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3.1 A POESIA E A EXPERIÊNCIA POÉTICA

3.1.1 O contexto do leitor (a voz e a vez)

Julgamos que as interpretações sensíveis da obra literária quase nunca fazem parte dos objetivos do ensino de literatura, uma vez que essa abordagem necessita de um trabalho específico voltado para uma leitura não meramente decodificadora. Talvez apareçam protocoladas nos documentos, nos projetos pedagógicos, nas diretrizes educacionais, nos planos de ensino das escolas. Todavia, nas práticas do letramento literário na escola, o prazer e o trabalho de fruição com poema sempre ficou à margem.

Numa grosseira generalização, entre o texto e o aluno, existe a voz institucional do professor que valida, ou dilui e aprova, as leituras da crítica literária, de leitores especializados, de suas próprias preferências. Muitas vezes o que é trazido para a sala de aula já é, portanto, algo pronto, acabado, sem que haja a mínima possibilidade de construção de outras leituras. As próprias leituras escolhidas pelo professor obedecem esse comedimento. O que pode ser considerado de uma excelente estética e de inestimável valor literário para o professor, obviamente selecionada pelas referências sobre determinado autor, período histórico, características utilizadas do momento literário trabalhado, não traz nenhum sentido ao aluno. Esse é o exemplo de uma leitura dentro de um domínio pré-formado e instituído por alguém ou uma instituição, por exemplo.

Os cursinhos pré-vestibulares, por exemplo, em geral desenvolvem pouca familiaridade com os exercícios de escavações literárias e construção da própria leitura do aluno. Geralmente, são trabalhadas análises prontas das obras, resumidas e/ou esquematizadas sob a ótica do professor. Não desmerecemos aqui o exercício de leitura de análises críticas e outros textos para a complementação e ressignificação da obra. As adaptações feitas nos filmes, por exemplo, são excelentes auxiliares para a compreensão de algumas leituras literárias. Mas assistir a um filme jamais pode ser considerado equivalente à integralidade de leitura de um livro, antes de tudo porque são textos com elementos constitutivos diferentes.

Conforme CyanaLeahy et al in: PAULINO & COSSON, 2004) não há mais lugar no currículo escolar para a ―leitura submissa, acrítica e artrítica os livros didáticos de literatura, ou de apostilhas condensadas, o que acaba por dar no mesmo‖. Para que nossos alunos percebam as sutilezas dos textos, é necessário que possibilitemos seu acesso a leituras diversas, de maneira planejada e prazerosa, além de despertarmos seus olhares para o processo de construção dos efeitos textuais, decorrentes da escolha vocabular, da estrutura textual, da organização dos recursos narrativos empregando esses conhecimentos nas suas próprias produções escritas. Só há possibilidade de ajudarmos no desenvolvimento de um leitor proficiente se existir espaço nas aulas para a autonomia crítica do aluno. Faz-se necessário, portanto, que tanto os professores quanto os autores de livros didáticos estejam observantes para/com a forma como estas leituras são direcionadas e vivenciadas na sala de aula haja vista serem estas leituras literárias ―intimamente ligadas às estruturas cognitivas de interpretação, reflexão, compreensão; competências que possibilitam o amadurecimento do aluno como leitor e ser humano‖. Sobre o caráter intersubjetivo da literatura, Fernando Pessoa em sua obra Livro do Desassossego, pondera:

A literatura, que é a arte casada com o pensamento, e a realização sem a mácula da realidade, parece-me ser o fim para que deveria tender todo o esforço humano, se fosse verdadeiramente humano, e não uma superfluidade do animal.

(...)

Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-lhe o terror. Os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor. As flores, se forem descritas com frases que as definam no ar da imaginação, terão cores de uma permanência que a vida celular não permite. Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver. Não há nada de real na vida que o não seja porque se descreveu bem. Os críticos da casa pequena soem apontar que tal poema, longamente ritmado, não quer, afinal, dizer senão que o dia está bom. Mas dizer que o dia está bom é difícil, e o dia bom, ele mesmo, passa. Temos, pois, que conservar o dia bom em uma memória florida e prolixa, e assim constelar de novas flores ou de novos astros os campos ou os céus da exterioridade vazia e passageira. (PESSOA, 1982, ITEM 193).

Neste contexto, destaca-se que a concepção de ensino de leitura literária presente nos Parâmetros Curriculares Nacionais para a Educação tem sido, constantemente, rediscutida e reelaborada no âmbito da educação, de modo a salutar que o ensino de leitura literária envolve um ―exercício de reconhecimento das singularidades e das propriedades compositivas que matizam um tipo particular de escrita‖ (BRASIL, 2002, p. 30). O que pode ser diretamente ligado ao discurso de Todorov quando o mesmo afirma que ―na escola, não aprendemos acerca do que falam as obras, mas sim do que falam os críticos.‖ (TODOROV, 2010, p. 27). Uma concepção de ensino que não provoca diálogos entre a subjetividade do aluno e a vida humana, e que expõe apenas, por meio do conhecimento do professor, suas técnicas, é mera repetição discursiva. Sobre isso, Todorov ainda ressalta:

Sendo objeto da literatura a própria condição humana, aquele que a lê e a compreende se tornará não um especialista em análise literária, mas um conhecedor do humano. Que melhor introdução à compreensão das paixões e dos comportamentos humanos do que uma imersão na obra dos grandes escritores que se dedicam a essa tarefa há milênios? (TODOROV, 2009, p. 92- 93).

