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O cristianismo do Ipês: O trabalhador, a igreja e a empresa

CAPÍTULO 2 – O Boletim Mensal Ipês durante o governo João Goulart

3. O cristianismo do Ipês: O trabalhador, a igreja e a empresa

O Ipês revela uma intensa preocupação doutrinária em relação aos empresários e aos trabalhadores. Isso se reflete em suas publicações e em seus posicionamentos públicos. Sua preocupação doutrinária leva o Ipês a ressaltar com bastante ênfase a relação de suposta superioridade do modo capitalista de produção em relação aos modelos de Estados socialistas do Leste Europeu, procurando associar as ideias da Igreja Católica aos princípios do liberalismo e da livre empresa, contrapondo-se ao que eles avaliavam como ameaça comunista. O principal documento religioso que utilizavam para isso era o Mater et Magistra, uma vez que fazia menção à relação da empresa e do trabalhador, além de defender a propriedade privada. Tratava- se de uma interpretação marcada pelo conservadorismo, que tinha como objetivo mostrar as vantagens do livre mercado aos trabalhadores.

Nos Cursos de Atualidades do Ipês, intelectuais católicos que atuaram como conferencistas eram antigas lideranças do Centro Dom Vital. Um deles foi Gustavo Corção, líder católico conservador, associado à União Democrática Nacional. De acordo com Christiane Jalles de Paula, Corção legitimou as bases antidemocráticas do regime militar, além de se valer de retóricas da expiação dos culpados e da ameaça comunista para legitimar o golpe de 1964 e a ditadura (PAULA, 2012, pp. 171-194).

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Outro representante do Centro Dom Vital seria Alceu Amoroso Lima, importante intelectual católico que, em determinados momentos, assumiu posições conservadoras e, em outras ocasiões, um posicionamento liberal. De acordo com o historiador Carlos Guilherme Motta (2008, p.142), Alceu Amoroso Lima126 destacou-se como um importante ativista católico por meio da rejeição a teses que empunhavam o culto positivista à ciência e pelo progressivo afastamento em relação a intelectuais conservadores como Jackson Figueiredo. Essas duas importantes lideranças católicas, Alceu Amoroso Lima e Gustavo Corção, com trajetórias distintas, são selecionadas para o curso de Atualidades Brasileiras do Ipês com o objetivo de disseminar o discurso do instituto.

Na conferência de Gustavo Corção para o curso de Atualidades Brasileiras, A

democracia e a igreja, publicada no Boletim Mensal Ipês nº 16-17, o autor estabelece uma

relação de oposição entre capitalismo e comunismo, que é associado ao totalitarismo, defendendo um modelo de democracia que estabeleça direitos e deveres com os seguintes pilares: a verdade, o homem, a amizade cívica, a justiça social, o bem comum e o sistema representativo, contra o comunismo, que era considerado como um mecanismo de escravidão, marcado por regimes de caráter totalitário.

Assim, a democracia sob inspiração cristã, assegurando tal valorização, dá ao homem aptidão a vetar, hostilizar e combater, com vigor, qualquer mecanismo de escravidão, usado pelas concepções políticas totalitárias para alcançarem uma distribuição equitativa dos bens e das riquezas (CORÇÃO, 1963, p. 7).

Corção associava democracia à promoção do progresso e à realização da justiça social. Em outras palavras: “uma política que valorize o homem, que veja em cada indivíduo uma imagem à semelhança de Deus e que seja por todos aceita, haverá de promover o progresso e realizar a justiça social” (CORÇÃO, 1963, p. 15).

O surgimento do socialismo, de acordo com Corção, é consequência do egoísmo das classes dirigentes. Tal doutrina é atacada pelo conferencista por ter na sua concepção o equívoco de enxergar como soluções dos problemas apenas uma suposta igualdade, esquecendo-se do todo e provocando conflitos. Nessa perspectiva, o socialismo pressupõe o homem enquanto inimigo, como na máxima de Hobbes, de todos contra todos.

126 Alceu Amoroso Lima: era um intelectual católico conservador, fundador do Centro Dom Vital. Foi

representante brasileiro no Concilio do Vaticano II, tendo sido influenciado pela nova orientação dada à Igreja Católica por João XXIII. Durante a ditadura, de acordo com Napolitano (2014, p. 104), passou a criticar o “terrorismo cultural”, isto é, a perseguição de intelectuais e artistas e o obscurantismo tacanho da extrema direita. Era conhecido também pelo pseudônimo de Tristão de Athayde.

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Na conferência intitulada A Realidade Brasileira, Alceu Amoroso Lima, por meio de um discurso muito similar ao do Ipês, caracterizaria a democracia brasileira como marcada pela fuga dos extremismos, tanto do integralismo como do comunismo. E também fugiria do modelo liberal. Tendo como pressuposto a doutrina Mater Et Magistra e as leituras de Gilberto Freyre, defende que o Brasil seria marcado pela unidade cultural, evolução e harmonia. O tipo de democracia no país seria caracterizado pela democracia social, marcada pela interdependência de interesses. Seria uma democracia comunitária.

Os dirigentes do Ipês procuravam dissociar qualquer aproximação entre as concepções católicas e o comunismo. Numa resenha de autoria do dirigente do Ipês Paulo Assis Ribeiro sobre o livro do Padre Fernando Bastos Àvila127, intitulada Solidarismo, uma Ideologia

instrumental, defende-se a absoluta incompatibilidade entre a Doutrina Social Cristã e o

marxismo, e atribui-se aos católicos que pretendem ajudar comunistas certa ingenuidade. A Doutrina Social da Igreja, argumenta Assis Ribeiro, não critica o capitalismo, mas qualquer sistema em que os salários não são aplicados conforme os princípios defendidos pela Doutrina Social Cristã.

