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6 O MERCADO DA VILA RUBIM

6.2 O contexto atual do comércio de hortifrutícolas

Na Vila Rubim, o Mercado, tradicionalmente, apresentou uma configuração do que se poderia chamar de “mercado aberto”, no qual os três galpões construídos inicialmente para produtos hortifrutigranjeiros ficavam no centro e, em torno deles, os outros galpões, para onde se transferiram os demais comerciantes do antigo mercado, além de mercearias que atuavam em suas proximidades. Os galpões eram separados por ruas estreitas, e as pessoas que circulavam pelo mercado transitavam livremente entre um galpão e outro por essas ruas. Daí a idéia de mercado aberto, em que as pessoas circulam pelas ruas ao fazerem suas compras. Hoje, boa parte das lojas dos galpões foi adquirida por alguns poucos comerciantes. Isso fez com que as lojas crescessem e tivessem frente para a rua, sendo poucas as que ficam exclusivamente na parte de dentro de um galpão.

Ao chegar à Vila Rubim com o propósito de manter os primeiros contatos com os comerciantes que lidam com os produtos hortifrutícolas, lembrei-me de Malinowski (1980, p. 41) e o início de seus trabalhos na costa sul da Nova Guiné, quando “[...] um pouco de tabaco oferecido induzia uma atmosfera de mútua amabilidade”. Essa relação de troca é enfatizada quando Malinowski (1978, p. 21-22) afirma:

sabendo que eu meteria o nariz em tudo, até mesmo nos assuntos em que um nativo bem educado jamais ousaria intrometer-se, os nativos realmente acabaram por aceitar-me como parte de sua vida, como um mal necessário, como um aborrecimento mitigado por doações de tabaco.

No caso dos sujeitos investigados nesta tese, não havia um interesse especial em tabaco que eu pudesse oferecer, mas em clientes, e eu poderia oferecer isso ao comprar produtos. Comecei, então, minhas compras e fui aos poucos me aproximando dos sujeitos de pesquisa.

Ao circular pelo Mercado para comprar sua lista de hortifrutícolas do dia, o pesquisador viu na prática o número reduzido de comércios que atuam especificamente com esses produtos. Isso foi algo que se destacou, principalmente ao saber do passado no qual o Mercado era o principal ponto de comercialização desses produtos. Além dos seis comércios que comercializam especificamente hortifrutícolas em geral, apenas mais dois supermercados e uma mercearia também trabalhavam com hortifrutícolas em geral, mas em uma variedade reduzida desses produtos, pois privilegiam secos e molhados. Algumas vezes, os produtos da lista de compras de hortifrutícolas nem foram encontrados no Mercado.

Em relação à questão de não encontrar os produtos hortifrutícolas no Mercado, é importante destacar que a variedade de produtos muda de um dia para o outro, pois as compras na CEASA desses produtos são diárias, ou quase. Algumas vezes, o próprio comerciante, no caso dos barraqueiros e dos tabuleiros, avisa que trará o produto em falta no dia seguinte ou em dois dias.

Ao acompanhar um grupo de comerciantes, um das barracas e dois dos tabuleiros em suas compras na CEASA, o pesquisador confirmou essa informação e pôde observar que as encomendas aos agricultores na CEASA ocorrem apenas no caso de alguns produtos mais difíceis de serem encontrados, o que pode ocorrer por ser entressafra ou por algum evento

específico, como falta ou excesso de chuva. Mas, mesmo nesses casos, antes de comprar, o comerciante verifica o preço dos outros agricultores e pressiona aquele para o qual fez a encomenda, podendo até comprar com outro se não houver um entendimento sobre o valor. Deve-se destacar que essa lógica se repetiu quando o pesquisador acompanhou outro comerciante, que antes trabalhava especificamente com hortifrutícolas, mas que atualmente compra hortifrutícolas para suas seis lojas de supermercado. A despeito da grande diferença na escala de compras entre eles, os procedimentos de negociação são semelhantes; apenas o uso do argumento do maior volume de compras, para negociar descontos, foi algo exclusivo do supermercadista.

No tocante à disposição física, a análise inicial do pesquisador teve como base a última vez que havia visitado o Mercado, após o incêndio e antes da reconstrução dos galpões. Agora, os dois galpões destruídos foram agrupados em um só. Possuem um mezanino, passagens largas e não conta com nenhum comércio voltado especificamente para a comercialização de produtos hortifrutícolas em geral. Atualmente, parece mais um pequeno shopping, com o predomínio de lojas de artesanato em seu interior, mas mantendo certa diversidade, já mencionada como típica do Mercado, nas lojas abertas para a rua.

