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1 – O Coro dos Descontentes Público e Festivais da MPB

No documento pablodemelopeixoto (páginas 116-121)

Capítulo II – Panis et Circensis, ou gladiadores do campo musical brasileiro

II. 1 – O Coro dos Descontentes Público e Festivais da MPB

O Império Brasileiro teve o rio Riachuelo, o Estado Novo teve Monte Castelo. Na segunda metade do século XX, é nos muitos Festivais da Canção que as diversas correntes da Música Popular Brasileira iriam se enfrentar. O prêmio era, além da fama e do dinheiro, a supremacia de poder no campo e a legitimação do uso da violência simbólica, um conceito de Pierre Bourdieu que corresponde à legitimação das relações

de poder e domínio por ação dos media e de instituições sociais como a escola, que promovem a reprodução cultural e social e asseguram a manutenção da cultura dominante que não aparecem para os agentes como relações de poder e domínio de um grupo sobre os demais, mas sim como uma relação neutralizada, sem referência a qualquer interesse particulatista de assegurar uma identificação consentida de todos com valores e significados de poucos:

O campo de poder é um espaço das relações de força entre agentes ou instituições que têm em comum possuir o capital necessário para ocupar posições dominantes nos diferentes campos (econômico, ou cultural, especialmente). Ele é o lugar de lutas simbólicas entre os artistas (BOURDIEU, 1996:244)

Na medida que a participação política diminuía, os direitos políticos eram cassados e a imprensa amordaçada por uma censura cada vez mais fechada, a música (assim como, em menor escala, o teatro) se tornava cada dia mais um instrumento poderoso de comunicação e participação. Com os comícios, organizações e partidos políticos proibidos, esta era uma das poucas oportunidades de se subir em um palanque e discursar para um público de milhares de pessoas, sem contar com outros tantos telespectadores que acompanhavam pela TV. Os Festivais da MPB realizados na década de sessenta principalmente pelas redes de televisão Excelsior, Record (o mais concorrido, pelo fato da emissora ter um casting maior de artistas) e Globo são um exemplo de como a participação social migra para a música popular. O público massivo dos festivais era de uma feroz juventude universitária de esquerda, ávida por ver seus representantes defendendo músicas que contestavam e protestavam contra o momento político brasileiro. Esses estudantes formavam uma conservadora platéia disposta a vaiar agressivamente qualquer coisa que não fosse engajada e política. O cantor e compositor Sérgio Ricardo faz uma interessante analogia com a qual se pode

ter uma idéia do que significavam aquelas competições para artistas, público e produtores: "Parecia que algo nos transformava em animais, colocados ali, em concentração, cada qual na sua raia, à espera do sinal de largada para uma disputa pelo primeiro lugar" (ARAÚJO,2006:222).

Fisherman relaciona o surgimento da juventude estudantil dos meios urbanos no pós-guerra com os movimentos de esquerda:

Las sociedades urbanas que empezaron a consolidarse a fines de la década de 1950 estuvieron caracterizadas por ellugar progresivamente predominante de la juventud en la formación de hábitos cuturales, por nuevas músicas mediadas por la industria y operando como el más fuerte elemento identificatorio y formador de identidad comunitaria e individual, por la generalización de las posiciones políticas de izquierda en los ámbitos intelectuales y unitarios, por el dominio de las estéticas rupturistas en el arte culto y, cada vez más, por el mutuo interés entre la

academia y esas formas del

entretenimiento (y también por muchas expresiones de culturas no occidentales) que muchos empezaban a lIamar artepopular. (FISHERMAN 2004:75)

Segundo os estudos de Bourdieu, o público é um elemento importante na gênese dos campos artísticos e nunca o público esteve tão envolvido no campo musical do que na chamada Era dos Festivais. Considerado um marco divisório na história da música, foi durante os festivais da canção que se cunhou o termo “MPB”. Apesar de pequeno em termos numéricos, o público dos Festivais era um poderoso

elemento agregador de credibilidade e formador de opinião. No público dos Festivais, misturavam-se diversos elementos: fãs histéricas, universitários politizados e entusiastas da música, além de apontar uma mudança radical com a decadência da estética do banquinho e o violão e a ascensão de interpretações para multidões, vigorosas, furiosas e emocionadas. Sempre muito jovem, o púbico dos festivais (e seus participantes) remetem à idéia bourdieusiana do elemento jovem como peça fundamental para a dinâmica dos campos:

