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2.3 TEMAS FUNDAMENTAIS DO DIREITO URBANÍSTICO BRASILEIRO

2.3.2 Plano Diretor

2.3.2.2 O Conteúdo Mínimo do Plano Diretor

Nos termos exigidos pelo direito à cidade, deve o plano diretor contemplar questões referentes aos direitos dos habitantes do Município não só no aspecto urbanístico (parte da política de desenvolvimento urbano) como também em outros campos de atuação estatal que constituem o “conjunto de exigências legítimas para a existência de condições de vida satisfatórias, dignas e seguras nas cidades, quer para os indivíduos, quer para os grupos sociais” que caracteriza o direito à cidade.

Assim, o ordenamento jurídico pátrio traz exigências acerca do conteúdo do plano diretor, especialmente tendo em vista as disposições do Estatuto da Cidade. Nesse sentido, estabelece o art. 42 da Lei n. 10.257/01:

Art. 42. O plano diretor deverá conter no mínimo:

I – a delimitação das áreas urbanas onde poderá ser aplicado o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, considerando a existência de infra-estrutura e de demanda para utilização, na forma do art. 5o desta Lei;

II – disposições requeridas pelos arts. 25, 28, 29, 32 e 35 desta Lei; III – sistema de acompanhamento e controle.

Tais institutos e mecanismos representam conteúdo obrigatoriamente presente em tal diploma legal, embora não sejam suficientes, sozinhos, para permitir ao plano diretor o desempenho de sua missão constitucional.

O conteúdo mínimo do plano diretor exigido pelo Estatuto da Cidade espelha a importância central de tal documento no sistema referente ao planejamento de desenvolvimento e de expansão urbana. O disposto no art. 42, entrementes, e como já esboçado retro, não deve ser considerado como suficiente para a sua integral

caracterização. De fato, esclarece CARVALHO FILHO54:

“A idéia de conteúdo mínimo não apresenta qualquer dificuldade de interpretação. O que a lei quer dizer é que, para a elaboração do plano diretor, será imperioso contemplar os aspectos mencionados nos incisos I a III do art. 42. Logicamente, contudo, não significa conteúdo exclusivo, idéia diversa, pela qual o plano só poderia conter os referidos aspectos.

“Na verdade, dificilmente o plano poderia conter apenas a disciplina enumerada naqueles incisos: são inúmeros e variadíssimos os temas de que deve ocupar-se, principalmente se nos lembrarmos de que se trata do instrumento básico de política urbana”

Nestes exatos termos, o Conselho das Cidades, que detém competência para expedir orientações e recomendações sobre a aplicação do Estatuto da Cidade e demais atos normativos relacionados ao desenvolvimento urbano (art. 10, inc. IV da Medida Provisória 2.220/01, em vigor pelo disposto no art. 2º da Emenda Constitucional nº 32/2001), emitiu a Resolução nº 34, de 01/07/2005, que dispõe

sobre o conteúdo mínimo do plano diretor55.

Destaca-se, em tal documento, as disposições que determinam ter o plano diretor o dever de prever as ações e medidas para assegurar o cumprimento das funções sociais da cidade, considerando o território rural e urbano; as ações e medidas para assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana, tanto privada como pública; os objetivos, temas prioritários e estratégias para o desenvolvimento da cidade e para a reorganização territorial do município, considerando sua adequação aos espaços territoriais adjacentes; os instrumentos da política urbana previstos pelo art. 42 do Estatuto da Cidade, vinculando-os aos objetivos e estratégias estabelecidos no plano diretor (art. 1º).