Outros dois aspectos que destoam do passado relembrado são a segurança e a limpeza. No caso da segurança, agentes particulares foram vistos circulando por dentro dos galpões, em conjunto com guardas municipais e policiais militares, que também circulam por todo o Mercado. No caso da limpeza, a todo o momento se viam funcionários limpando os galpões e as ruas ao seu redor.

Essas alterações revelam mudanças no espaço de interação das pessoas, que, na atualidade, a despeito de toda a reformulação física, ainda apresentam comportamentos que, conforme os sujeitos, têm relação com as tradições do mercado.

Nesse sentido, o pesquisador, ao circular pelas lojas durante meses como um cliente, observou que muito dos clientes se conheciam, bem como os funcionários dos estabelecimentos. Enquanto estavam nas filas, as pessoas passavam e se cumprimentavam de maneira discreta ou bastante efusiva, com brincadeiras feitas a distância, acompanhadas por todos ao redor. Nas barracas e nos tabuleiros, há sempre algum cliente conversando com o comerciante e brincadeiras sendo feitas a qualquer momento. É só dar uma deixa, como mostra o seguinte fragmento do diário de campo: “Enquanto ele me atendia, passava um ambulante vendendo balas, e o rapaz que me atendia deixou cair uma moeda. O ambulante pegou, devolveu a ele e falou: ‘O dinheiro vem atrás de mim’” (Notas de campo).

No caso das barracas que são abertas para as duas ruas, a Rua Pedro Nolasco e a Rua Jair Andrade, essa lógica de dar atenção e conversar uns com os outros e com os clientes deveria ser um problema, pois não há como vigiar as duas frentes e ainda conversar, mas isso não impede a conversa; apenas leva a algumas correrias quando chega um cliente do outro lado, o que gera a interrupção da conversa, que, após a venda, é retomada.

Essa capacidade de fazer várias coisas ao mesmo tempo também é aplicada no dia-a-dia, quando eles têm que atender mais de um cliente. E, como foi observado no campo, ao mesmo tempo chamam para comprar uma pessoa qualquer que esteja passando por perto. Mesmo no supermercado A, certa vez, enquanto a responsável pelo guarda-volumes

conversava comigo, ela, ao mesmo tempo, guardava as sacolas de outros clientes e passava o cartão de crédito de um terceiro em uma máquina.

No dia-a-dia do Mercado, observou-se também certa distinção entre o cliente que circula durante a semana e o que faz compras no sábado. Além de o Mercado aumentar muito o volume de pessoas no sábado, inclusive com algumas filas para comprar em vários comércios, não se observaram aos sábados manifestações específicas, comuns durante a semana, como certo predomínio da circulação de pessoas com roupas surradas e que param para contar o quanto de dinheiro possuem antes de definir a compra. Isso foi visto durante a semana com maior freqüência nas barracas e tabuleiros e em menor freqüência no Supermercado A. Em um fragmento das notas de campo esse aspecto fica claro, quando o pesquisador destaca que as pessoas ao terminarem as compras

[...] não iam para os carros estacionados; elas seguiam a pé. Aparentemente, a maioria das pessoas que vai para o supermercado é de moradores das proximidades, mas o açougue e, principalmente, a peixaria, as lojas de condimentos, de ervas, e de artesanato e de mantimentos específicos (animais, sorveteria...) atraem pessoas de outras regiões. No tocante aos supermercados, aparentemente, o Mariano faz um papel de feira livre permanente de hortifrutícolas, papel também assumido pelos tabuleiros de frente à peixaria. As barracas se dividem entre produtos mais baratos, inclusive hortifrutícolas, muitas vezes com uma qualidade inferior aos das lojas, e outros incomuns, como a lamparina, o urucum em grãos, o feijão fradinho (Notas de campo).

Essa demarcação entre dois públicos fica clara no tocante à comercialização de hortifrutícolas ao se confrontar a estrutura do supermercado A, muito próxima de qualquer supermercado da atualidade, com carrinhos de compras, corredores ao longo dos quais os produtos ficam em bancas devidamente identificados com nome e preço, vários caixas com balanças e caixas registradoras eletrônicas, guarda-volumes, uniforme e máquina para cartão de crédito. Nas barracas, o contexto é outro, como mostra o seguinte fragmento das notas de campo sobre o interior de uma barraca que comercializa hortifrutícolas:

