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PARTE I ENQUADRAMENTO GERAL

2. PERSPETIVAS CIENTÍFICAS SOBRE O DESENVOLVIMENTO

2.1. O desenvolvimento profissional enquanto processo

Para alguns (docentes, investigadores, políticos), o aperfeiçoamento docente subentende estritamente as atividades programadas de formação, de que são exemplo as pós-graduações, as oficinas ou os cursos formais, destinados ao suprimento das necessidades formativas dos professores. Porém, o conceito de desenvolvimento

profissional é mais lato, por remeter para um percurso prolongado na vida, ao

configurar o processo natural de desenvolvimento, profissional e pessoal, formal ou informal, que os professores vão construindo ao longo das suas carreiras. Pressupõe uma aprendizagem contínua, onde se incluem todas as experiências de aquisição de

conhecimentos e de competências, mas também aquelas que propiciem a alteração de representações e de motivações relativamente ao exercício docente, o que consubstancia o desenvolvimento profissional num processo mutável, experiencial e individual.

Entende-se portanto que o desenvolvimento profissional, compreendendo a formação contínua, a ela não se cinge, encontrando caminhos alternativos de construção no indivíduo e na sua interação com os outros. De acordo com Eraut (2012:4), “o contexto em que um indivíduo está inserido, que poderá incluir pessoas, eventos e práticas ao nível do trabalho do departamento, do grupo ou de toda a organização, tem uma importância relativa e pode variar muito dentro das organizações. Em geral, os aspetos mais significativos do contexto, para um indivíduo, serão aqueles com os quais tem maior contacto e aqueles que podem ser os mais propensos a exercer poder sobre ele”. Esta perspetiva, ainda que centrada no professor, associa o desenvolvimento profissional a um leque diversificado de atividades e estratégias realizadas nos contextos organizacionais, que produzem a mudança na forma de analisar as práticas, a alteração de atitudes, de expetativas e de anseios, mas também o próprio modo de encarar a profissão e de traçar o sentido da realização profissional.

Guskey (2002a:386-387), concebendo também o desenvolvimento profissional enquanto processo, descreve-o como gradual e dificultoso, mesmo quando evolui positivamente, porque a aprendizagem de novos conhecimentos não se realiza se não quando o sujeito lhes atribui significado e isso exige tempo e esforço, o que acarreta uma carga de trabalho adicional. Além disso, a mudança causa normalmente certa dose de ansiedade, o que só por si pode constituir um obstáculo à melhoria, daí que alguns professores sejam relutantes na adoção de novas práticas ou de procedimentos inovadores, a menos que sintam a certeza de que conseguirão implementá-los com êxito. Assim, mudar ou tentar algo novo significa arriscar o fracasso. Ora, as experiências mal sucedidas, além de embaraçosas para o professor, fragilizam o seu compromisso com a aprendizagem dos alunos. Portanto, mesmo quando a investigação científica recomenda determinados procedimentos com base em evidências, ainda assim, os professores dificilmente alteram ou eliminam as práticas que desenvolveram e rotinizaram no exigente ambiente das suas próprias salas de aula.

Em síntese, aprender e ensinar, ou melhor, aprender a ensinar é um percurso influenciado por um conjunto extenso de variáveis situacionais e contextuais, que

determinam a história profissional particular de cada docente, pelo que a linha que divide a história profissional e a história de vida é naturalmente muito ténue. No estudo que intitulou La vie des enseignants – évolution et bilan d’une profession, Huberman (1989) desenvolveu uma das investigações mais citadas sobre o desenvolvimento profissional dos professores, ao abordá-lo especificamente como processo que evolui ao longo da carreira. O autor procurou delimitar fases comuns à maioria dos docentes, que pudessem proporcionar algum esclarecimento sobre o ciclo de vida profissional, na sua estreita relação com o percurso de vida pessoal.

Com base nos resultados obtidos, a partir de questionários e de entrevistas aplicados a uma amostra de 160 professores do ensino secundário, Huberman concluiu pela existência de constantes ou de itinerários-tipo na carreira dos docentes, tendo apurado a ocorrência de experiências comuns à maioria e de vivências semelhantes. Pela afinidade de características relativas a sequências específicas do desenvolvimento profissional, o investigador distinguiu cinco fases na carreira docente.

A primeira, a fase de exploração, corresponde ao período inicial da carreira, aos dois ou três primeiros anos de serviço. Nesta fase, o professor confronta-se com a novidade das funções profissionais e avalia a competência do seu desempenho, daí resultando dois possíveis posicionamentos: a procura da sobrevivência, se o convívio com a complexa realidade escolar for difícil, devido a uma desarticulação entre os ideais pessoais e os problemas quotidianos do processo de ensino e aprendizagem; e a descoberta, se as novas experiências possibilitarem o sucesso, o entusiasmo e, daí decorrente, a adesão a uma identidade profissional. Para Huberman, as atitudes de descoberta e de sobrevivência coexistem, permitindo a primeira tolerar a segunda, embora habitualmente se verifique uma disposição predominante.

Nesta fase, poderão ainda verificar-se outros perfis, como a indiferença, se o professor escolheu a profissão por falta de alternativas; a serenidade, se chega à profissão com vasta experiência anterior; a frustração, se é sobrecarregado com tarefas ingratas e desadequadas à formação inicial que recebeu.

