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PERSPECTIVAS SOBRE MORTE E VIDA SEVERINA: UMA JORNADA A PERCORRER

O poeta com a sua lanterna mágica está sempre no começo das coisas. É como a água eterna mente matutina Pouco importa a noite lhe ponha a pena do silêncio na asa. Ele tem a manhã em tudo quanto faça. Além disso o amanhã nunca deixará de ter pássaros. (Cassiano Ricardo).

Os versos do poeta Cassiano Ricardo, em uma visão esclarecedora- sendo a interpretação o procedimento mais complexo segundo Antonio Candido, antecedidas pelo comentário e pela análise- apresentam visão do poeta como criador de significados, em versos que tentam revelar as formas do cotidiano. Do seu empenho poético surge a possibilidade de que o poeta seja, verdadeiramente, aquele que cobre e que descobre o mundo constantemente; aquele que pode retirá-lo da atmosfera opressiva do previsível e que não volta a lançar-se a ela nem pela pobreza imaginativa, nem pelo medo, nem pela falta de liberdade. Reconheçamos: o poeta é aquele diz o que já foi dito inúmeras vezes, de maneira única e inesgotável. É nessas possibilidades de reconhecimento que reside o trabalho literário.

Reconhecer significa conhecer de novo. Quer dizer, só reconhece quem já conhece algo. Por isso, a leitura literária é um jogo de parceria e a validade de tal leitura depende muito da bagagem cultural de quem lê. Daí que um mesmo livro terá sempre leituras diferentes para cada leitor e o mesmo terá leituras diferentes para o leitor, em diferentes épocas da sua vida. A experiência com a leitura, de qualquer obra de qualquer escritor, será revisitada de maneira diferente até mesmo numa revisão da mesma leitura. Ruth Rocha aos 15 não será lida como aos 30.

A mesma Ruth Rocha, renomada autora de livros para crianças e jovens, inicia e conclui uma de suas histórias8 juvenis com a mesma indagação: ―pra que serve uma história? pra divertir? Pra ensinar? Pra passar mensagem, como quem passa bilhetinho pros

namorados?‖ Ela mesma responde: ―Nada disso, minha gente. Uma história serve pra se ler‖. Aqui, acrescentamos: serve para despertar o imaginário, alertar a indignação e os sentidos, serve para acionar a emoção, serve para acionar a perspicácia do leitor. E na medida em que lemos essas histórias, ressignificamos a nossa própria história, diante da ampla utilização da razão e da emoção presentes nesta prática. Augusto Meyer, no livro Textos críticos, tece algumas considerações sobre a leitura em sua dimensão histórica:

Ler um livro é desinteressar-se a gente desse mundo comum e objetivo para viver noutro mundo. A janela iluminada noite adentro isola o leitor da realidade da rua, que é o sumidouro da vida subjetiva. Árvores ramalham. De vez em quando passam passos. Lá no alto estrelas teimosas namoram inutilmente a janela iluminada. O homem, prisioneiro do círculo claro da lâmpada, apenas ligado a este mundo pela fatalidade vegetativa do seu corpo, está suspenso no ponto ideal de uma outra dimensão, além do tempo e do espaço. No tapete voador só há lugar para dois passageiros: leitor e autor. (MEYER,1986, p. 3).

Pensando na perspectiva instrumentalista, para o ensino literário que pautará esta atividade de intervenção com alunos concluintes da segunda etapa dos estudos, podemos e devemos contribuir para uma reavaliação na postura docente no que cerne às escolhas das bibliografias e práticas utilizadas na composição das aulas. Em se tratando do texto poético, pode–se também destacar que a leitura de textos desse gênero favorece a abordagem e reflexão sobre as mais variadas sensações humanas. O texto poético também incita reflexões sobre os dramas humanos e suas vivências, incentivando a construção de um posicionamento para o leitor, o qual nunca poderá ser neutro diante dos temas.