A literatura possibilita o encontro do homem com a sua própria condição de humano. Leva-o a refletir sobre sua existência e escolhas, lhe apresenta outras culturas e visões sobre o mundo, em se tratando do leitor adolescente, faz-se necessário propiciar-lhe uma leitura ampla e crítica dos valores sociais existentes na sociedade, contribuindo para a formação de um sujeito-leitor, crítico-reflexivo e ativo em suas decisões sociais enquanto participante da sociedade. Portanto, pensamos que a importância da poesia na escola está na sua ação formadora, informadora e sensibilizadora, uma vez que ela representa um mecanismo que ajudará a ampliar o domínio da linguagem e capacitará o leitor na construção do conhecimento.

Sendo uma das funções do texto poético a criação de possibilidades para que o indivíduo conheça a si mesmo e ao outro e ainda o mundo que está a sua volta, podemos ainda afirmar que o mesmo leva à recriação e à busca de novos sentidos que um texto pode oferecer. A escolha da obra Morte e Vida Severina do autor modernista João Cabral de Melo Neto, por exemplo, foi feita pela própria turma do 3º ano D da EESD, em momento oportunizado pelo debate causado pelo fato do livro didático, distribuído aos alunos, apresentar somente 15 estrofes de apenas uma parte das 18 que compõem a obra. E sendo solicitada, em uma das atividades do bimestre, a leitura de um texto integral, os alunos acabaram por escolher a peça poema de João Cabral.

Se a escola propiciar ao aluno momentos de contato com os textos poéticos, de ampla experimentação e fruição, sentindo e apreciando a poesia, o discente se sensibilizará ante o seu objetivo e usufruirá dela como um meio de comunicação inclusive consigo mesmo. Portanto, a função da escola pode não ser o de formar poetas e sim tornar os alunos sensíveis à poesia, nos reportando a José Paulo Paes:

O texto poético é o espaço mais rico e amplo, capaz de permitir a liberação do imaginário e do sonho das pessoas. É preciso que o fato poético esteja muito presente e seja bem trabalhado pela escola para que o universo escolar possa romper o tédio e a indiferença com que muitas vezes se vê recoberto. Um mundo sem poesia é o mais triste dos mundos. (PAES, 1995, p. 1).

Aqui entramos na questão da formação do professor, um leitor que, por sua vez, forma leitores. É essencial um fazer literário contextualizado, abrangente e posicionado sobre o que se lê com os alunos, como e porque se lê tais obras, de maneira que o texto artístico mostre-se como uma paisagem que pode ser observada por vários ângulos, e que somente uma fotografia não dará conta de todas as suas possibilidades. Vale salientar aqui que os exercícios propostos, pela maioria dos livros didáticos, a partir da leitura de certos fragmentos7, são construídos de forma a que o aluno possa reproduzir apenas o que leu, dando então uma resposta correta na perspectiva dos autores elaboradores da obra. Na coletânea didática utilizada no ensino médio da EESD, por exemplo, no livro da 3ª série destinado aos professores há a sugestão de que o trecho da obra Morte e Vida Severina seja comentado oralmente em sala de aula. Recomenda-se também que seja esclarecido sobre o poema narrativo, mas não há nenhuma indicação do que deve ser feito e como deve ser feita essa utilização de apenas uma parte fragmentada da obra. Os versos selecionados, inclusive, sequer são os que remontam as passagens iniciais da peça-poema. Como provocar o aluno a ler integralmente um texto literário como o supracitado, por sua complexidade e imensidão de informações e interpretações, se as próprias informações presentes no único material disponibilizado pela escola sequer fazem sentido?

Por esse ângulo, a aplicação de uma proposta lúdica e inovadora de trabalho com a poesia, utilizando a recepção, leitura e performance, foi, em um primeiro instante, pensado para algo que possibilitasse a empatia e identificação dos alunos. A transformação dessa proposta em uma apresentação com uma linguagem viva e dinâmica, aproximada com as vivências dos alunos e dos sentidos que a linguagem tem nas suas vidas, é o resultado do que

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foi apresentado no IV Festival Literário promovido pela SPV-SD. A partir dela, aprofundaremos a questão do sentido da escolha da obra Morte e vida Severina pelos alunos, além de uma análise sobre como esse texto literário foi trabalhado dentro e fora da sala de aula.

Fundamentada teoricamente pela perspectiva instrumentalista no ensino literário, com abordagens relativas à vertente teórica da Estética da Recepção, essa atividade prima pelo desenvolvimento das atividades interdisciplinares que promovam a aprendizagem e o desenvolvimento crítico e social dos alunos.

