• Nenhum resultado encontrado

4.1 Leitura do cultivo da atenção em textos

4.1.1 O cultivo da atenção na cognição inventiva

No ambiente dos estudos cognitivos, a cognição inventiva surge como questionamento e problematização das formas cognitivas presentes nas abordagens tradicionais. Proposto por Virgínia Kastrup, o conceito de invenção neste campo da psicologia interpele criticamente os modos convencionais de entender os processos cognitivos, ao mesmo tempo em que lança um novo olhar para esses processos, para a atenção e para a aprendizagem.

Kastrup, professora e pesquisadora em Psicologia, dedicou parte dos seus estudos ao problema da aprendizagem da atenção no contexto da cognição inventiva. Para estabelecer as condições de inserção de uma abordagem inventiva nesses domínios, a autora tomou como base os estudos de Bergson, Deleuze, Guattari, Maturana e Varela, entre outros. Mas, no que concerne especificamente à atenção e à forma de aprendizagem no âmbito da cognição inventiva, fundamenta seu trabalho a partir de pesquisas realizadas no campo das ciências cognitivas contemporâneas20. Nessa área destacamos Depraz, Varela e Vermersch como os pesquisadores mais utilizados para pensar a aprendizagem da atenção, como cultivo, na cognição inventiva.

Por identificar uma lacuna na psicologia da cognição, Kastrup (1999) vê a necessidade de formular o problema da invenção no domínio dos estudos cognitivos, questão já colocada na atualidade discursiva de outros campos21. Em sua proposta, diferencia invenção de criatividade, colocada pela psicologia nas décadas de 50, 60 e 70. Também a distingue do sentido mais comum e atual do termo, relacionado à invenção ex-nihilo, ou seja, a criação a partir do nada. Por outro lado, afirma recorrer ao sentido mais primitivo22 da palavra invenção, proveniente de sua etimologia latina invenire, que significa “compor com restos arqueológicos”, “garimpar o que restava escondido, oculto”. (KASTRUP, 2004, p.13).

Kastrup (1999) diz que a invenção, no contexto da psicologia cognitiva, está relacionada à problematização. Traz uma noção de cognição ampliada, que extrapola o processo de solução de problemas, definindo-se como invenção de si e do mundo.

Até 1950, a psicologia cognitiva se desenvolveu no interior dos grandes sistemas com a busca por leis gerais e princípios invariantes do processo cognitivo, marca do projeto epistemológico da modernidade. Então, o estudo de vários temas como percepção, memória,

20

No final do século XX, a partir da década de noventa, em alguns ramos das ciências cognitivas, há uma retomada dos estudos da consciência que ampliaram a investigação da mente resgatando a dimensão de experiência da cognição. Com isso, rompem, enfim, com o veto positivista de uma ciência da experiência, transformando-a em problema a ser pesquisado. Dentre os referidos estudos, alguns utilizaram a abordagem fenomenológica na tentativa de desenvolver um método próprio de pesquisa da experiência. A chamada pragmática fenomenológica, desenvolvida por Depraz, Varela e Vermersch (2003), descreveu e discutiu, entre outras práticas, a meditação, relacionando-a a elementos teóricos da fenomenologia, como o método da redução (KASTRUP, 2004).

21

Na física com Ilya Prigogine; no campo da história das ciências com Isabelle Stengers; na filosofia e nos “estudos da subjetividade” com G. Deleuze, F. Guattari, H. Bergson, entre outros (KASTRUP, 1999).

22

Do latim, o substantivo inventio significa “achado, descoberta”. O verbo invenire, “descobrir, achar” é formado pela junção de in, “em”, mais venire, “vir”. O sentido atual do termo, “coisa feita previamente não existente” (ex-nihilo), provém, aproximadamente, de 1510. (fonte: http://origemdapalavra.com.br/palavras/invencao/, acesso: 07/01/2014).

pensamento e aprendizagem foram incluídos no objetivo ideal de formulação de uma realidade cognitiva completa.

Entretanto, essa forma de investigação, que busca estabilizar o objeto investigado e abstraí-lo de todas as possibilidades de transformações em seu interior, justifica-se em certa compreensão ontológica de cognição. Fechada em determinados estados, sob a operação de leis dentro de limites invariantes, a cognição, no quadro de grandes sistemas,

[...] é entendida como idêntica em si mesma, fechada aos efeitos imprevisíveis do tempo. Ela é marcada pela repetição, por um funcionamento que se mantém sempre o mesmo, resguardado de efeitos de transformação (KASTRUP, 1999, p.57).

Diante disso, o projeto epistemológico da modernidade, em busca de leis gerais para o processo cognitivo, promoveu uma redução do campo das experiências, ao estabelecer as condições para que as experiências cognitivas fossem investigadas. Essa redução, recorte necessário para que as formas e estruturas da cognição fossem estabelecidas, privilegiaram certas experiências, nas quais o funcionamento cognitivo aparecia estável, a exemplo da recognição.

