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3. PARA COMPREENDER A OFICINA: CAMINHOS E ESCOLHAS

3.2. O conceito de sentido proposto por Vigotski

Considerando o objetivo de investigar os sentidos que docentes atribuem ao seu trabalho na escola de tempo integral, compreendendo-os a partir de seu devir histórico como instância de uma totalidade social, convém agora abordar o segundo fundamento teórico-metodológico desta pesquisa, o conceito de sentido proposto por Vigotski37 segundo a teoria histórico-cultural. As origens desse conceito passam pelos esforços empreendidos por Vigotski para compreender o pensamento humano em sua relação dialética com a totalidade na qual se constitui. Com base no materialismo histórico-dialético, Vigotski entende que as relações das pessoas com o mundo se dão de forma mediada, de modo que a compreensão das funções psicológicas superiores deve ser buscada não no isolamento deste ou daquele aspecto, mas na relação deles com o meio social no qual se constituem (VIGOTSKI, 2007).

Em sua obra, Vigotski tenta compreender os atributos psicológicos da humanidade através do estudo de sua origem e de seu desenvolvimento. Ele

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Há uma grande variedade de grafias para o sobrenome do psicólogo russo; é possível encontrar variações como Vygotsky, Vygotski, Vigotsky ou Vigotski, sendo esta última a possibilidade escolhida para a elaboração deste trabalho em virtude da maior incidência de seu uso por autoras e autores do Brasil. Contudo, são preservadas as grafias presentes nas citações.

pressupõe que o surgimento do trabalho, com base no qual se desenvolvem tanto a atividade coletiva e, consequentemente, as relações sociais, quanto o uso de instrumentos, é o processo elementar que distingue as pessoas dos animais. Baseado nesse pressuposto, Vigotski entende que o uso de instrumentos como componente intermediário que amplia as possibilidades de transformação da natureza é semelhante ao uso de signos. Para ele,

[...] a invenção e o uso de signos como meios auxiliares para solucionar um problema psicológico (lembrar, comparar coisas, relatar, escolher, etc.) é análoga ao uso de instrumentos, só que agora no campo psicológico. O signo age como instrumento da atividade psicológica de maneira análoga ao papel de um instrumento no trabalho (VIGOTSKI, 2007, p. 52).

Vigotski pontua que, a princípio, tanto do ponto de vista do desenvolvimento histórico da humanidade quanto do desenvolvimento pessoal, os signos são utilizados como marcadores externos que auxiliam as pessoas em tarefas que exigem atenção ou memória. Conforme esse uso mediador dos signos se torna mais complexo, os seres humanos passam a prescindir de marcadores externos em favor de signos internos, ou, em outras palavras, de representações mentais que substituam objetos do mundo real, as quais se convertem na principal forma de mediação das pessoas com o mundo em que vivem. Em concomitância com esse processo de internalização, desenvolvem-se sistemas simbólicos que organizam as representações complexa e articuladamente; isso equivale a dizer que os signos não são empregados pelas pessoas de forma individual, antes são comuns aos membros de um determinado grupo social no qual se constituem. Esse duplo processo de mudança qualitativa no uso mediador dos signos (lembrando, da internalização e da constituição de sistemas simbólicos socialmente compartilhados) evidencia a centralidade das representações mentais na relação das pessoas com o mundo em que vivem (VIGOTSKI, 2007; OLIVEIRA, 1997).

A explicação acima construída é suficiente, posto que sucinta, para considerar que os sistemas de representação da realidade como mediadores das relações das pessoas consigo próprias e com o mundo são, para Vigotski, construções sociais, históricas, dialéticas e contraditórias. O grupo social, no qual as pessoas se constituem por meio do trabalho, oferece os modos de perceber e sistematizar a realidade; esses sistemas simbólicos, longe de serem imutáveis, estão em “constante movimento de recriação e reinterpretação de informações,

conceitos e significados” (OLIVEIRA, ibidem, p. 38). As pessoas, relacionando-se com essa realidade carregada de significados e com outras pessoas, vivenciam experiências que lhes possibilitam a construção de seus próprios sistemas de signos igualmente mediadores, na forma de sínteses entre os universos da subjetividade e da cultura. Nesse sentido, Vigotski, na sua tentativa de construir uma psicologia que supera o reducionismo das concepções empiristas ou idealistas e reflete a totalidade das pessoas,

[...] percebe os sujeitos como históricos, datados, concretos, marcados por uma cultura como criadores de ideias e consciência que, ao produzirem e reproduzirem a realidade social, são ao mesmo tempo produzidos e reproduzidos por ela (FREITAS, 2002, p. 22).

Seguindo essa linha de raciocínio, Vigotski postula que o processo de complexificação do uso mediador de signos propicia tanto o emprego prioritário de signos internos quanto a organização de sistemas simbólicos socialmente compartilhados, dentre os quais se destaca a linguagem. No âmbito da linguagem socialmente compartilhada, Vigotski enfatiza a significação das palavras em seus contextos de utilização e em suas condições de interação: para ele, enquanto o significado diz respeito a uma generalização mais estável da palavra, refletindo a realidade em um processo distinto daquele relacionado com as sensações e a percepção (GÓES e CRUZ, 2006), o sentido

[...] é a soma de todos os eventos psicológicos que a palavra desperta em nossa consciência. É um todo complexo, fluido e dinâmico, que tem várias zonas de estabilidade desigual [...]. Uma palavra adquire o seu sentido no contexto em que surge; em contextos diferentes, altera o seu sentido (VIGOTSKI, 2005, p. 181).

Para ele, o significado dicionarizado de uma palavra “é apenas uma das zonas do sentido, a mais estável e precisa”, ou ainda “uma pedra no edifício do sentido, não passa de uma potencialidade que se realiza de formas diversas na fala” (loc. cit.); já os sentidos podem ser entendidos como acontecimentos semânticos específicos, constituídos nas e pelas relações sociais. Góes e Cruz (2006) sugerem uma relação dialética de forças entre significado e sentido, que não deve ser desprezada na reflexão sobre processos humanos. Partindo dessa perspectiva, o conceito vigotskiano de sentido, dentro da abordagem histórico-cultural para a pesquisa qualitativa no campo da educação, implica na consideração das palavras dentro de seu contexto concreto de ocorrência: é no cotidiano da escola que o

emaranhado de signos se coloca em embate, ensejando o surgimento de processos singulares imbricados na trama do todo; dito de outra forma, os dados, coletados na forma de falas e observações, não têm sentido em si mesmos, mas na relação que estabelecem com outros sentidos que circulam pela composição social, de onde se depreende que, mais importante que ater-se sobre os conteúdos da fala em si, é atentar para as condições sob as quais os sentidos se constituem, buscando nessa relação o movimento dialético que dá forma à totalidade.