Estabelece o art. 2º da mesma Resolução que as funções sociais da cidade e da propriedade urbana serão definidas a partir da destinação de cada porção do território do município, de forma a garantir espaços coletivos de suporte à vida na cidade, definindo áreas para atender às necessidades da população de equipamentos urbanos e comunitários, mobilidade, transporte e serviços públicos, bem como áreas de proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico. Da mesma maneira, deverão ser definidas áreas para todas as atividades econômicas, especialmente para os pequenos empreendimentos comerciais, industriais, de serviço e agricultura familiar (art. 2º, incs. I e V). No dizer de

CARVALHO PINTO56,

“O Conselho adotou, acertadamente, um modelo de plano diretor urbanístico e autoaplicável. Extremamente relevante é a determinação de que toda a legislação de uso e ocupação do solo seja consolidada no plano diretor. O zoneamento é considerado, portanto, parte integrante do plano, que deverá, ainda, delimitar as áreas a serem adquiridas pelo Poder Público para implantação de equipamentos urbanos e comunitários, sistema viário etc.

55 A Resolução nº 34 do Conselho das Cidades é anexa a este trabalho. 56 CARVALHO PINTO, op. cit., 2010, pp. 136/137.

"Destaque-se também o entendimento de que o conceito de função social aplica-se tanto à propriedade privada quanto à pública, que contribui para subordinar a atuação dos órgãos públicos setoriais ao planejamento urbano”

Seja qual for o entendimento acerca amplitude das disposições do plano diretor, parece ser a síntese apontada por CARVALHO PINTO como conteúdo material mínimo de tal instrumento adotada como paradigmática – independentemente do entendimento de quais outras matérias devam constar de tal

diploma legal, as arroladas pelo autor estarão, necessariamente, nele incluídas57:

a) delimitação das zonas urbanas, de expansão urbana, de urbanização específica e de interesse social;

b) estabelecimento de índices urbanísticos relativos a áreas mínimas e máximas;

c) delimitação das áreas cuja vegetação natural deve ser preservada ou suprimida;

d) traçado do sistema viário principal da cidade, existente e projetado; e e) bases para a utilização do direito de preempção, das operações consorciadas e da transferência do direito de construir.

De todo modo, é preciso considerar que a doutrina ainda debate acerca dos limites das disposições materiais do plano diretor. De colacionar-se, neste sentido, a

opinião esposada por CARVALHO PINTO58,

“Os parágrafos do art. 182 deixam claro que o objeto do plano diretor é apenas o ordenamento territorial. As expressões ‘obrigatório para as cidades’, política de desenvolvimento e expansão urbana’, ‘ordenação da cidade’, ‘área incluída’, ‘solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado’, ‘adequado aproveitamento’, ‘parcelamento e edificações compulsórios’, bem como as referências à propriedade urbana e ao instituto da desapropriação são relacionadas ao urbanismo. Conclui-se daí que o plano diretor de que fala a Constituição é exclusivamente urbanístico, não se destinando a tratar de políticas setoriais ou da promoção do desenvolvimento econômico.

57 CARVALHO PINTO, op. cit., 2010, p. 190. 58 Ibid., 2010, p. 117.

Segundo o autor, os aspectos sociais e econômicos deverão ser levados em consideração durante o processo de elaboração do plano diretor, como componentes de seu diagnóstico – em outras palavras, tais elementos pertencem ao momento do planejamento urbanístico, como componentes de decisão para a elaboração do plano urbanístico a ser positivado em lei. Os temas urbanísticos devem, neste sentido, ser analisados em conjunto com uma série de outros aspectos, como a economia, as políticas públicas setoriais, o sistema de transporte e o de saneamento. A integração entre as políticas setoriais, contudo, não se traduz necessariamente em um documento com coercibilidade jurídica. Assevera o

indigitado autor que59

“Há uma razão prática para que os aspectos urbanísticos sejam objeto de um documento exclusivo: o urbanismo já está institucionalizado, por meio do direito urbanístico. Sabe-se exatamente como o plano urbanístico é executado e fiscalizado, a fim de que possa realmente influenciar a realidade. Já com relação aos demais temas, não se sabe muito bem como controlar sua execução. Uma avenida só pode ser construída caso esteja projetada no plano diretor. Como controlar, no entanto, um sistema de ônibus, um sistema de tratamento de saúde, ou uma política de geração de empregos? Já por aí se vê a conveniência de separar, pelo menos em termos jurídicos, o urbanismo das demais políticas.”