O discurso doutrinário do Ipês dirigido ao trabalhador estabelece a relação do trabalhador com a empresa. Com base nos pressupostos cristãos da Rerum Novarum e Mater et

Magistra, defende que a empresa se torne uma comunidade de pessoas. E tal comunidade deve

ter poder na empresa. Um dos exemplos disso está no Boletim Mensal Ipês nº 19-20, no qual foi publicado o artigo “Empresa Privada como Comunidade de Trabalho”, elaborado por um grupo de trabalho do Ipês128.

Nesse artigo, defende-se que a empresa se converta numa comunidade de pessoas com base em princípios cristãos. A empresa é vista como um feixe de direitos pessoais que deve se converter numa autêntica comunidade de trabalho, funcionando como um autêntico governo. Os autores do trabalho baseiam-se nas concepções do padre Fernando Bastos Ávila, defensor da tese que o operário deve participar dos lucros, pois isso possibilitaria que ele participasse de

127 Fernando Bastos Ávila criou, em 1955, a Escola de Sociologia, Política e Economia na PUC-Rio. Foi nomeado

vice-reitor da PUC em 1964 e exerceu a profissão do magistério até o fim da vida. Em 1990, o papa João Paulo II o nomeou membro da Comissão Pontifícia de Justiça e Paz. No ano de1997, ingressou na Academia Brasileira de Letras. De acordo com Demerval Saviani (2007, p. 333), o padre Fernando Bastos foi divulgador no Brasil da doutrina social cristã através de obras como, por exemplo, Solidarismo e Neocapitalismo, socialismo, solidarismo, publicada pela editora Agir, que era vinculada ao Ipês, como demonstra Martina Gonçalves (2010). Segundo Dreifuss (2008, p.259), o padre Fernando Bastos Ávila foi um dos participantes do Simpósio Sobre Reforma Agrária, promovido pelo Ibad.

128Resultado do grupo de trabalho que tinha como dirigente Mauro Ribeiro Viegas. Os outros participantes foram

Alberto Venâncio Filho, Aurélio da Silva, Aurélio de Carvalho e Sebastião B, Ribeiro da Luz (RIBEIRO VIEGAS, M. et al.,1964, pp. 46-55).

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um bem comum propiciado por todos. O lucro é concebido como o resultado de um esforço comum que deve beneficiar a todos. Defende que isso deve ser regulamentado e constar nas leis. A democratização do capital deve atingir cada um dos corpos da empresa.

A participação dos empregados, de acordo com esse argumento, deve ocorrer com base na coparticipação e na cogestão, que possibilitam ao operário ter voz sobre as condições de trabalho. Defendem a possibilidade de comunhão entre capital e trabalho. De acordo com essa concepção, a comunidade de trabalho tende a ser uma comunidade de vida, e a empresa se converte numa verdadeira comunidade.

A participação na propriedade da empresa é entendida, de acordo com essa concepção, como uma democratização do capital, que significa acesso de maior número de pessoas à propriedade dos títulos da empresa. De acordo com o texto:

A participação na propriedade pode ser considerada sob a expressão que se tem vulgarizado de “democratização do capital”. No sentido mais amplo, a democratização do capital significa acesso de maior número de pessoas à propriedade dos títulos que representam o capital social das empresas [...] (RIBEIRO VIEGAS, M. et.al, fev./ mar. 1964, p. 21).

Se ao trabalhador caberia sua integração nessa comunidade de trabalho que seria a empresa, ao empresário cabe se conscientizar do seu papel na vida pública. Um dos exemplos disso está no editorial publicado em fevereiro de 1963, no Boletim Mensal Ipês nº 7, no qual defende esses argumentos. Caberia aos empresários a tarefa do esclarecimento popular através dos estudos dos problemas do Brasil, resguardando as reformas dos grupos de pressão radicais de esquerda e direita. Assim:

Os empresários brasileiros podem avaliar hoje o que representou seu esforço na discussão dos problemas brasileiros no ano passado. E devem meditar sobre as responsabilidades maiores que lhes cabem em 63, na defesa de uma linha intransigente para resguardar as reformas dos grupos de pressão representados pelas forças táticas da demagogia e do radicalismo de esquerda e de direita. Zelar pela predominância do espírito democrático nas reformas é a obrigação que os homens de empresa recolhem da lição recente que a vida política brasileira nos deu (EDITORIAL, 1963A, p.3).

Cabe ao empresário, de acordo com o editorial do Ipês, contribuir para a humanização da empresa, possibilitando a participação dos empregados nos destinos da empresa para evitar o perigo do comunismo, do radicalismo de esquerda e direita e zelar pelas reformas.

Um dos textos onde essa argumentação é defendida é o depoimento de Leopoldo Figueiredo Junior sobre a participação na propriedade e nos lucros da empresa. De acordo com

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essa concepção, a empresa como geradora de capital e de desenvolvimento deve repartir os lucros com os seus empregados. Baseia-se em encíclicas papais dos papas Pio XI e João XXIII para defender essa divisão dos lucros, uma vez que isso propiciará a humanização da empresa. Para que isso seja possível, defende:

1. A participação na propriedade e nos lucros da empresa; 2. O salário família;

3. O reajuste do salário de acordo com o custo de vida; 4. Uma caixa beneficente dos funcionários.

O propósito é criar uma harmonia social entre empregados e empregadores com base em preceitos cristãos e trazer para a classe trabalhadora a compreensão de que o empresário busca de forma justa o bem-estar social. Dessa forma, os empregados não serão atraídos por ideias consideradas perigosas para os dirigentes do Ipês, uma vez que seriam incorporados ao sistema.

4. O discurso golpista dos Boletins Mensais Ipês em nome do combate à inflação, à