• Nenhum resultado encontrado

1. ALGUNS ANTECEDENTES DO MUNDO DO TRABALHO

1.3. A era digital

1.3.2. O contrato de trabalho intermitente ou zero hour contract

Essa nova modalidade de contrato de trabalho está disposta no § 3º2 do art. 443

e no art. 452-A3, da CLT, incluído pela Lei n.º 13.467/20174. Também denominada em

outros países de “zero hour contract”, significando que os contratos não têm 2 § 3o Considera-se como intermitente o contrato de trabalho no qual a prestação de serviços, com

subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador, exceto para os aeronautas, regidos por legislação própria.

3 Art. 452-A. O contrato de trabalho intermitente deve ser celebrado por escrito e deve conter

especificamente o valor da hora de trabalho, que não pode ser inferior ao valor horário do salário mínimo ou àquele devido aos demais empregados do estabelecimento que exerçam a mesma função em contrato intermitente ou não.

4 A discussão pormenorizada de temas pertinentes à seara sindical e outros decorrentes desta lei está

determinação de horas, por isso a sua denominação. Nessa sistemática, o trabalhador fica à disposição aguardando ser chamado, de modo que somente receberá pela hora efetivamente trabalhada, sem nada sendo pago pelo período que ficou à espera. Nas palavras de Ricardo Antunes (2018, p. 34), trata-se de uma engenhosa forma de escravidão para flexibilizar totalmente o mercado de trabalho, onde os novos proletários

dos serviços se encontrarão entre uma realidade triste e outra trágica: oscilarão entre o desemprego completo e, na melhor das hipóteses, a disponibilidade para tentar obter o privilégio da servidão, cujo termo metafórico deu nome à sua obra O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital.

Um dos exemplos mais emblemáticos de contrato de trabalho intermitente é o da empresa Uber, posto que seus contratados além de utilizarem seus automóveis (instrumentos de trabalho) têm de suportar, dentre outros, os gastos com manutenção dos veículos, ao passo que o “aplicativo” pode se esquivar das obrigações trabalhistas, valendo-se dessa modalidade de trabalho instável. Importa anotar ainda que a principal diferença entre o zero hour contract e o sistema Uber é que neste os motoristas não podem recusar as solicitações, sob pena de sofrerem represálias por parte da empresa, ou até mesmo o seu “desligamento”. Não raro, esse novo modelo de trabalho, com contratos “zerados”, “uberizados”, “pejotizados”, “intermitentes”, “flexíveis”, ainda impõem metas a serem cumpridas pelos trabalhadores. Outro exemplo de exploração do trabalho sob este mesmo viés pode ser encontrado na Itália, onde se desenvolveu a quitação da prestação de trabalho ocasional através de voucher, isto é, os assalariados recebem um

voucher pelas horas trabalhadas, que é trocado pelo equivalente monetário, segundo o

salário mínimo legal pago por hora trabalhada. Em Portugal essa remuneração é feita através dos chamados “recibos verdes” (ANTUNES, 2018, p. 34/35).

Na Câmara dos Deputados, o relator do Projeto de Lei n.º 6.787/2016, ao apresentar o Relatório (substitutivo) afirmou que essa modalidade de contrato de trabalho geraria 14 milhões de empregos, ao longo de uma década (não se sabe, entretanto, a origem da pesquisa), que o efeito social do contrato intermitente seria grandioso, como nos casos de primeiro emprego e em especial quanto aos estudantes, que poderiam conciliar trabalho e estudo, reduzindo-se a evasão escolar (não há qualquer pesquisa empírica acompanhando o relatório, bem como não se constatou diminuição da taxa de

desocupação após a reforma trabalhista – ver pesquisa PNAD no capítulo 3 – subtítulo 3.3). Demais disso, percebe-se que o deputado fez vistas grossas acerca da qualidade desses empregos, assim como silenciou-se acerca da possibilidade de haver uma migração dos atuais contratos para essa nova modalidade.

Na Comissão de Assuntos Econômicos – CAE, do Senado Federal, o relator ciente de que a alteração legislativa não estaria “madura”, propõe que a mudança seja vetada e sucedida pela edição de uma Medida Provisória para delimitar o seu alcance. Nenhuma das sugestões se concretizaram. A uma, porque o Executivo Federal descumpriu sua promessa de vetar trechos da reforma e, a duas, porque a MP (n.º 808/2017) ficou “engavetada” no Congresso Nacional, cujos acontecimentos estão melhores descritos no capítulo 3 deste trabalho.

Sobre o assunto, não obstante o caráter de precedentes persuasivos, ou seja, não obrigatórios (vinculantes), a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA, em sua 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, cujo tema central foi a reforma trabalhista, aprovou uma dezena de Enunciados (73, 74, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90 e 91)5 apontando suas inconstitucionalidades e contrariedades,

de modo que, embora não precisem necessariamente ser seguidos pelos julgadores, sua observância constitui natureza argumentativa para tomada de posição em determinado sentido, o que significa dizer que o juiz o seguirá não porque é obrigatório, mas porque se convence de que o enunciado está correto.