Observa-se que há uma preocupação em não permitir que surja o argumento de que o plano diretor é uma verdadeira panaceia de todos os problemas a serem enfrentados pelo Município – a conveniência de apartar as matérias apontadas não significa que seja tecnicamente inviável a sua veiculação neste diploma legal. A idéia trazida pelo autor parece evidente: a lei do plano diretor já enfrenta questões de extrema relevância e de grande dificuldade de solução.

De fato, ao trazer para o âmbito de tal diploma legal outras questões e objetivos, de igual ou maior dificuldade e complexidade, estaria o legislador laborando, ainda que involuntariamente, a retirar a legitimidade política de tal instrumento, que passaria a ser visto como somente mais uma lei sem efetividade social. Tal situação implicaria, em médio prazo, no próprio esvaziamento da idéia da existência do plano diretor como vetor de soluções urbanísticas, uma vez que excessivamente carregado de metas e desideratos não alcançáveis com a mera ordenação urbanística da cidade. Esta visão acerca do conteúdo material do plano

diretor, assinale-se, parece desejar estremar o diploma legal – e, por consequência, o próprio direito urbanístico - de uma amplitude de atribuições que aproximam o seu âmbito de regulação do direito à cidade.

Sob outro ponto de vista, entrementes, argumenta MARCOS MAURÍCIO TOBA, ao relembrar que o art. 39 do Estatuto da Cidade apropria-se do próprio texto constitucional, que, em seu art. 182, § 2º, prevê que “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais da ordenação da cidade expressas no plano diretor”. Assim, o plano diretor deve assegurar não apenas o cumprimento das diretrizes expostas no art. 2º da Lei n. 10.257/01, mas também o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida,

à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas60. Salienta, ainda61:

“O art. 40 reproduz, em seu ‘caput’, o texto constitucional (art. 182, § 1º, parte final). E é como instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana que deverá, então, incorporar o território do município como um todo (§ 2º). O legislador segue, neste passo, as lições do saudoso publicista Hely Lopes Meirelles, que, ao dissertar sobre o plano diretor, prescrevia que este deveria ser uno, único e integral. Uno e único, como instrumento norteador dos atuais e futuros empreendimentos, e condutor e ordenador do crescimento da cidade, disciplinando as atividades urbanas em prol do bem-estar social. Integral, para se diferenciar de outros tipos de planos, alguns previstos no próprio corpo do Estatuto da Cidade (como os planos setoriais, art. 4º, alínea ‘g’), ou outros como os de reurbanização – que não se preocupam com a integralidade, como o plano diretor.”.

De acordo com TOBA, que apresenta visão exatamente oposta à perfilhada por CARVALHO PINTO, deve o plano diretor incumbir-se da responsabilidade de ser indutor de políticas sociais e econômicas, alavancadas pela busca da cidade socialmente justa, destacando-se a sua relevância como diploma central do planejamento urbano, norte e fundamento de outras leis municipais dele decorrentes e baseadas.

Embora a discussão sobre a amplitude do conteúdo do plano diretor ainda não esteja esgotada, e respeitando-se as opiniões lançadas em sentido contrário, forçoso reconhecer que a ideia de que este diploma legal seja afeto exclusivamente à matéria de direito urbanístico parece contradizer a determinação constitucional de

60 TOBA, Marcos Maurício. Dos instrumentos da política urbana in Estatuto da Cidade: Lei 10.257, de 10.07.2001 – Comentários. MEDAUAR, Odete e MENEZES DE ALMEIDA, Fernando Dias (coord.), 2. ed., revista, atualizada, e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, pp. 237/238.

que o mesmo terá por desiderato ser a base da política de desenvolvimento urbano do Município.

Dada a sua relevância, destaca-se, no estudo específico acerca do conteúdo material mínimo do plano diretor, a análise da ordenação do uso e da ocupação do solo e do zoneamento.