As experiências de recognição “são aquelas que permitem o reconhecimento, prático ou consciente, de um objeto [...]. Caracterizam-se por sua utilidade na vida prática e por assegurar nossa adaptação ao mundo” (KASTRUP, 1999, p.57). No entanto, a autora, ao colocar o problema da invenção, aponta para aquelas experiências, nas quais a relação com o mundo se apresenta de forma problemática, através da perturbação, da inquietação, ou perplexidade.

Como ilustração de uma experiência dessas, apresenta a situação em que alguém retorna depois de muitos anos à casa onde morou na infância. Não se trata de uma situação de mero reconhecimento, pois este se mistura a um estranhamento, por exemplo, das dimensões da casa, que no passado poderiam parecer maiores. Assim, com a experiência de perplexidade, não há uma habitual recognição, mas se estabelece a invenção de um conhecimento da casa, outro e diverso.

Em tais circunstâncias os esquemas recognitivos são inadequados ou impotentes. Essas experiências que nos tiram da banalidade da vida cotidiana “provocam fendas ou rachaduras nos blocos recognitivos”, produzindo subjetividade (KASTRUP, 1999, p.59). Nelas, a cognição funciona como problematizadora dos padrões de recognição, ao intrigar, promover o pensar e impelir a invenção.

Do ponto de vista da invenção, a cognição não se limita a um funcionamento regido por leis e princípios invariantes que ocorreriam entre um sujeito e um objeto pré-existentes, entre o eu e o mundo. Ela é uma prática de invenção de regimes cognitivos diversos, co-engendrando, ao mesmo tempo, o si e o mundo, que passam à condição de produtos do processo de invenção (KASTRUP, 2004, p.8).

Trouxemos até aqui alguns pontos importantes que caracterizam a cognição inventiva proposta por Kastrup (1999; 2004; 2007), pois essa perspectiva se faz relevante para a investigação acerca da aprendizagem da atenção como cultivo. Não por acaso, na tessitura significativa do conceito de cultivo da atenção que tentaremos expor mais adiante, a cognição inventiva, ela mesma, constitui-se, sob nossa lente, uma unidade de significado, desdobrando- se em outras unidades.

Mas, antes de apresenta-la como unidade de significação em nossas análises buscaremos localizar, brevemente, o papel da atenção nesse contexto.

Enquanto a cognição fica restrita a um processo de solução de problemas, o controle do comportamento e a realização de tarefas tornam-se as principais funções da atenção. Com esses papéis, vê-se a atenção como subsidiária da aprendizagem, voltada para objetos e estímulos externos, na captação e busca de informações. No referido panorama, se a atenção é percebida como deficitária, a proposta clínica ou educacional para esse e outros transtornos é adaptativa.

De acordo com Kastrup (2004; 2007), quando ampliamos o conceito de cognição e incluímos experiências de problematização, e não apenas de solução, o conhecer se dá a partir da invenção, do engendramento conjunto daquilo que se dá a conhecer e daquele que conhece. Nelas a atenção extrapola o ato de prestar atenção, dando lugar a um processo complexo que envolve diferentes atitudes atencionais. Assim, a atenção concentrada e aberta, ao contrário de uma focalização exaustiva, possibilita a invenção. Como veremos mais adiante, a atenção não se dirige apenas ao exterior, mas também se redireciona ao próprio sujeito que atende. Por fim, na seara da invenção, a relação entre atenção e aprendizagem se dá em uma dinâmica, na qual se admite a aprendizagem da atenção, e esta se faz pelo cultivo.

Adentraremos detalhadamente nesses pontos, ao expormos nossa análise do material bibliográfico: A aprendizagem da atenção na cognição inventiva (KASTRUP, 2004). Neste exercício reflexivo, buscamos olhar o fenômeno da atenção como descrito no referido artigo, e dele, extrair unidades significativas, que de acordo com nossa interrogação, podem contribuir para a formulação do conceito de cultivo da atenção dentro de processos

educacionais. Outros materiais também serviram de apoio na tentativa de compor um arcabouço teórico em nosso processo de compreensão e reflexão acerca do fenômeno.

Da mesma autora, utilizamos o livro, A invenção de si e do mundo: uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição (KASTRUP, 1999), e o artigo, O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo (KASTRUP, 2007). O primeiro nos permitiu a aproximação com o universo da cognição, em sua abordagem inventiva. O segundo, ao descrever a atenção do cartógrafo na pesquisa de campo, nos forneceu elementos importantes acerca do funcionamento da atenção em seu processo de cultivo. Debruçamo-nos ainda, em mais um artigo de Kastrup (2005), O devir-consciente em rodas de poesia, importante para a contextualização de trabalhos relevantes nas ciências cognitivas contemporâneas, cujos elementos foram significativos em nossa pesquisa.