada a todos, uma vez que se entende o termo “sacro” como complemento apenas de objetos de uso nos ritos e cerimônias litúrgicas – excluindo, portanto, uma infinidade de outras coleções. Ao mesmo tempo, não seria possível substituí-la pela ideia de “religioso”, já que esta também não é capaz de absorver os itens que escapam à proposta anterior.

O pressuposto maior, portanto, é entender que a história da Igreja não é recontada somente com seus objetos de culto, especialmente aqueles comumente considerados de maior valor e relevância, mas também por aqueles de uso das comunidades de fieis, gerados ou ressignificados a partir do aspecto religioso. Um trabalho completo de preservação do patrimônio cultural eclesiástico deve ser voltado à conservação de tudo quanto

se refere à história e vida da Igreja e da comunidade, mesmo o que é considerado de menor importância. (...) Eles permitem que esses materiais sejam protegidos, preservados e utilizados como documentação histórico-artística da experiência eclesial em suas várias manifestações (SANTI, 2012a, p. 113, tradução nossa)92. Um caso pode ilustrar esta situação. No ano de 1885, foi criado, no município paulista de Rio Claro, o Núcleo Colonial de Cascalho. Sua fundação se deu quando o governo provincial adquiriu a fazenda de José Ferraz de Campos (1782-1869), o Barão de Cascalho, que foi dividida em pequenas propriedades com o objetivo de atrair imigrantes para o Brasil, sendo grande a leva de italianos e portugueses. O fim do Núcleo ocorreu em 1893, tornando- se Cascalho uma povoação vinculada aos poderes municipais e, atualmente, configura-se como um distrito da cidade de Cordeirópolis, SP. Contudo, o importante deste processo é que não é possível se falar do Bairro de Cascalho sem abordar a forte religiosidade local.

Para os colonos imigrantes de base católica era essencial cumprir as obrigações religiosas das missas e sacramentos, bem como as paraliturgias, sendo também em torno da igreja que se davam as sociabilidades. A primeira capela foi a da casa do Barão de Cascalho, onde se rendia culto a uma imagem de Nossa Senhora da Assunção, santa de devoção do Barão e que se tornou padroeira da povoação. Em 1893, por sua vez, conseguiram autorização para a ereção de uma igreja, inaugurada em 1898. Com o aumento da população, em 1916, o Padre Luiz Stefanello (1878-1964), pároco de Cascalho de 1911 a 1953, iniciou a construção

92

“si riferisce alla storia e alla vita della Chiesa e della comunità, anche ciò che è ritenuto di minore importanza. (...) Consentono quindi che tali materiali siano tutelati, conservati e fruiti come documentazione storico-artistica del vissuto ecclesiale nelle sue diverse manifestazioni”.

de um novo templo, finalizado em 1936. Para a grandiosa construção, padre Stefanello trouxe da Itália uma imagem em madeira policromada de Nossa Senhora da Assunção, entronizada em 12 de agosto de 1914, ano de criação da Paróquia, tendo aos pés as cores das bandeiras do Brasil e da Itália, para lembrar a origem das famílias e ser o consolo para tantos imigrantes que lá deixaram suas mães.

Ainda hoje, o distrito é movido pela ação da religião católica, materializada nas missas, rezas, terços, novenas, festas e outras tradições de matriz italiana que se mesclam na vida paroquial. Para o pleno desenvolvimento das atividades, foram (e ainda são) produzidos objetos e ornamentos ao mesmo tempo em que outros instrumentos passaram a ser adaptados para os complexos serviços religiosos. Estes itens, portanto, são parte da cultura material daquela referida comunidade católica e integram um esforço de dar visibilidade a um passado que é reconstruído a cada dia graças a processos subjetivos de patrimonialização.

A imagem de Nossa Senhora da Assunção, por exemplo, considerada pela comunidade como seu bem mais precioso, foi levada em uma carroça no ano de 1914, conservada ainda hoje nas proximidades da igreja matriz. Neste segmento, o que difere a imagem do carroção que a trouxe? Em uma leitura baseada nos pressupostos da arte sacra, apenas a efígie que representa a Virgem Maria assunta aos céus deveria ser preservada, ao passo que o tosco carro deveria permanecer na obscuridade – ou apenas preservado como memória dos ofícios urbanos e rurais, mas não vinculado ao catolicismo. Contudo, ele próprio foi uma peça importante na história da comunidade, no momento em que alguém se propôs cedê-lo para buscar a imagem italiana que havia chegado à Estação da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, no então Distrito de Paz de Cordeiro, conduzida em grande procissão.