No seu interior de madeira vários pregos permitem pendurar todo tipo de coisa. [...] A energia é separada para cada barraqueiro. A Escelsa (Espírito Santo Centrais Elétricas) instalou todos os relógios em torno de dois postes próximos. Outro aspecto interessante é a existência de um balde ou uma caixa pendurada, que funciona como o caixa da barraca. Lá fica o troco e parte do dinheiro das vendas do dia. Nas barracas que vendem verdura, uma coisa que não falta são as pequenas bacias. Ao perguntar ao funcionário sobre as bacias, ele falou que sempre repõe os produtos na bacia. Como os clientes não ficam mexendo no produto como numa banca, os produtos estragam menos. Se o cliente insiste em escolher, o preço é outro. Ou melhor, segundo ele, o preço pode ser o mesmo, mas a quantidade é menor. Se o cliente quiser pesar eles usam a balança do vizinho e cobram um preço pelo quilo definido pelo proprietário. De qualquer maneira, ele [o funcionário] comentou que o que vende é o mais barato, por isso, usam as bacias, que são também mais simples, com dois tipos de conjunto de produtos, cada um arrumado de um lado do balcão: duas bacias por um real; e uma bacia por um real. Perguntei a ele sobre como eles faziam com os ratos, pois em outras barracas eles tinham os barris plásticos azuis com tampa para colocar os produtos lá e evitar os ratos. Ele falou que não precisavam daquilo, pois tinham os armários de madeira embaixo da barraca e que quando aparecia algum buraco pelo qual os ratos entravam, eles viam as mercadorias comidas e tampavam. No alto da barraca entre uma viga de madeira horizontal e outra apoiada nela, o vendedor colocou uma conta de luz que acabava de chegar, ao lado de uma faca que também ficava espremida lá (Notas de campo).

No caso dos tabuleiros, essa distinção na configuração do espaço permanece, pois são apenas caixas jogadas na rua em frente à peixaria, sobre as quais são colocadas tábuas ou placas velhas, e em cima delas vão as mercadorias expostas ao tempo, como se observa na Figura 14.

Figura 14 – Tabuleiros em frente à peixaria Fonte: dados da pesquisa

Nesses tabuleiros não é comum o uso de bacias. O preço é dado literalmente no olho. Mas, algumas poucas vezes, quando o cliente pedia que a mercadoria fosse pesada, o comerciante utilizava a balança de um peixeiro. No canto esquerdo da Figura 14 observa-se a parede da peixaria, bem próxima dos tabuleiros, e a Figura 15 mostra a disposição desses tabuleiros em relação às entradas da peixaria, além dos produtos comercializados.

Figura 15 – Disposição dos tabuleiros em frente à peixaria e produtos comercializados Fonte: notas de campo

Como se observa na Figura 15, a peixaria tem duas entradas, uma em cada extremidade de um corredor. Nesse corredor as bancas de peixe ficam dispostas uma de frente para a outra. O Tabuleiro A, mais próximo da Rua Orlando Rocha, e o Tabuleiro H, mais próximo da Rua Jair Andrade, trabalham com hortifrutícolas em geral e temperos, enquanto os demais

tabuleiros atuam somente com esse último tipo de produto, mas todos gritam e perguntam a quem passa se vai querer levar tempero para o peixe.

É nesse contexto, entre lojas, barracas e tabuleiros, que se dá o dia-a-dia da comercialização dos hortifrutícolas, em um cenário permeado por histórias de um passado de violência, como ilustra o fragmento das notas de campo do pesquisador, referente a um diálogo com um comerciante:

[...] ‘aqui tem cara muito bravo. Aquele que estava aqui já matou uns dois, tudo com faca’. Contou da vez em que o ‘cara’ brincou com um amigo no bar. O amigo jogou um copo na cara dele, o cortou, e ele cortou o cara, que foi parar no hospital, com o pulmão perfurado. A polícia foi lá, pegou o depoimento do presidente da Associação deles, que falou ter sido apenas uma briga, mas que o cara era trabalhador, e ficou tudo por isso mesmo. Eu perguntei: ‘E o cara, morreu?’. Ele respondeu: ‘Não. Fica por aí. Mas eles não se bicam. O que esfaqueou ainda tentou reatar, mas o outro não quis saber’ (Notas de campo).

É importante destacar que durante toda a pesquisa a única violência observada foi a dos barulhos dos brincalhões exaltados, dos bêbados, das prostitutas e dos viciados. Apenas barulhos, pois em nenhum momento se observou uma aproximação entre eles e os clientes. Mas as gritarias e correrias entre essas pessoas fazem parte do dia a dia com o qual logo o pesquisador se acostumou. E, como muitas das pessoas que efetivamente freqüentam o Mercado, passou a achar graça em lugar do medo.

É nesse contexto que atuam os comerciantes de hortifrutícolas, em uma vivência que inclui a história mencionada. Suas práticas sociais articuladas no cotidiano remetem a elementos nele inseridos, bem como a outros construídos em bricolagens que extrapolam construções anteriores, compondo o fazer estratégia na comercialização de hortifrutícolas no Mercado da Vila Rubim, foco da investigação empírica aqui desenvolvida.

7 O “FAZER ESTRATÉGIA” NA COMERCIALIZAÇÃO DE