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4. RESULTADOS E DISCUSSÕES

4.3. Sentidos atribuídos pelas professoras ao trabalho na Oficina

4.3.4. Síntese dos sentidos das professoras

Vigotski destaca que os sentidos são “um todo complexo, fluido e dinâmico, que tem várias zonas de estabilidade desigual” (2005, p. 181); são episódios semânticos imanentes às relações sociais, pois nelas e por elas se constituem. Isto posto, não causa espanto que os sentidos atribuídos por cada uma das professoras ao trabalho docente na Oficina, ainda que tenham pontos em comum, guardem traços que os tornam únicos.

Ao longo desta dissertação, discorreu-se sobre a existência de diferentes concepções de educação integral, seja ao longo da história (COELHO, 2005; 2009; CAVALIERE, 2010), seja em coexistência na atualidade (CAVALIERE, 2007). A busca pelos sentidos de Beatriz, Maria e Michelle sobre o trabalho docente na Oficina confirmou o postulado dessa multiplicidade de visões. Beatriz vê a educação integral como o desenvolvimento de habilidades e atitudes necessárias para a vida em sociedade, como autonomia, criticidade, liderança, etc., transcendendo os conteúdos da matriz curricular regular sem, contudo, renunciar a eles; assim, Beatriz tenta organizar sua prática na Oficina de modo a conciliar todos esses elementos. A questão da aquisição de habilidades e atitudes para o exercício da cidadania também está presente na fala de Maria: ela entende a educação integral como “formação plena do indivíduo e preparo para a vida em sociedade (MARIA), e vê o Projeto Oficina do Saber como possibilidade para o

desenvolvimento da inteligência emocional e de atitudes que se relacionem harmonicamente com o código disciplinar da escola; contudo, Maria atribui mais ênfase ao aprendizado dos conteúdos do que Beatriz, entendendo como função da Oficina a oferta de um apoio ao período regular por meio de atividades diferenciadas. Por sua vez, Michelle atribui expressamente à educação integral sentido de apoio pedagógico ao período regular por meio de jogos, brincadeiras e atividades diferenciadas; ela argumenta a favor do trabalho docente na Oficina pautado sobre os mesmos conteúdos curriculares que estejam sendo desenvolvidos no período regular, de modo a contribuir para o aprendizado das crianças. Em consequência, Michelle enfatizou no relato sobre seu trabalho a memorização dos fatos básicos da multiplicação e a correção ortográfica.

Apesar das diferenças, percebe-se um fator comum às três professoras: o sentido de educação integral como forma de preparação das crianças para a vida em sociedade, seja pela ênfase no aprendizado de competências cognitivas (cálculo, leitura e escrita), seja pela aquisição de competências afetivo- emocionais (liderança, autonomia, inteligência emocional, etc.). Conforme já exposto nesta dissertação, esse direcionamento é adotado tanto pelas tendências pedagógicas tradicionais quanto por aquelas ligadas ao movimento da escola nova (SAVIANI, 1999; 2013; SILVA, 1995); isso pode explicar a coexistência entre as professoras da valorização do ensino do saber clássico, característica própria das tendências tradicionais, e a atenção voltada às necessidades e desejos das crianças, bem como ao desenvolvimento por parte delas de competências ligadas à convivência pacífica em sociedade, traços que se aproximam da pedagogia nova.

Ao longo deste trabalho, foi defendida a ideia de que o capitalismo neoliberal se apropria da educação escolar, convertendo-a em possibilidade de lucro (BALL e YOUDELL, 2008) e de integração de seus egressos ao mercado (GENTILI, 2002); uma das estratégias para tal integração é justamente a veiculação de habilidades e competências (KUENZER, 2002), valorizada de diversos modos pelas três professoras, e cujo objetivo é “dotar os indivíduos de comportamentos flexíveis que lhes permitam ajustar-se às condições de uma sociedade em que as próprias necessidades de sobrevivência não estão garantidas” (SAVIANI, 2013, p. 437).

Ora, as professoras entrevistadas não manifestam em seus depoimentos reflexões sobre as reais possibilidades de que as crianças da Oficina gozem efetivamente dos benefícios da integração à sociedade neoliberal. Essa desconsideração quanto aos fatores infra e superestruturais que constituem a sociedade pode ser entendida como um dos efeitos da alienação capitalista do trabalho, na qual as pessoas se vêem destituídas não somente da natureza e dos meios de produção, mas de si próprias na condição de membros de uma

coletividade (MÉSZÁROS, 2006). Assim, percebe-se que, dentro do contexto de

interesses opostos de classe que é peculiar à sociedade capitalista e que influencia a educação escolar (SAVIANI, 1999), a visão de educação integral e a organização do trabalho na Oficina das professoras entrevistadas terminam por articular-se aos interesses da classe dominante e por contribuir para a continuidade de sua hegemonia.