Quanto à segunda, a fase da estabilização, ocorrendo entre os quatro e os seis anos de prática profissional, corresponde à assunção do compromisso definitivo com a profissão escolhida (o que implica a renúncia a outras opções vocacionais), a admissão de responsabilidades específicas, a apropriação da identidade profissional e, por

consequência, uma forte afirmação do indivíduo. Caracteriza-se habitualmente por um sentimento acrescido de competência, de segurança e de autoconfiança profissional, por razões que se prendem com a conquista de um estilo pessoal de ensino, com a definição e consecução de objetivos a médio prazo, com uma maior flexibilidade na gestão da aula e com a adoção de uma atitude de relativização dos insucessos, não se sentindo o professor responsável por tudo aquilo que ocorre na sua sala. Huberman acrescenta que certos professores não atingem a estabilização, uma vez que nunca chegam a identificar- se definitivamente com a profissão docente.

Nas duas fases seguintes, o autor distingue, em cada uma delas, dois polos entre os quais oscila o desenvolvimento profissional que refletem respetivamente a motivação ou a desmotivação dos professores, revelando-se, porém, a possibilidade de transição entre esses polos pelos profissionais do ensino.

Segundo esta perspetiva, na terceira fase, entre os sete e os vinte e cinco anos de serviço, os percursos individuais diversificam-se acentuadamente, destacando-se, todavia, dois itinerários-padrão. Por um lado, a diversificação, em que o professor revela grande dinamismo, inovando e implicando-se, integrando equipas pedagógicas ou comissões de reforma, evidenciando enfim as suas qualidades profissionais no desejo de alcançar reconhecimento e prestígio, maior autoridade ou responsabilidade. Em oposição a esta tendência, Huberman refere a vivência do pôr-se em questão, que pode ir de um ligeiro sentimento de rotina a uma crise existencial face à perspetiva de se manter na carreira. Trata-se de um período em que o professor procede a um balanço da sua vida profissional e chega a encarar a hipótese, por vezes com algum pânico, de enveredar por outras carreiras.

Numa quarta fase, entre os vinte e cinco e os trinta e cinco anos de experiência profissional existem igualmente dois itinerários-padrão. Pode ocorrer a serenidade e o distanciamento afetivo, que se traduzem no menosprezo da avaliação de si por parte dos seus pares e dos alunos, no desinvestimento nas tarefas escolares, na cultura de um sentimento de autoaceitação e na diminuição do nível de ambição. O investimento profissional diminui, principalmente, porque os professores sentem que não têm de provar nada, nem aos outros, nem a si próprios. No mesmo período, pode observar-se, opostamente, o conservadorismo e o lamento, resultantes de uma visão pessimista dos alunos, dos rumos da política educativa e dos colegas menos empenhados, o que

desencadeia em muitos docentes uma nítida tendência para a rigidez e o dogmatismo, para uma resistência séria às inovações, acompanhada de uma forte nostalgia do passado e de uma descrença no futuro.

Por fim, a quinta fase, entre os trinta e cinco e os quarenta anos de serviço, é de desinvestimento, correspondendo a um recuo na carreira profissional, que pode ser sereno, se o professor se descompromete progressivamente, sem lamentos, para dedicar mais tempo a interesses exteriores à escola; ou amargo, se a desvinculação do trabalho é produzida com a desilusão e a frustração de o professor não ter conseguido realizar determinadas ambições profissionais e de ter concluído ser já tarde para o fazer.

Em Portugal, Gonçalves (1990) defendeu uma tese de mestrado sobre o desenvolvimento dos professores do ensino primário, tendo obtido alguns resultados semelhantes aos de Huberman. Os 42 professores entrevistados foram agrupados por idades, com o propósito de estudar tópicos como os melhores e os piores anos, os momentos de crise e de rutura, a importância da formação, a motivação e as etapas da carreira. O investigador chegou igualmente à definição de cinco fases no desenvolvimento profissional: o início na carreira, marcado pelo entusiasmo ou, ao contrário, pela desilusão; a estabilidade, entre os cinco e os sete anos de serviço; a

divergência, entre os oito e os quinze anos da carreira, distinguindo-se os professores

muito empenhados dos que revelam desinvestimento; a serenidade, entre os quinze e os vinte e cinco anos de serviço, caracterizada pelo distanciamento afetivo; o final da carreira, em que pode ocorrer um interesse renovado pela profissão ou, em antítese, uma maior saturação.

Conclui-se que os autores referidos concebem o desenvolvimento profissional dos professores como processo não linear e chegam à conclusão de que as diferentes experiências, atitudes, perceções, expetativas, satisfações, frustrações ou preocupações estão relacionados com as diferentes fases da vida profissional e pessoal dos docentes. As vivências individuais, em função da idade e do tempo de serviço, podem constituir estímulos impulsionadores, inibidores ou regressivos do processo de desenvolvimento, determinando desta forma os percursos profissionais dos professores.

Por fim, a perspetiva diacrónica do desenvolvimento profissional docente reveste ainda, nos estudos de Huberman e de Gonçalves, um caráter profundamente humanista, configurando até uma visão romântica da profissão, na medida em que

valorizam a dimensão emocional, os afetos e as sensibilidades individuais, como fatores essenciais e determinantes da evolução da carreira de cada docente.