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2 Referencial teórico

TÁTICAS/COMPORTAMENTOS DESCRIÇÃO/DEFINIÇÃO

2.4 O construto do Eu estendido

Como visto na seção anterior, a abordagem de que os bens são importantes elementos na construção do Eu não surgiu com Belk (1988), no entanto, foi a partir de sua publicação que o construto do Eu estendido ganhou força e foi amplamente aceito nos estudos do comportamento do consumidor. Na verdade, este conceito parte da premissa de que não é possível compreender comportamento do consumidor sem compreender o significado das posses para o consumidor.

Na tentativa de aprofundar, então, a análise dessa relação entre consumidor e suas posses, o construto do Eu estendido evidencia alguns pontos de vista sobre o autoconceito que são diferentes das teorias anteriores, e que são bastante defendidos por Belk (1988): (a) um objeto pode fazer parte da identidade de uma pessoa sem necessariamente ligar seu autoconceito às características atribuídas ao objeto; (b) objetos sem marca podem contribuir muito mais para o senso de Eu; (c) mais do que um simples produto ou marca, um conjunto de objetos de consumo pode se mostrar apto a representar os diversos e possíveis aspectos da congruência do Eu total.

A teoria de Belk inicialmente traz uma nova perspectiva do que se pode considerar como bens. O que antes se observava como coisas materiais, foi acrescido por pessoas, lugares, experiências, e até mesmo partes orgânicas do corpo. Aqui já pode-se começar a visualizar as viagens turísticas, embora intangíveis, como parte integrante de um Eu.

Partindo então do entendimento que os objetos (materiais e imateriais) são parte do próprio sujeito, Belk (1988) chega à conclusão que existe uma contribuição do objeto para a

formação da identidade do sujeito. Na verdade, ele vai além, para Belk (1988, p. 141) “nós podemos impor nossas identidades em nossas posses e as posses podem impor suas identidades em nós”. Já vemos aqui uma diferença entre a teoria de Belk e a de Goffman (2013). Para Belk, as posses representam mais que simples objetos de uma cena, elas compõem o próprio indivíduo, como numa relação “mágica” (PONCHIO; STREHLAU, 2011, p. 301). Já para Goffman, as posses são apenas ferramentas que auxiliarão na criação de uma imagem a ser apresentada a outras pessoas.

Mas concordando que possuir pode prover informações identitárias do sujeito, Ponchio e Strehlau (2011, p.301) afirmam que:

Quanto maior a relevância do objeto ao self estendido, maior será a preocupação do indivíduo com o mesmo, refletido no zelo, na manutenção e em uma maior procura por produtos ou itens relacionados a ele. Similarmente, o descarte também é mais frequente quando a identificação com o self estendido não é mais adequada.

Assim, quando Eu e posses praticamente se tornam um só, Ellis (1985, p. 115-117 apud BELK, 1988, p. 141) apresenta uma lista de evidências de possessividade humana:

(1) corpo, (2) espaço pessoal, (3) alimentos, (4) território, (5) domicílio, (6) parceiros sexuais, (7) prole, (8) amigos, (9) ferramentas, e (10) objetos de aparência estética, de diversão, animais e lembranças.

É justamente na categoria das lembranças que podem ser inseridas as viagens, pois elas geram momentos e experiências únicos que significarão lembranças para o indivíduo.

As lembranças de viagens podem ser tangíveis como souvenires e fotografias impressas, e intangíveis como uma história engraçada vivida, pessoas interessantes que se conheceu ou um espetáculo cultural assistido no lugar visitado. Elas proporcionam às pessoas o sentimento de

nostalgia, pois estão ligadas a significados bons do passado. E Belk ainda corrobora com isso agregando a variável tempo às posses derivadas de viagens:

Integrado ao senso de quem somos está o senso de passado. Posses são uma forma conveniente de criar histórias de memórias e sentimentos que remetem ao nosso senso de passado. Um souvenir pode tornar tangível outras experiências intangíveis de uma viagem (BELK, 1988, p. 148)

E acrescentando a dimensão tempo ao conceito inicial, Belk (1990) aprofunda sua teoria do Eu estendido:

A noção do Eu estendido sugere que nós transcendamos os limites imediatos do nosso corpo ao incorporar a nossas identidades objetos do nosso ambiente físico. Essa concepção implica que o Eu é espacialmente alargado por essas extensões; e nossas posses nos fazem maior. No entanto, existe outra dimensão na qual o Eu pode ser estendido: a dimensão tempo (BELK, 1990, p.669).

