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5 UMA INVESTIGAÇÃO DA ESTRATÉGIA COMO PRÁTICA SOCIAL: O

5.2 A escolha do locus da investigação: o Mercado da Vila Rubim

5.2.1 O que é um mercado?

Mayol (1996, p. 158), ao discutir a arte de morar, incluiu na sua descrição do bairro francês lionense da Croix-Rousse o mercado do bairro, pois,

[...] tradicionalmente, o mercado é um importante ponto de referência sociológico para a compreensão das relações humanas. Nenhuma cidade, nenhum povoado pode prescindir dele. Ao mesmo tempo que é um lugar de comércio, é um lugar de festa [...], a meio-caminho entre o pequeno comércio de rua e o grande

shopping, ou o supermercado, sem que os elementos que o constituem se

confundam com um ou outro desses termos. Oferece uma profusão de bens de consumo que vai além do que pode oferecer um comerciante, sem cair no “distribucionismo” dos supermercados (distribuição dos bens de consumo em classes de objetos, que chamamos de rayons (setores): setor de lingerie, setor infantil, etc.).

Na medida em que essa configuração envolve os atos de vender e comprar, como os observados nos mercados, além da função econômica, estão em jogo construções sociais expressas em comportamento e simbolismos socialmente contextualizados (FERRETTI, 2000; SOUZA, 2000), um processo dinâmico, no qual os significados dos espaços e tempos de comércio se alteram quando eventos e intervenções do dia-a-dia são confrontados nas articulações dos grupos sociais (SOUZA, 2000).

Segundo esse entendimento, ao estudarem as trocas comerciais que se dão no Mercado Público de Porto Alegre, Castilhos e Cavedon (2003, p. 1) destacaram incêndios e reformas que ocorreram ao longo das décadas de sua existência e que o levaram a ter na atualidade “ares de modernidade”. Esse processo é semelhante ao que ocorreu no Mercado Público da Vila Rubim, mesmo que em uma cronologia própria. Outro aspecto comum é que ambos os mercados se enquadram na definição oferecida pelos autores para os quais “[...] Mercado Público é um local onde ocorrem diariamente inúmeros atos de consumo que são precedidos

pelas trocas entre os donos das bancas e seus fornecedores, engendrando assim, o ciclo fornecedor, mercadeiro e cliente” (CASTILHOS; CAVEDON, 2003, p. 2).

Em Porto Alegre, as reformas, a redistribuição das bancas e um processo de higienização aproximaram o mercado da lógica do comércio atual, voltado a oferecer mais conforto aos clientes (CAVEDON, 2002). A busca pela inserção nessa lógica também foi observada no estudo de Pimentel et al. (2006) sobre o Mercado Central de Belo Horizonte. Neste estudo, os autores destacaram os impactos de eventos como, a privatização, ao ser vendido para os próprios permissionários, e a perda para a CEASA da função de centro de abastecimento, além da chegada dos confortos da modernidade, caracterizados em aspectos, como a instalação de um elevador ou o redimensionamento das passagens para os clientes.

As mudanças nos três mercados, o da Vila Rubim, o de Belo Horizonte e o de Porto Alegre, levou a novas estruturas internas, mas, como Cavedon (2002, p. 5) destaca em relação ao Mercado de Porto Alegre, “[...] externamente, a marginalidade e a malandragem ainda se fazem presente, com os ladrões e pedintes percorrendo as cercanias do Mercado, se aproveitando da distração dos menos avisados”. A despeito dessa proximidade com a insegurança, os clientes das classes A, B e C continuam freqüentando os mercados. Esse múltiplo foco dos mercados reflete o conjunto de diferentes segmentações exploradas pelos comerciantes, como revelam Gramkow e Cavedon (2001) ao observarem a comercialização de produtos mais voltados para cada uma dessas diferentes classes.

As reformas realizadas nos mercados remetem também à questão da relação entre o público e o privado, principalmente no caso de mercados com áreas sob a administração da prefeitura, como no caso da Vila Rubim e de Porto Alegre. Em relação ao Mercado de Porto

Alegre, segundo Cavedon (2002), a prefeitura assume a responsabilidade por essas reformas e por conceder as permissões para os comerciantes (permissionários) atuarem em suas diversas atividades.

Além dessas reformas, a responsabilidade por atrair públicos de diversos segmentos não recai necessariamente apenas sobre a prefeitura. É o conhecimento sobre os clientes que possibilita esse processo. Nesse sentido, é lógica a necessidade do envolvimento daqueles que têm autonomia para definir os segmentos a serem abordados, mesmo dentro da linha de produtos que a prefeitura os autoriza trabalhar: os comerciantes responsáveis pelas bancas. Outra característica desse grupo, que viabiliza seu papel de desenvolver prática voltadas para a segmentação, está na sua interação com os clientes no cotidiano do mercado, como revela Rossato Neto (2003, p. 5) ao afirmar que

[...] uma das particularidades do fazer administrativo local do Mercado Público é a presença constante dos permissionários em suas bancas, estando diretamente em contato com os clientes, fornecedores, familiares, amigos, transeuntes que entram ou passam por ali, de uma certa forma facilitando a observação e a vivência do seu dia- a-dia.