A natureza precarizante deste modelo de contrato de trabalho é exposta por Patrícia Maeda (2017), ao enumerar uma série de situações em que o trabalhador está sujeito à exploração e maus-tratos em relação aos demais:

mascara o desemprego com a criação de subempregos flexíveis; a flexibilidade que o justifica é unilateral – em regra serve apenas ao empregador; a liberdade que lhe dá fundamento não pode ser observada diante a assimetria das partes no contrato – a discricionariedade em fornecer trabalho não corresponde à discricionariedade em aceitá-lo; a falta de transparência e informação sobre o zero hour contract dificulta a já mitigada liberdade contratual do trabalhador; a existência de cláusula de exclusividade agrava a situação do trabalhador – ele fica alijado de qualquer possibilidade de conseguir outro trabalho, restando subjugado à conveniência do empregador, ainda que isso coloque em risco sua subsistência; a limitação da cláusula de exclusividade, porém, não altera a realidade: o trabalhador dificilmente se arrisca a manter mais de um contrato por

5 O texto integral dos Enunciados encontra-se no Anexo I do presente trabalho. Disponível em:

receio de não lhe ser fornecido trabalho no caso de uma recusa sua; o trabalhador sujeita-se a condição bastante insegura – não é possível saber se terá trabalho nem salário; essa insegurança tem efeitos sobre a saúde mental e física do trabalhador, além de impossibilitar o planejamento familiar em termos de rotina e de finanças; o zero hour contract obsta o acesso a direitos e garantias como férias e licença-saúde; a discriminação quanto aos estatutos – os trabalhadores zero- hora, por vezes, desempenham a mesma atividade que os empregados regulares, mas recebem menos e têm menos segurança e direitos; (MAEDA, 2017, p. 317/325)

No mesmo sentido, Eliana dos Santos Alves Nogueira (2017) demonstra a situação de absoluta vulnerabilidade e imprevisibilidade a que o trabalhador ficará exposto:

Neste caso, a norma genérica que prevê a possibilidade de uso do trabalho intermitente para qualquer atividade, sem qualquer limitação quanto à sua utilização (seja quanto às atividades, seja quanto ao número máximo de horas, dias ou meses de trabalho dentro de um determinado arco temporal), arrisca substituir contratos de trabalho standards por contratos formalmente precários. Neste caso, o trabalhador ficaria à mercê do empregador quanto à gestão de seu tempo de trabalho e arriscaria, acima de tudo, viver em uma situação de espera permanente com obrigação moral de resposta (natural para o empregado subordinado), tornando inconciliável sua vida pessoal e sua vida profissional, aliada à absoluta imprevisibilidade de ganhos para sustento próprio e de sua família. (NOGUEIRA, 2017, p. 145/146)

Patrícia Maeda (2017) assinala ainda a inconstitucionalidade do contrato de trabalho intermitente por afrontar a dignidade humana, já que o trabalhador é equiparado a um objeto, um maquinário à disposição do empresariado. Além disso, destaca que há flagrante sonegação de acesso a direitos sociais como: trabalho, moradia, alimentação, saúde e segurança. Acrescenta ainda, que a transferência dos riscos do negócio ao trabalhador – parte hipossuficiente da relação de emprego – caracteriza violação à valorização social do trabalho, bem como da função social da propriedade. E, finaliza, asseverando que a simples menção de que o trabalhador poderá prestar serviços a outras empresas não soluciona o imbróglio, já que, ao contrário do sustentado, a bem da verdade, a precarização dessa condição de trabalho não fomenta a formalização de diversos vínculos empregatícios pelo mesmo trabalhador, sendo certo que o efeito já constatado no Reino Unido é o de que há uma substituição de contratos de trabalho ordinários por zero hour contracts, o que significa dizer que a retirada de direitos, o rebaixamento dos salários e o mascaramento do desemprego é o que de fato ocorrem (ibidem).

Cabe observar ainda que o legislador ordinário reservou à convenção coletiva e ao acordo coletivo de trabalho a prevalência sobre a lei acerca das tratativas envolvendo essa nova figura de contrato de trabalho, à vista do disposto no art. 611-A, inciso VIII, da CLT, inserido pela Lei n.º 13.467/2017, isto é, haverá supremacia do negociado sobre o legislado (vide subtítulo 3.4) quando o assunto for o trabalho intermitente. Isso num ambiente de organização sindical sob forte influência estatal, anote-se.

De acordo com Carlos Henrique Bezerra Leite (2018, p. 397) este tipo de contrato de trabalho representa exatamente a tendência do entendimento dos empresários que incitaram a reforma trabalhista de 2017, buscando transferir os riscos do negócio para o empregado. Além do mais, alerta que o art. 452-A seria manifestamente inconstitucional, por atentar contra os princípios da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho, da função social da propriedade, da redução das desigualdades regionais e sociais e da busca do pleno emprego (arts. 1º, III e IV; 170, caput, III, VII e VIII, da CF/88). Ressalta, por fim, que esse modelo seria a mais completa superexploração do trabalho humano, assemelhando o trabalhador a uma peça descartável.

Enfim, o resultado dessas flexibilizações é visto por todos os lados e a classe trabalhadora é a que mais sofre seus efeitos nefastos, haja vista que, tanto os trabalhadores ingleses, onde fora introduzida a modalidade zero hour contract, como os brasileiros, ficam à disposição do capital, por tempo integral, sem contrapartida e sem que lhe seja garantido algum trabalho ainda que minimamente duradouro (ANTUNES; PRAUN, 2019, p. 63).

Daí a importância de se contar com entidades sindicais combativas, conforme sugerem Ricardo Antunes e Luci Praun (2019):

Os sindicatos, ferramentas fundamentais na resistência aos ataques do capital, precisam romper os muros dos locais de trabalho e das categorias formalmente estabelecidas. A ida aos bairros, a aproximação das entidades representativas dos trabalhadores às condições de existência de um grande contingente de trabalhadores e trabalhadores que vivem na margem do mercado formal, muitos submetidos aos vínculos temporários, intermitentes, consumidos pela luta cotidiana pela sobrevivência e distantes das reuniões convocadas nas entidades, talvez seja parte importante dos desafios que o momento impõe. (ANTUNES; PRAUN, 2019, p. 77/78).