Outro ponto congruente nos depoimentos das professoras é o sentido de que o trabalho docente na Oficina deve servir como apoio pedagógico ao período regular. Michelle e Maria veem esse direcionamento como o ideal para a Oficina; Beatriz critica o sentido do apoio, mas reconhece que a veiculação de conteúdos da matriz curricular regular é uma realidade:

Por mais que a gente tente fazer de uma outra forma, de uma outra forma mais lúdica, e tal, a gente acaba dando prioridade sim para os conteúdos. Eu tento não usar caderno, lápis, borracha e quadro. Tanto é que o meu caderno, eu fui ver, tinha poucas páginas escritas; mais folhas [impressas e coladas] ou até jogos. Por que eu fico pensando mesmo no bem estar das crianças, por que eu sei que é cansativo (BEATRIZ).

Mencione-se mais uma vez a concepção de educação integral aqui defendida: formação humana plena que abrange aspectos intelectuais, físicos e tecnológicos (MARX e ENGELS, 2011), tomando o trabalho como princípio educativo (PISTRAK, 2003) e direcionando-se para a construção histórica de uma sociedade que viabilize a reintegração das dimensões fragmentadas pela divisão social do trabalho (TONET, 2006). Partindo dessa concepção, entende-se que o sentido de apoio pedagógico atribuído à Oficina, ao reforçar os aspectos intelectuais da formação das crianças em detrimento de todos os demais, termina por reforçar saberes teóricos desligados da práxis; fortalecendo as bases do modo de produção capitalista neoliberal, inviabiliza a concretização de uma educação integral.

Destaca-se igualmente na fala das três docentes a menção aos desafios que se apresentam para o desenvolvimento de seus trabalhos na Oficina. A escassez material, a ausência de suporte pedagógico e administrativo por parte da equipe gestora da escola, ou mesmo por parte da Prefeitura, desvalorização junto à comunidade e inclusive junto ao grupo docente do período regular, exigências em trabalhar com os eixos estruturantes que estão além de suas formações, são os principais fatores reportados por elas. Entende-se que esses problemas, historicamente observados desde meados de 2013 no âmbito do Projeto Oficina do Saber, são resultantes dos processos de privatização endógena e exógena da educação (BALL e YOUDELL, 2008), constituindo-se em estratégias deliberadas de enfraquecimento da classe docente em sua coletividade e em suas possibilidades de cooperação, bem como de desqualificação da educação pública gratuita gerenciada pelo Estado, em prol da abertura para a oferta de educação em massa por parte do setor privado (FREITAS, 2012).

Por fim, evidenciou-se o sentimento de desamparo proveniente do enfrentamento diário contra tais atribulações, desde o sentimento de Maria de “não ser professora” até o desabafo de Michelle:

[...] Quando eu vim para cá, a minha ideia era que a gente ia trabalhar, ia produzir, ia render, ia fazer, ia acontecer... só que caiu tudo por terra. O que, ao meu ver, por que, eu, como...eu já trabalho há muitos anos... começa do básico, do básico, que a gente não tem apoio em nada. Em nada, em nada, em nada. Nada. Já vem da Prefeitura, sem nada, entendeu? Então, eu me sinto até impotente em falar para você de uma coisa porque, eu estou saindo decepcionada da Oficina (MICHELLE). Ao dizer que estava “saindo”, Michelle estava referindo-se ao processo de remoção dos professores da rede municipal de Sorocaba, que viria a ocorrer no mês de dezembro de 2017. De fato ela, assim como Maria e Beatriz, participaram do processo; as três professoras, por opção, deixaram a E. M. “Michel Foucault” para assumir aulas em escolas que não fazem parte do Projeto Oficina do Saber. Diante dos sorrisos estampados no rosto das três professoras no dia seguinte ao processo de remoção, Shakespeare talvez diria: a despedida é uma dor tão doce64; a

64Tradução minha para o famoso verso “Parting is such sweet sorrow”, contida no Ato 2, cena 2 da

professora Maria talvez repetisse a colocação feita durante sua entrevista: “Consegui ir para o período regular. Virei professora”.