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4. RESULTADOS E DISCUSSÕES

4.3. Sentidos atribuídos pelas professoras ao trabalho na Oficina

4.3.1. Sentidos da professora Beatriz

Ao ser questionada sobre como vê o Projeto Oficina do Saber, a professora Beatriz assim se coloca:

Eu acho o projeto em si muito importante, tanto para a comunidade, para a escola, para a criança, para a formação da criança, porque ela acaba vivenciando muito mais conteúdo do que uma criança que vai só no período regular. [...] Ou pelo menos deveria... porque a gente tem vários eixos para trabalhar, cada um com seu critério. Mas, assim... o meu olhar para a Oficina, para a criança que tá ali, eu também me preocupo muito... que a gente acaba tendo que pensar na criança que está ali, que está se alimentando ou não, se ela dormiu bem aquela noite ou não, e ela está cansada, se ela teve algum problema em casa... Porque eu vejo assim: a gente acaba tendo o lado mais do cuidar do que um professor... do que se eu fosse só do regular, tivesse aquele momento com conteúdo apenas (BEATRIZ).

Em outro momento da entrevista, Beatriz comentou que já havia trabalhado antes da implementação do caderno n° 3 no Projeto Oficina do Saber, em outra escola, como professora contratada de educação física; naquela condição, ela não somente vivenciou um momento diferente do projeto, como também participou de ocasiões de formação continuada, tendo neles acesso a um conceito de formação integral da criança que se relaciona com a visão acima expressada:

Assim, como eu já trabalhei em outros tempos com a educação física, a gente tinha um... a gente teve uma preparação maior no outro formato da Oficina, que eu achava até mais interessante, que cada professor trabalhava por área, era mais produtivo... [...] Eu trabalhava com educação física. E na época tinha o EEE, que era o Estudo, Esporte e Educação. A gente pensava muito no que a gente queria, o que deveria ser. Então assim, algumas coisas eu lembro de lá, que era a formação integral da criança... [...] Pra mim... é... desenvolver autonomia, criticidade, liderança, colocar a criança para ela ter contato para conseguir resolver os problemas que ela tem dentro daquela realidade que ela tá vivendo. Conhecer a comunidade, saber que é importante ela usufruir do que tem, reivindicar... então, eles tinham um pensamento bem legal, assim, nessa parte de integração. Então, isso ficou um pouco gravado para mim. Só que é assim: quando você vem para uma outra realidade, né, que você tem que trabalhar os conteúdos que tá ali, e o espaço físico já era outro, eu trabalhava em uma escola, e aí tinha quadra, tinha um espaço maior, tinha quadra, tinha um tempo maior... tinha contato com os professores, e tudo mais. Então, assim, eu acho que esse formato da escola foi o mais complicado de trabalhar com esses aspectos (BEATRIZ).

Note-se que na primeira fala Beatriz atribui importância à Oficina pela oportunidade que esta confere à criança de vivenciar “muito mais conteúdo”; na segunda passagem a professora evidencia, por meio do resgate do seu conceito de formação integral da criança, a quais conteúdos se refere: não aos da matriz curricular do período regular, os quais ela “tem que trabalhar”, mas a aspectos atitudinais, quais sejam autonomia, criticidade, liderança, capacidade de resolução de problemas e tomada de decisão. Em outro trecho da entrevista, ao falar sobre as contribuições da Oficina para o aprendizado das crianças, Beatriz reitera a importância da aquisição dos conteúdos atitudinais para o processo de formação integral da criança:

Eu acho que a criança que convive maior tempo com outras crianças diferentes dela ela vai ter que ter estratégias de... por exemplo: num jogo, eu quero jogar isso, mas meu amigo não quer: ela vai ter que se organizar, ela vai ter que criar uma maneira de ela resolver aquele conflito. Então, eu acho assim, acaba desenvolvendo um pouco da autonomia da criança, eu acho, e também, assim, ela vai ficar, como eu posso dizer, ela vai tentar entender o outro também. [...] Por que eu acho assim: ela vai ter muito mais conflitos pra resolver... por que, daí, eles acabam tendo que resolver algumas questões, também, a gente não leva tudo pronto. “Ó, a gente tem esse problema. Então, como que a gente faz pra resolver?” Eu acho isso importante... acho que a criança acaba despertando mais para isso (BEATRIZ).