No sentido de dirigir um olhar crítico para a questão da leitura, na atualidade, bem como promover a implementação de projetos na escola que invistam prioritariamente na formação de leitores não só para o interior da escola, mas para o mundo, se institui como eixo central da preocupação de muitos educadores. Dado esse encadeamento de ideias, podemos então perguntar: quem é este leitor de hoje, qual formação literária requer, qual necessita, qual é possível? Pensando na superação dessas dificuldades e limites, interessou-nos a escolha do texto literário poético por este ser objeto de muitos debates entre a teoria e a prática educativa, o que realmente é feito pelas escolas nas aulas de literatura.

Concordamos que ―cada leitor, a partir de suas referências, individuais ou sociais, históricas ou existenciais, dá sentido mais ou menos partilhado, aos textos de que se apropria‖ (CHARTIER, 1996, p. 20). Neste sentido, a escolha da obra de João Cabral de Melo Neto partiu da própria inquietação provocada nos estudantes por uma pergunta escrita no quadro: Quão Severina pode ser a vida? Severina de severa. Severina de sofrida. Nessa sutileza de

percepções, a obra elege a morte como substantivo inicial do seu título, apresentando a vida como algo complementar.

Assim como o tão comum Severino que se apresenta e encarna todos os retirantes do sertão, na partilha não somente de um nome, mas de uma saga, de dramas e sofrimentos não particulares. ―Iguais em tudo na vida‖, morrendo de fome um pouco por dia. Quantos Severinos estão diante dos nossos olhos nas salas de aula nas escolas públicas do Brasil? Quantos trabalham por necessidade e estudam como podem ao ―tentar despertar terra sempre mais extinta‖ que vem se tornando a educação desse país. A escola, sem apoio suficiente do Estado, os alunos custeados à cabeça de gado, submetidos ao domínio, à violência e à exploração dos coronéis que figuram em nossa política. A narrativa nos fala muito mais de nossas retirâncias pessoais do que sobre qualquer outra história. A situação com a qual nossos Severinos tem que lutar, com a injustiça social com a qual temos que conviver, com a indignação que somos levados a engolir pra matar nossa fome. A bala que mata o ‗Severino Lavrador‘ também nos atingirá a preço do nosso cordial silêncio e imobilidade.

A crença e a religiosidade espontânea que permeiam o imaginário, tão característica e marcante traço cultural, do povo nordestino. Aqui, observa-se que acreditar em Deus não é uma opção, é devoção de quem precisa de algo maior que o sofrimento para acreditar, sob as ladainhas de um ―rosário até o mar onde termina‖. Peregrinações, rezas de rosário e missas se misturam com crença em benzedeiras, em festas religiosas que representam uma forma de ver e entender seu mundo: lutar pela vida.

João Cabral foi inegavelmente um dos escritores brasileiros que mais se sensibilizou com o drama dos nordestinos, não somente por estar escrevendo sobre seu próprio chão, mas por se preocupar e querer visitar uma realidade tão próxima, tão ingrata e triste, mas que até então poucos enxergavam. Esse retrato do esquecimento do povo pobre de nosso país é tema constante ainda nos dias atuais, devendo ser abordado de maneira reflexiva nas explanações que buscam investigar, identificar e analisar os problemas e os espaços sociais e acontecimentos históricos incluídos no poema. Essa junção de dados da cultura, não somente do Nordeste, de fatos que foram /são realidade e nos são transmitidos através da sensibilização promovida pela literatura e muitas vezes imperceptíveis a ―olho nu‖ de quem se acostumou com a barbárie humana. Na ampliação dos estudos acerca das relações entre literatura e vida social, nos é de grande estima salientar, que o alcance literário traz o contexto histórico, mas não representa somente ele.