A iniciativa da mudança cabe quase que por definição aos recém chegados, ou seja, aos mais jovens, que são também os mais desprovidos de capital especifico, e que, em um universo onde existir é diferir, isto é, ocupar uma posição distinta e distintiva, existem apenas na medida em que, sem ter a necessidade de o querer, chegam a afirmar sua identidade, ou seja, sua diferença, a fazê-la conhecida e reconhecida (fazer um nome), impondo modos de pensamento e de expressão novos, em ruptura com os modos de pensamento em vigor. (BOURDIEU, 1996:271)

As roupas passam a ser parte da linguagem. Os arranjos, letras, harmonias e melodias sofisticam-se, visando a competitividade. Surge o que Augusto de Campos chama de “deformação da mentalidade do compositor”, levando-o a compor música “para ganhar festival”, ou seja, as concessões à comercialização e à formula “festivalesca”. (CAMPOS, 1993:127)

Zuza Homem de Melo faz um detalhado estudo sobre esta época em seu livro a “Era dos Festivais”:

Festival é um evento com duas concepções diferentes. A primeira é uma forma de reunir exibições artísticas durante certo período, tendo como denominador comum um gênero musical, como o samba, ou determinada área artística dominante, como o teatro (...) O outro modelo de festival, cujo objetivo também é ir em busca de novas manifestações, é marcada pela competitividade (...) por mais que disfarcem, os competidores buscam a vitória (...) Não é pois, uma competição entre grupos, bandas ou intérpretes. Os concorrentes são de fato autores das obras, os compositores e letristas. (HOMEM MELLO, 2003:13)

Os festivais também coincidem com a popularização da TV. Muito mais abrangente que os antigos festivais de marchinhas de carnaval, existentes no Brasil desde os anos 30, a TV acolheu os festivais - particularmente os canais Excelsior e Record - e utilizou-os de forma inteligente. Isso pode de certa maneira explicar a mudança de atitude dos intérpretes, que deixavam de se dedicar exclusivamente à performance vocal, para se preocuparem com postura, roupas e coreografias.

Outro motivo do sucesso da Era dos Festivais pode estar no cenário sócio- político. A Partir de 1966, onde podemos demarcar o início de uma era de ouro dos festivais, o país vivia sob o governo de uma ditadura militar instaurada dois anos antes e que dava sinais de endurecimento. A censura dos meios de comunicação, como jornais rádio e TV, a proibição de atos públicos, como passeatas e comícios, a cassação de deputados, partidos e liberdades civis, sob o pretexto de uma assim chamada segurança nacional, diminuiu gradualmente o espaço para a manifestação de

opiniões, reflexão política e participação popular. A esquerda tinha grandes planos para os festivais: “A chegada desta música de televisão potencializaria sua popularização e a partir daí, além de platéias estudantis, os telespectadores de outras faixas sócio-culturais e etárias teriam acesso à ‘moderna MPB’.” (NAPOLITANO 2005, 69) De certa maneira, os Festivais da Canção acabaram por ocupar esse espaço na vida da população, transformando-se em um palco de debates de uma disputa feroz, onde tendências, idéias, atitudes e vaias poderiam ser expressas sem as amarras do regime ditatorial. Para este estudo, selecionaremos alguns dos principais festivais da época que mais ajudam a verificar o jogo de poder na Música Popular Brasileira.

Foram diversos festivais nessa época. Portanto, para este estudo, faremos uma análise mais detalhada de apenas quatro deles. Baseamos esta decisão na repercussão que esses eventos geraram, na importância dos mesmos para avaliar o funcionamento do campo musical e na necessidade de fazer um cercamento mais enxuto do objeto de estudo.

Serão eles: o I Festival da Música Popular Brasileira, realizado pela TV Excelsior em 66; o II Festival da Música Popular Brasileira, realizado pela TV Record em 67; o I Festival Internacional da Canção, realizado pela TV Rio; o III Festival da Música Popular Brasileira realizado pela TV Record em 67; o III Festival internacional da Canção, de 1968, realizado pela TV Globo e o IV Festival da Música Popular Brasileira, de 1968, realizado pela TV Record. São estes primeiros festivais apontados por Augusto de Campos como “experiências sérias e organizadas”. (CAMPOS, 2005:125)

No documento pablodemelopeixoto (páginas 116-121)