Beatriz coloca que a Oficina “deveria” contribuir para a aquisição desses conteúdos atitudinais, o que não se efetiva, em que pese o mencionado aprendizado de competências atitudinais decorrente da inevitável exposição das crianças a conflitos de convivência na Oficina. O primeiro dos empecilhos citado é

justamente a responsabilidade por parte dela de trabalhar os eixos estruturantes; o modelo anterior do POS, com oficineiros desenvolvendo as atividades complementares, e no qual ela própria era uma oficineira trabalhando com atividades do âmbito da educação física, era “mais produtivo”. Parece verossímil afirmar que esse enunciado toca na questão das limitações de formação inicial e continuada para o trabalho com os eixos, convertendo-se o emprego dos conteúdos da matriz curricular do período regular em estratégia para esquivar-se dessa e de outras dificuldades; é o que se depreende deste excerto da entrevista, quando Beatriz é indagada se a Oficina contribui para a formação integral da criança na perspectiva por ela defendida:

Não. Começa muito pelo espaço físico. Eu acho. Não querendo só... mas eu fiquei refletindo sobre isso: nossa, eu, que fiz educação física, mesmo... fiquei pensando... o quê que eu fiz? [...] Você começa a pensar muito nos conteúdos, né, ai você acaba meio que... não que eu tenha uma obrigação aqui, né? Mas você acaba indo por um perfil e acaba deixando as outras coisas de lado (BEATRIZ).

Em continuidade à entrevista, Beatriz assim elenca dois dos aspectos dos quais necessita prescindir por priorizar os conteúdos da matriz curricular regular: Eu acho que... o brincar, eu acho muito importante, o jogo eu acho muito importante, e daí você acaba indo para o lado mais fácil, mesmo. Porque, se eu for, por exemplo, pensar no mais amplo: onde que eu tenho um espaço maior para fazer minhas atividades?57 (BEATRIZ).

Além das limitações de formação docente e das restrições estruturais da Oficina, Beatriz aponta como dificuldade a falta de um acompanhamento mais próximo da equipe gestora da E. M. “Michel Foucault”, conforme o trecho abaixo:

Por conta de a gente estar sem gestor esse ano [2017]. [...] Tem várias coisas que acontecem que às vezes a gente fica “pra quem que eu corro? Pra quem que... quem vai me ajudar?” ... E a gente acaba tomando decisões... às vezes porque, sem ter um olhar de uma pessoa te direcionando, digamos assim... Eu acho que isso ajudaria muito. [...] A gente tem uma inspetora [...], que tem que se virar em quantas, ali? Por que ela tem que fazer a travessia, ela tem que ligar para os pais quando o aluno passa mal, e várias outras coisas (BEATRIZ).

Outras dificuldades trazidas pela professora para a execução de seu trabalho e para a efetivação de sua visão de educação integral são decorrentes da falta de contato com as famílias das crianças.

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A gente não tem acesso com os pais, eu tenho essa dificuldade, às vezes... De não ter, de não conhecer os pais, os pais não me conhecerem, eu acho que seria importante também... não só você, né? [...] E a falta de valorização também... eu acho... dos pais... [...] Eu já ouvi, eu já cheguei a ouvir eles falarem: “ah, mas não é pra...” tipo, dá mais importância pro momento do regular, porque eles acham que a criança vai mais pra brincar no período da manhã... não que não seja.... que não haja brincadeira, mas também a gente tem uma preocupação que ela aprenda alguma coisa com o conteúdo (BEATRIZ).

Em meio às limitações formativas, à ausência da equipe gestora e à falta de contato com as famílias, Beatriz parece buscar um equilíbrio entre os conteúdos da matriz curricular regular e sua visão de educação integral, conforme se depreende do trecho abaixo:

A gente tem que ter muita criatividade. A gente não tem material também pra trabalhar com os alunos [...] e muita coisa a gente acaba imprimindo de casa, trazendo de casa, porque também... ficar dependendo muito, a gente acaba não fazendo nada. [...] Mas, assim, muita coisa eu estou utilizando que deu certo no ano passado [2016], que era o mesmo ano, 3º ano, apesar que algumas coisas... Mathema58, que eu trouxe, assim, e dei de cara pra eles, achei que eles fossem responder, e aí eu vi que não estavam ainda... não tinham nível, porque o ano passado eu peguei eles no meio do ano, e esses eu peguei no começo, então eles ainda estão aprendendo aquilo, então eu tive que voltar um pouco e replanejar. Mas, assim... muita coisa eu utilizo que deu certo o ano passado com eles, que eu tenho ainda um pouco de atividades, lá, e outras coisas eu pesquiso na internet. Porque a gente também não pode ficar dando muita coisa, por que eu penso que tem o outro período, que tem mais conteúdo, que tem mais tempo... porque na verdade eles chegam e vão tomar café. Aí, depois dou um tempinho para eles irem ao banheiro e tomar água. Converso um pouquinho. O tempo de atividade é muito curto [...] Uma hora e pouco, uma hora e quinze, uma hora e vinte. E assim: eles sempre querem sobrar um tempinho para eles brincarem: “Ah, vamos terminar rápido, que dai dá tempo da gente ir lá fora”, e... acabou. Fazendo alguma coisinha assim, sempre para dar uma distraidinha neles (BEATRIZ).

Percebe-se no depoimento de Beatriz que a organização de seu trabalho tenta contemplar conteúdos da matriz curricular regular sem descuidar-se da atenção às necessidades e anseios das crianças, como alimentação, higiene, a conversa, a escuta e as brincadeiras; aliás, esses últimos aspectos são suficientemente importantes para que, em favor deles, Beatriz chegue a limitar o período destinado à “atividade”. Essa tentativa de concordância entre todos esses traços que constituem o trabalho docente na Oficina se deixa vislumbrar ainda no momento em que Beatriz especifica algumas das atividades por ela preparadas:

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Material didático para o ensino de matemática criado por Kátia Stocco Smole, Maria Ignez Diniz e Patrícia Cândido.

[...] Fruição estética eu fiz um pouquinho de. brincadeiras, dinâmicas, [...] fiz um pouco de pintura, também a gente fez... Geralmente quando, por exemplo: conto, eu deixo para fazer a ilustração no outro dia, porque não dá tempo, eu acabo não fazendo nesse dia; mais dinâmicas de jogos, mesmo, e brincadeiras. [...] A partir de agora eu vou começar a fazer o autorretrato, que é pra trabalhar mais essa habilidade, que eu não tenho muito, que é a habilidade artística... [...] Daí eu pensei na simetria, que a gente estava falando... [...] Meio ambiente a gente fez a paisagem, paisagem transformada. Trabalhei alimentação, que eles têm uma alimentação muito errada, muito ruim, tem criança que só come arroz. [...] Assim, aluna que também come demais, você vê que está com começo de obesidade... [...] E eu achei que deu uma melhorada...[...] E a gente sempre tenta ver, por exemplo, a data de alguma coisa, por exemplo, dia da árvore, do índio, pra trabalhar mais ou menos o tema (BEATRIZ).

Note-se a alusão a conteúdos da matriz curricular regular (gênero textual “conto”, eixo de simetria, transformação da paisagem pela ação humana) cuja veiculação havia sido determinada na reunião de planejamento bimestral, nas condições expostas quando da análise da organização do trabalho docente na Oficina. Não obstante, ela cria um espaço dentro do eixo “educação ambiental” para abordar o tema da alimentação, fato que certamente está relacionado com sua visão de educação integral, com a proximidade que tem das crianças nos momentos de alimentação e com um olhar suficientemente atento para perceber essas necessidades. Mesmo a vinculação do trabalho a datas comemorativas serve como modo de transcender a veiculação de conteúdos da matriz curricular regular: na semana em que utilizou como tema o dia da árvore, por exemplo, Beatriz apresentou às crianças o baobá, árvore símbolo do continente africano; desde então, ela conseguiu abordar ao longo do ano aspectos da fauna africana, de religiões de matriz africana e da cultura afro-brasileira.

Em suma, é possível afirmar que Beatriz concebe a educação integral como o desenvolvimento de habilidades e atitudes necessárias para a vida em sociedade - autonomia, criticidade, liderança, capacidade de resolução de problemas, tomada de decisão, hábitos saudáveis de alimentação, respeito às diferenças, valorização de diferentes culturas – sem prescindir da aquisição dos conteúdos escolares clássicos, tampouco restringindo-se a eles. Para a professora, tal educação não chega a efetivar-se na Oficina devido à forma através do qual está institucionalmente organizada e aos problemas disso decorrentes, fato que não a impede de organizar sua prática de modo a contemplar tanto os conteúdos que lhe são assignados quanto aqueles aspectos que ela entende como necessários.