Conquanto construam discursos diferentes, história e literatura atuam reciprocamente, bem como com os demais discursos, onde cada qual faz suas assimilações e suas

particularidades, por que a vivência humana provém da história, e a literatura aí age reportando o discurso desta existência e de suas propriedades. A respeito da História e Literatura, Maria Aparecida Baccega afirma que:

O discurso, manifestação textual das formações ideológicas/formações discursivas, não é apenas uma cadeia de enunciados, frases ou palavras que se justapõe. Ele tem de supor sempre o conjunto das relações sociais que constituem em que está inscrita na palavra, matéria-prima de que ele se utiliza. Isso tanto vale para o discurso da história quanto para o discurso da literatura. (...) os discursos literários estão presos às ―séries‖ literárias da sociedade em que se instauram e os discursos históricos às ―séries‖ do estudo da história daquela sociedade. (...) Em outras palavras: a ―série‖ a que pertence um ou outro discurso vai exercer um importante papel na maneira que se dará sua leitura. (...) assim, também o receptor não lerá um discurso que se denomina histórico como se fosse ficção. (BACCEGA, 1995, p. 81).

Feitas as observações acerca do texto literário e contexto sociocultural, ofereceremos continuidade ao estudo, com algumas exposições sobre a armação que rege a obra em questão.

A ―vida severina‖ é de privações e de miséria, tanto no campo como nas cidades. A interpretação da obra nos leva a refletir sobre os latifundiários de nossos dias, os coronéis que ditam as nossas leis e os irmãos das almas com quem dividimos nossa pobre riqueza. De maneira que a massa da população está submetida a essa situação. Mudam-se os contextos. Permanecem as práticas. Assim como na obra o Auto da Barca do Inferno, na qual Gil Vicente apresenta seus vários personagens mortos em situações de escolhas. A escolha pelas embarcações conduzidas pelo anjo e pelo diabo é feita pelo julgamento coletivo de seus atos. Tais personagens alegóricos não apresentam indivíduos definidos mas, sim, tipos sociais. Ou seja, serviram apenas como modelo, para exemplificar qual era, segundo o autor, o comportamento de determinados setores da sociedade da época.

Também, analogamente ao teatrólogo português Gil Vicente, João Cabral emprega-se da justaposição de cenas e do verso redondilho para contar, de forma escarnecida e explicativa, as desigualdades sociais, mas sem deixar de lado a excitabilidade da poesia. Segue ainda a alegoria, que compõe cada tipologia social do povo nordestino. Dessa forma, o poema Morte e Vida Severina classifica-se mais na estrutura poética dramática, do que na teatral. Também podemos verificar uma semelhança descritiva relacionada à dureza da vida do lavrador, que muito se iguala a Severino de João Cabral. A esse respeito Lopes e Saraiva nos despontam que:

A caricatura do lavrador e do pastor nunca em Gil Vicente vai além dos aspectos superficiais e anedóticos, como a linguagem, a ignorância, a simplicidade, que, se os

tornam ridículos aos olhos do mundo, lhes dão acesso ao reino dos Céus, ou pelo menos os livram de ir para o Inferno na companhia do fidalgo e do clérigo. Em compensação, as duras condições em que vive o camponês, a rapina de que é vítima, aparecem expressas com vigor na Romagem de Agravados e no Auto da Barca do Purgatório. O Lavrador deste último auto é porventura a personagem mais comovente de toda a obra vicentina: ―Nós somos vida das gente e morte das nossas vidas.‖ Vive sujeito ao peso dos tributos e à incerteza das estações. O senhor não lhe perdoa as rendas, pouco se importando com a sua fome. O próprio Deus, que envia inoportunamente o sol ou a chuva, parece estar contra ele, e cerra os ouvidos às suas orações - segundo as queixas de João Murtinheira na Romagem de Agravados. Esse lavrador abandonado por Deus, vítima da rapina social, já descrito por Gil Vicente, certamente comoveu e inspirou o ateu João Cabral. Dando-lhe, até mesmo, a sugestão do título de Morte e Vida Severina. No entanto, ao contrário de Gil Vicente, o poeta pernambucano jamais ridiculariza seu lavrador, e sim confere-lhe um estatuto trágico sem, no entanto, ser melodramático ou panfletário. (LOPES E SARAIVA, 2004, p. 4).