Figura 13 - Carroça utilizada para o transporte da imagem de Nossa Senhora da Assunção. Madeira e metal. Distrito de Cascalho, Cordeirópolis, SP, final do século XIX/início do século XX.

A carroça encontra-se nos jardins fronteiros à Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção, sendo sempre ornamentada nos festejos da padroeira realizados no mês de agosto.

Esta análise, portanto, mostra a importância de se acercar destes elementos a partir de um termo cuja abrangência e desdobramentos conceituais consigam abarcar estas especificidades. Para tanto, nos variados processos de escolha ou recolha dos itens que poderão ou não receber a chancela de objetos representativos da memória da Igreja, defende- se a ideia de bens culturais eclesiásticos devido a sua amplitude, aspecto imprescindível para que as instituições museológicas da Igreja consigam cumprir seu papel de forma plena. Tendo isso em vista, não seria possível estabelecer quaisquer balizas cronológicas (antigo/velho- novo/recente) para o entendimento destes artefatos, já que ao ter seu uso vinculado às dinâmicas religiosas da comunidade, automaticamente impregna-se das marcas temporais e de sentidos múltiplos.

Outro aspecto decorrente da formação de coleções nestes locais é que os museus eclesiásticos também são permeados de discursos essencialmente políticos. De um modo geral, tanto a recolha de peças (seja por doações, compras, legados, permutas ou custódia), a constituição de coleções, as mostras e as arquiteturas das instituições que os abrigam desempenham um fator essencial na constituição narrativa destes espaços museológicos, reivindicando para si o papel de alicerçar um determinado discurso, o qual sempre é permeado pelas dinâmicas do poderio simbólico de seus detentores. Conforme apontou Myrian Sepúlveda dos Santos ao comentar sobre os acervos museológicos e sua relação com o tempo, “sob o pretexto de resolver problemas no futuro, a ação do presente ganha ascendência sobre o passado e o apropria segundo seus interesses” (SANTOS, 2006, p. 19).

Um ponto essencial nesta discussão é entender também o papel que as instituições- memória católicas assumiram na contemporaneidade, em especial nos últimos 50 anos. Tais espaços, especialmente os museus eclesiásticos, surgiram, por um lado, alavancados pelo Concílio Vaticano II, mas também por um movimento acelerado de busca pela memória e pelo ato de lembrar93, pedra de toque para muitos países e comunidades. Por mais que houvesse (e, com as devidas ponderações, ainda há) uma ânsia por guardar tudo frente ao descaso e à alienação, esta também era programada a partir de questões: que imagem/história/identidade da Igreja se quer passar? Que discurso se pretende legitimar: aquele das grandes imagens douradas e policromadas e dos acervos de ourivesaria e prataria ou dos itens simples, como mal-acabados carros de boi de madeira? Qual a memória que se

93 Baseado em Andreas Huyssen, Manoel Luiz Salgado Guimarães apontou que se vive, atualmente, uma

verdadeira “sedução pela memória, um tempo em que nossas sociedades vivem uma verdadeira “inflação de memória”, acompanhada por uma monumentalização das formas de relação com o passado”. Para mais, GUIMARÃES, 2007, p 14.

pretende articular nos museus, frente a “aceleração” da História, tal qual colocou o historiador francês Pierre Nora (2009)? E é possível ir além: qual a postura dos museus em relação aos dilemas impostos pelas tramas entretecidas entre os conceitos de história, memória (individual e coletiva) e identidades?

Neste mesmo segmento, além da formação das coleções, um elemento importante era (e ainda é) a compreensão do papel desempenhado pelas exposições, sejam aquelas de cunho permanente ou as temporárias. Tal qual qualquer outro processo museológico, o projeto destas são sempre marcados temporal, política e estrategicamente. Os museus e as exposições neles projetadas configuraram-se como locais de disputa pela manutenção de uma determinada forma de interpretar e ressignificar o passado eclesial, na maior parte das vezes, carregando os ânimos, sempre políticos de determinadas personagens e, acima de tudo, por se pautar na ideia da evangelização, uma abordagem confessional e catequética.