Além de viabilizar a segmentação, o próprio relacionamento com os clientes apresenta-se como a base da disputa entre os concorrentes no mercado (CASTILHOS; CAVEDON, 2003). Cavedon (2002) evidencia o atendimento personalizado como algo citado de maneira recorrente pelos seus sujeitos de pesquisa, levando o comércio a uma conotação de casa (DAMATTA, 1997) para os clientes, na medida em que o convívio permite reconhecer os clientes, seus gostos, sua vida – ou seja, o acesso a relações de afetividade que incluem os patrões, os funcionários e as práticas das brincadeiras e da pessoalidade no cotidiano do mercado. No tocante aos clientes, esse envolvimento é, também, uma maneira de fidelizá- los por meio de relações informais.

Conforme Gramkow e Cavedon (2001), as relações informais entre permissionários, funcionários e clientes remetem ainda à idéia de família, com funcionários e permissionários se reunindo em festividades nos finais de semana e com os clientes dando gorjetas aos funcionários, pagando lanches a eles ou convidando-os para almoçar ou tomar uma cerveja. Essa lógica extrapola a puramente econômica, incluindo laços afetivos de amizade recíproca e de simbolismos associados a esses laços, por meio dos quais “[...] o diálogo é aberto e a proximidade e pessoalidade emprestam caráter familiar às trocas que se realizam nesse

locus” (CASTILHOS; CAVEDON, 2003, p. 12). Essa família convive com a dos vínculos

consangüíneos, pois, como observa Cavedon (2002), é comum encontrar parentes trabalhando como funcionários e expressando afetividade sobre o que fazem, bem como o interesse em preservar o negócio da família. O conjunto dessas duas famílias constrói distinções entre o trabalho no Mercado Público de Porto Alegre e em outros lugares, sintetizadas em cinco aspetos básicos pela autora:

− ter um salário acima da média;

− ter amizade com os clientes e demais pessoas no mercado;

− saber que o cliente é bem atendido;

− ter o patrão como uma família, igual e companheiro; e

− conviver com as brincadeiras que fazem todos sempre alegres

Dentre esses, além dos já destacados, cabe aprofundar a discussão na associação do pai/patrão com a família, que, segundo a autora, é algo

[...] constante nos discursos dos funcionários do Mercado, é possível pensar-se como Colbari (1996), que evidencia, em seu estudo, o fato de as imagens familiares presentes na cultura organizacional favorecerem a dissimulação das contradições internas do trabalhador, fomentando a estabilidade emocional no ambiente de trabalho (CAVEDON, 2002, p. 9).

A família gira em torno da imagem paternal, na qual, como afirma Colbari (1996), o pai patrão é responsável por sustentar a família (o comércio) e seus filhos (os funcionários) do ponto de vista tanto moral quanto material. Por sua vez, seus filhos devem corresponder dedicando-se e tendo responsabilidades para com a família, respeitando e obedecendo ao pai (o patrão). Conforme a autora, nessas bases, a afetividade familiar, dos favores, da lealdade e da solidariedade oculta a exploração do trabalho, e a dominação sai da ênfase na relação capital/trabalho para uma lógica na qual a afetividade/trabalho entra em cena nos moldes do paternalismo clássico.

Em relação a essa lógica, cabe destacar a necessidade de reconhecer construções mais atuais da sociedade, nas quais as mulheres e os filhos contribuem com a renda da família, inserindo a negociação como um elemento de contraposição à lógica autoritária do paternalismo (CAVEDON, 2003). Além disso, concordando-se com Cavedon e Ferraz (2003), não existe um único modelo de família, e como tal as organizações que giram em torno da representação da família se baseiam em construções diferenciadas. Não cabe aqui colocar a família como uma maneira homogênea de se ver determinada organização. Como destacam as autoras, é mais importante contextualizar de que família se está falando e em qual sociedade ela está inserida.

Na lógica da família paternalista, as pequenas empresas, dentro ou fora de um mercado, quando são caracterizadas pela propriedade em torno de uma única pessoa, seja homem ou mulher, teriam nessa pessoa a figura do pai. Nesse caso, seria uma empresa familiar

paternalista. Mas nas construções mais atuais não cabe surpresa se esse pai ouve os filhos (funcionários) e toma decisões em conjunto com eles. A família não deixou de existir; só é diferente daquela na qual tudo gira em torno de um pai autoritário. Portanto, ao investigar empresas que, como as do mercado, articulam-se em torno de um ou mais fundadores e seus respectivos familiares, consangüíneos ou não, deve-se “[...] considerar os diferentes modelos de empresas familiares tal como os diversos modelos de família existentes uma vez que a simbiose empresa/família parece-nos inevitável” (CAVEDON; FERRAZ, 2003, p. 14).