Na proposta da Estética da Recepção, há o diálogo direto entre diacronia e sincronia no processo de compreensão total da obra, de modo que a historicidade da literatura revela-se justamente nos pontos de intersecção entre ambas. Deste modo, caberá à observação diacrônica considerar a relação da obra com o contexto literário no qual ela, ao lado de outras obras de outros gêneros, teve de se impor. Por outro aspecto, a sincronia, no entender de Jauss (1994), será fator importante para a compreensão de um aspecto específico da historiografia da literatura, pois, ao se comparar obras de um mesmo período histórico, demonstra-se a ―evolução literária‖ que prioriza um gênero em relação a outros contemporâneos, apontando a experiência de leitura como ponto crucial à construção de quaisquer conhecimentos.

De maneira semelhante, John Dewey, na obra Vida e Educação, traz algumas considerações sobre como a escola trabalha o ensino dos conteúdos disciplinares de forma abstrata e, muitas vezes, desvinculada da vivência da criança/adolescente. Ele enfatiza que ―[…] os indivíduos vivem em um mundo em que tudo é contato pessoal.‖ (1978, p. 43). Apontando, entre várias outras considerações, para a necessidade de se investigar o que o aluno já tem apropriado em sua cultura e que as aulas partam, então, daí, unindo a teoria à prática e valorizando a capacidade de pensamento dos alunos.

A proposta desta atividade de pesquisa, como delineado pelos conceitos de Paul Zumthor, haja vista na percepção do crítico constatar-se que o texto é muito mais do que seu suporte verbal ou vocal, mas todos esses aspectos que estão no seu exterior e que compõem sua livre expressão. Todavia, a composição da supracitada ação utiliza-se também do reconhecimento do caráter histórico das atividades literárias, ponto importante para inserirmos o aluno como sujeito-investigador. Para tal, a utilização da literatura, articulada a outras artes, servirá de um grande estímulo na fuga contra as práticas comuns de leitura do texto em sala de aula. Nesse sentido, o estudo da Estética da Recepção é relevante, na medida em que amplia as perspectivas de leitura dos alunos e promove condições para formação de leitores,

como apontado nas três observações preliminares da obra Performance, recepção,1eitura (1993).

Primeira: coloco-me no ponto de vista do leitor, mais do que da leitura, no sentido em que esta palavra designa abstratamente uma operação. O que eu questiono é o leitor lendo, operador da ação de ler.

Segunda: o ato de leitura, em si, de modo geral, pode ser descrito como neutro: decodificação de um grafismo, tendo em vista a coleta de uma informação. Ora, em certos casos (que é preciso definir), a leitura deixa de ser unicamente decodificação e informação. Somam-se a isto e, em casos extremos, em substituição, elementos não informativos, que têm a propriedade de propiciar um prazer, o qual emana de um laço pessoal estabelecido entre o leitor que lê e o texto como tal. Para o leitor, esse prazer constitui o critério principal, muitas vezes único, de poeticidade (literariedade). Com efeito, pode-se dizer que um discurso se torna de fato realidade poética (literária) na e pela leitura que é praticada por tal indivíduo. Mais do que falar, em termos universais, da "recepção do texto poético", remeterá, concretamente, a "um texto percebido (e recebido) como poético (literário)". Terceira: é evidente que não nego a existência de outros critérios de poeticidade, que têm a ver com a produção do discurso, desse discurso como tal, o texto ou o grupo social no qual ele funciona. Nesses planos intervêm fatores que designam os termos tradição, código ou (para tomar uma palavra já muito antiga, mas ainda utilizável com prudência) ideologia. Ora, esses fatos permanecem, em princípio, exteriores ao que visa a perspectiva que eu escolhi. Dessa perspectiva, parece-me indubitável - e eu tomo um exemplo extremo - que um romance da série Arlequim, para um adolescente apaixonado, possua uma certa poeticidade verdadeira, embora para numerosos indivíduos de nossa sociedade essa poeticidade seja impostura, ou pura e simplesmente inexistente. (ZUMTHOR, 1993, p. 24-25).

Ainda para o autor, o ato da performance do texto é completamente diferente da simples leitura individual pois é, sem dúvida, na intensidade da presença do corpo que reside a ordem do desejo pelo texto uma vez que ―uma poética da voz não pode jamais ser econômica‖ (1993, p. 27). É nesse deslocamento, para o eixo da ideia de recepção da obra, que o leitor é levado a rever seus conceitos , ao mesmo tempo, em que é estimulado a leitura amorosa das poesias. De modo que a performance textual, outro índice de diferenciação revelado, permitiria uma recepção coletiva e diferenciando-se da leitura ocidental, a qual tornou-se individual e silenciosa.

De modo tal, as noções dadas por Zumthor de corpo e raciocínio na leitura do texto literário poético, as quais constroem a performance, nos dimensiona a crer que ―o mundo tal como existe fora de mim não é em si mesmo intocável, ele é sempre, de maneira primordial, da ordem do sensível: do visível, do audível, do tangível‖ (1993, p. 78) ideias primordiais no alicerce da proposta das atividades desenvolvidas pela SPV-SD.

3.2 PERSPECTIVAS SOBRE MORTE E VIDA SEVERINA: UMA JORNADA A

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