Assim, o modo de projetar uma exposição e um museu torna-se peça chave de uma cadeia que parte dos curadores e outros profissionais diretamente relacionados às instituições museológicas, chegando até a alta cúpula hierárquica e também a chefes de Estado que buscam nestes mecanismos culturais meios para perpetuarem seus feitos e memórias. Como apontou Manoel Luiz Salgado Guimarães, os museus trabalham com diversos regimes de temporalidade (HARTOG, 2014) e em direção a um resgate do passado a partir daquilo que importaria ao presente. Assim, com base em uma cultura visual que se desenvolve por meio de uma estratégia política e social, os bens culturais deslocam-se para novas categorias interpretativas, ou seja, estes “perdem o sentido para o qual foram criados e adquirem um novo, conferindo pela qualidade de histórico, estabelecendo, por este procedimento, uma relação entre o visível do tempo presente e o invisível do passado” (GUIMARÃES, 2007, p 15), sendo que “uma política do passado é, necessariamente, uma demanda da política do presente” (GUIMARÃES, 2007, p 6).

Neste mesmo caminho, essa nova roupagem que os objetos passam a adquirir no ambiente museal, para Ana Lúcia Siaines de Castro, deveria ser lida por meio de uma ordem sacralizante que o envolve. Esta se configura como uma “conjuntura museológica, reverenciadora, velada e sedutora na condição de expressão simbólica de poder, funciona como espelho narcísico de uma camada social, por sua inalcançabilidade acatada como determinação legitimadora, inquestionável” (CASTRO, 2009, p. 25). Assim, o ambiente dos museus tende a modificar em larga escala o próprio entendimento do item que tem seu estatuto temporal alterado, resultando em um processo de anacronização. Tais “adições provocadas pela sacralização levam à ocultação dos vários contextos que envolvem a

aparência silenciosa da instituição museológica, garantia de sua prática temporalizante e de seu caráter memorialístico” (CASTRO, 2009, p. 88).

Um aspecto nesta discussão, contudo, seria como entender os bens culturais e sua preservação frente às novas demandas e crises do tempo presente. Neste embate vale amparar- se nas chaves conceituais trazidas pelo historiador francês François Hartog, nomeadamente em sua obra Regimes de Historicidade (2014). Em linhas gerais, a questão a ser levantada seria: como a simultaneidade dos tempos históricos, criando regimes de historicidade, tem influenciado a leitura do que é patrimônio e, portanto, do que deve ser preservado para futuras gerações? Neste embate e articulações entre o passado, o presente e o futuro, o patrimônio cultural tornar-se-ia um frutuoso aliado, convertendo-se em uma alternativa à superação da crise do tempo em que se vive (HARTOG, 2014, p. 132).

Contudo, a grande questão estaria no excesso de patrimonialização que se vive no tempo presente, momento “ávido e ansioso de historicização, como se estivesse forçado a projetar-se à frente de si mesmo para olhar-se imediatamente como já passado, esquecido” (HARTOG, 2014, p. 259). Nesta linha, continua o autor: “O instante, o efêmero e o imediato capturam-no, e só a amnésia pode ser seu destino. Esses são os principais traços desse presente multiforme e multívoco: um presente monstro. É ao mesmo tempo tudo (só há presente) e quase nada (a tirania do imediado)” (HARTOG, 2014, p. 259). Tendo em vista a crise do presente, o presentismo, e a incerteza do futuro, apontaria em direção à ideia de que tudo deveria ser salvaguardado, uma espécie de patrimonialização galopante (HARTOG, 2006, p. 265), já que

Ao “dever” da memória, com a sua recente tradução pública, o remorso, se teria acrescentado alguma coisa como a “ardente obrigação” do patrimônio, com suas exigências de conservação, de reabilitação e de comemoração” (HARTOG, 2006, p. 266).

Estes bens se constituiriam, nesta chave, como marcas indeléveis da relação da sociedade com o tempo, definindo uma consciência de si. Contudo, a grande questão é que, se tudo pode ser lembrado, tudo por ser patrimônio, gerando certa inflação e dando ao presente uma extensão inédita. Uma possível saída dada por Hartog, mas que continua a implicar certo grau de subjetivismo nas escolhas empreendidas, é que se deve entender que o “patrimônio é constituído de testemunhos, grandes ou pequenos. Como relação a todo testemunho, nossa responsabilidade é de saber reconhecê-los em sua autenticidade, mas além disso nossa responsabilidade se encontra engajada em relação às gerações futuras” (HARTOG, 2006, p. 269).

O dilema, portanto, estaria em: como organizar um museu eclesiástico à luz das diretrizes da Igreja e dos embates propostos pela inflação da memória e do lembrar? Um