Essa dimensão é de imensa importância para este estudo, visto que a experiência turística está diretamente ligada a momentos passados e que, geralmente, rementem a memórias de prazer que trazem então a nostalgia de tempos que não voltarão. E entendendo que essa experiência turística também compõe a imagem do indivíduo, Belk (1990) também acrescenta que as lembranças da viagem confirmam que ela de fato aconteceu e fornecem dicas de comunicação para os outros. E assim, “similarmente, fotos familiares tiradas especialmente durante o feriado, [...] viagem de férias [...] significam estímulos para uma futura reflexão, comunicação, e consolidação do senso de Eu” (BELK, 1990, p. 670). A relação entre viagens e fotografias é bastante interessante e será abordada com maior profundidade mais adiante.

A partir do conceito do Eu estendido de Belk, outros estudos que confirmam sua teoria se mostraram também relevantes (AHUVIA, 2005; SPROTT; CZELLAR; SPANGENBERG, 2006; HIDANO, 2001). Ahuvia (2005) veio trazer a dimensão “amor” para o conceito. Segundo este autor, as coisas e pessoas que o sujeito mais ama terão maior influência no seu Eu, e isso

torna essas posses amadas diferentes das posses comuns. Sprott, Czellar e Spangenberg (2006) apresentaram um modelo teórico que chamaram de BESC (Brand-Extended Self Construal). Esse modelo defende que marcas importantes de produtos aumenta a possibilidade de extensão do Eu do consumidor. Já Hidano (2001) aplicou a teoria do Eu estendido numa pesquisa onde ele pôde comprovar que pais, avós e ancestrais são componentes importantes na formação do Eu estendido de indivíduos na questão de conflitos contemporâneos, como por exemplo, a forma como as pessoas se relacionam com o meio ambiente.

No entanto, a teoria de Belk (1988), sob a luz da psicologia e da sociologia, também rendeu publicações que fizeram críticas relevantes ao conceito preliminar de Eu estendido (MORGAN, 1993; MITTAL, 2006). As críticas são relacionadas principalmente à dimensão limitada dada ao Eu, e propõem uma visão mais holística do construto.

Morgan (1993) propõe uma nova e mais abrangente dimensão do conceito do Eu: os possíveis Eus. Essa dimensão considera que o indivíduo transpõe passado, presente e futuro para compor seu Eu. Basicamente, os possíveis Eus representam o que nós queríamos ser, o que nós gostaríamos de ser e, mais importante, o que temos medo de ser. Esses possíveis Eus “podem ser tanto positivos (o Eu educado, o Eu bem-sucedido, o Eu saudável) como negativos (o Eu endividado, o Eu fora de forma, o Eu alcoólatra) ” (MORGAN, 1993, p. 432).

Mittal (2006) declara que existem duas lacunas nos estudos do Eu na literatura sobre comportamento do consumidor: (a) explicar melhor o conceito de Eu; e (b) explicar melhor o processo psicológico de como o indivíduo constrói a relação com as posses, assim chegando ao Eu estendido. Para este autor, o Eu compreende cinco componentes: valor e caráter; competência e sucesso; papéis sociais; imagem corporal; e características de personalidade autopercebidas. Além disso, Mittal (2006) afirma que as posses podem virar extensão do Eu de seis formas: (1) por escolha própria do indivíduo; (2) pelo investimento de recursos (dinheiro, tempo, energia) no processo de aquisição do produto; (3) pelo investimento de recurso ao usar

o produto; (4) por vínculo após a aquisição; (5) por coleção; ou (6) por memória. E finalizando sua crítica, Mittal (2006, p. 555) diz que nem todo produto pode tornar-se posses. Ele diz que alguns são apenas “bens de consumo” e nem sempre farão parte do Eu estendido.

Uma crítica que se pode acrescentar à essa preliminar conceituação do Eu estendido é sua observação a partir da expansão das relações sociais virtuais. E é justamente para fazer esse ajuste de contexto que Belk (2013) publica um novo conceito, revisado, do Eu estendido para o mundo digitalizado, o qual será discutido a seguir.