As tipificações sociais presentes no texto de João Cabral, servem de pano fundo para a discussão de temas recorrentes nas aulas, da explanação do que representa o ―suor vendido‖, a ―grande cobiça‖ e a ―tal velhice que chega antes de se inteirar trinta‖ e que mesmo cansado e desacreditado, visitado e revisitado pela morte, a personagem principal e pensando que não há como fugir da saga de uma vida Severina, Severino deseja defender a vida. Esse talvez seja o desejo de incontáveis brasileiros: uma vida que, se não rica, ao menos seja digna, com comida, morada, saúde suficiente e educação para se ir além do óbvio. Contudo, se isso é muito menos do que qualquer ser humano merece, nem isso lhe é garantido por um país que privilegia quem muito já tem e marginaliza quem já está à margem do nada. Mas o desumano não está no tratamento que é destinado a quem tem como pagar, não há culpa nos privilégios que se tem. É pensar no que é negado aos que, apesar de uma vida de trabalho duro, não têm como pagar por uma ―cova‖ digna.

―Vindo por essas caatingas, vargens, aí está o seu erro: vem é seguindo seu próprio enterro‖. Desilusão e conformidade, Severino decide apressar a morte, pretende jogar-se da ponte de um dos cais do Capibaribe, questionando ―há muito no lamaçal apodrece a sua vida? e a vida que tem vivido foi sempre comprada à vista?‖. Enquanto Severino pensa em saltar para a morte, o filho de José ―saltou para dentro da vida‖.

Para José, o Carpina, ―O que compro a retalho é, de qualquer forma, vida‖. Se de um lado o tema de Natal está presente porque assim foi encomendado ao autor, por outro ele carrega uma significação religiosa própria da cultura no Sertão nordestino.

Mas se cada severino tem como fado lutar invariavelmente contra seu destino de miséria, se contentando com o simples fato da adversidade não aumentar, não seria tal atitude um conformismo disfarçado de luta? A penúltima parte do poema se oferece à coragem e à luta que os severinos travam contra seu destino e a morte. Aquela criança prematura e

desnutrida que teima em vencer a morte que tão cedo lhe ameaça, repetindo o ciclo de luta do sertanejo. Mesmo diante de tanta tristeza, o nascimento da criança é ―belo porque com o novo todo o velho contagia‖, ―porque corrompe com sangue novo a anemia‖ e ―infecciona a miséria com vida nova e sadia‖. De maneira semelhante ao Natal de Jesus, presente no fantasioso da tradição popular, a nova vida que nasce na miséria pode carregar consigo a força de começar um caminho novo e mudar o destino que marcou seus pais. ―É difícil defender, só com palavras a vida‖, ―ainda mais quando ela é esta que vê, severina‖, mas ―não há melhor resposta que o espetáculo da vida‖. Na última parte do texto permanece a dúvida sobre a atitude de José Carpina: lutar ou desistir? E o otimismo deste é moldado pela vontade de viver, a mesma que moveu o retirante do Sertão para o litoral. E só esse anseio de viver é capaz de mover cada severino a ansiar e lutar por uma vida melhor para si e para seus iguais. Cabe a cada brasileiro a tarefa de buscar e alcançar soluções que permitam que o nome ―severino‖, usado de empréstimo pelo grande João Cabral de Melo Neto, seja devolvido ao nordestino como nome próprio e nunca mais precise ser usado como sinônimo de miséria. Este não precisa ser o destino de todos os severinos.

4 A INCLUSÃO DO LEITOR REAL COMO INSTÂNCIA DA LITERATURA PELOS EVENTOS DE LETRAMENTO

4.1 A ESCOLA ESTADUAL SANTOS DUMONT - DE SUA FUNDAÇÃO AOS DIAS DE

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