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2.1 A CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

2.1.4 Status normativo do desenvolvimento sustentável

2.1.4.2 O desenvolvimento sustentável como direito fundamental

Os direitos fundamentais são aqueles direitos considerados básicos para qualquer ser humano, compondo um núcleo intangível dentro de uma determinada ordem jurídica. De forma geral, seguindo a distinção elaborada pela doutrina alemã, costuma-se dizer que os direitos fundamentais são os direitos humanos positivados no âmbito de determinado Estado, ou seja, embora essencialmente tenham o mesmo conteúdo, os direitos fundamentais e os direitos humanos se diferenciam a partir do plano em que estão consagrados. (COMPARATO, 2001).

Tradicionalmente, costuma-se vincular o surgimento das Constituições escritas à ideia de organização do Estado e, sobretudo, à limitação do poder estatal, por meio da previsão de direitos fundamentais. (MORAES, 2006). Sabe-se que os direitos humanos, por mais essenciais que sejam, são direitos históricos, concebidos de modo gradual, cuja origem decorre de circunstâncias marcadas pela luta contra velhos poderes em prol de novos valores. Nascem quando devem ou podem nascer. (BOBBIO, 1992).

Ao identificar a existência dessa paulatina evolução dos direitos, Karel Vasak utilizou em 1979, pela primeira vez, a expressão “gerações de direitos do homem”, na aula inaugural no Instituto Internacional dos Direitos do Homem, em Estrasburgo, associando-a com o lema da revolução francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.

Conforme leciona Piovesan (1998), na primeira geração estariam os direitos civis e políticos, fundamentados na liberdade (liberté); na segunda geração os direitos econômicos, sociais e culturais, baseados na igualdade (légalité); por fim, a última geração congregaria os direitos de solidariedade, em especial o direito ao desenvolvimento, à paz e ao meio ambiente, coroando a tríade revolucionária com a fraternidade (fraternité).

Segundo Bonavides (1999), a primeira geração de direitos fundamentais foi conquistada nos séculos XVIII e XIX, simbolizando uma resposta do Estado Liberal ao Estado Absolutista, que também correspondeu à fase inaugural do constitucionalismo no ocidente. Direcionado sobretudo contra o Estado, são direitos de resistência que destacam os limites deste frente à sociedade, reclamam do ente estatal uma abstenção, possuindo assim um caráter negativo. A segunda geração de direitos fundamentais, por sua vez, floresceu especialmente no século XX, com origem nas reflexões ideológicas que identificam a fragilidade dos “direitos liberais”, visto que o homem, em favor do qual se proclamavam as liberdades, ainda não satisfazia suas necessidades primárias. Nesse grupo estão os direitos sociais, culturais e econômicos que surgem a partir do declínio do Estado Liberal e do nascimento do Estado do Bem-Estar Social. Trata-se, portanto, de direitos positivos, que impõem ao Estado uma obrigação de fazer, como

saúde, educação, previdência social, lazer, segurança pública, moradia e direitos trabalhistas. Por fim, o mesmo autor arremata que os direitos da terceira geração se consolidaram no fim do século XX, enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Trata-se dos reflexos da internacionalização de problemas e interesses decorrentes da contínua transformação vivenciada pela sociedade, que tem entre eles a utilização equilibrada do meio ambiente e da biodiversidade.

Segundo Canotilho (2003), essa terceira geração compreende o direito ao desenvolvimento, o direito ao patrimônio comum da humanidade, o direito ao meio ambiente saudável e sustentável, o direito à paz, entre outros. Como se pode notar, nesse último estágio a proteção jurídica alcança tanto um aspecto interestatal quanto intrageracional e intergeracional. Sob esse enfoque jurídico-político, ainda nas palavras do mestre português:

O princípio da sustentabilidade transporta três dimensões básicas: (1) a sustentabilidade interestatal, impondo a equidade entre países pobres e países ricos; (2) a sustentabilidade geracional que aponta para a equidade entre diferentes grupos etários da mesma geração (exemplo: jovem e velho); (3) a sustentabilidade intergeracional impositiva da equidade entre pessoas vivas no presente e pessoas que nascerão no futuro. (Canotilho, 2010, p. 8-9)

Ao analisar esses novos direitos, Bobbio (1992) afirma que o mais importante deles é o reivindicado pelos movimentos ecológicos: o direito de viver num ambiente não poluído. No mesmo sentido, Ferreira Filho (2000, p. 62) enfatiza que “de todos os direitos de terceira geração, sem dúvida o mais elaborado é o direito ao meio ambiente”. A evolução no trato dos direitos e garantias fundamentais, especialmente no tocante a essa última dimensão, foi exemplificada de forma peculiar por Carlos Minc:

O século XXI deverá consagrar a cidadania ecológica, o direito ao sol, ao ar puro, à qualidade de vida, ao alimento saudável, ao ambiente de trabalho despoluído. Os que hoje se recusam a apresentar relatórios de impactos ambientais em audiências públicas ou a adotarem tecnologias limpas cumprem o mesmo papel daqueles que negavam o direito de voto às mulheres ou lutavam contra a jornada de trabalho de oito horas. (MINC, 1992 apud McCORMICK, 1992, p. 8)

Segundo Alexy (2002), o direito ao meio ambiente é um exemplo de “direito fundamental como um todo”, porquanto representa um leque paradigmático das situações suscetíveis de considerações em sede de normas tuteladoras de direitos fundamentais. Enquanto direito fundamental da terceira geração, pode referir-se ao direito de o Estado: a) omitir-se de intervir no meio ambiente (direito de defesa); b) proteger o cidadão contra terceiros que causem danos ao meio ambiente (direito de proteção); c) permitir a participação do cidadão nos

procedimentos relativos à tomada de decisões sobre o meio ambiente (direito ao procedimento); e finalmente, de realizar medidas fáticas tendentes a melhorar o meio ambiente (direito de prestações de fato).

No ordenamento jurídico nacional, a despeito de não figurar no conjunto formal de garantias e direitos fundamentais previstos no Título II, da CF/1988, existe consenso doutrinário reconhecendo o meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito materialmente fundamental, de cada indivíduo e da coletividade. (SILVA, 2002; ALONSO JR. 2006; SARLET, 2010). Ao analisar o tema, Silva (2003, 2004) reconhece inclusive a íntima ligação entre o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e o próprio direito à vida, matriz de todos os demais direitos fundamentais do homem. Conforme esclarece o renomado autor:

O problema da tutela jurídica do meio ambiente manifesta-se a partir do momento em que sua degradação passa a ameaçar não só o bem-estar, mas a qualidade da vida humana, se não a própria sobrevivência do ser humano. [...]

A ‘Declaração de Estocolmo’ abriu caminho para que as Constituições supervenientes reconhecessem o meio ambiente ecologicamente equilibrado como um ‘direito fundamental’ entre os direitos sociais do Homem, com sua característica de ‘direitos a serem realizados’ e ‘direitos a não serem perturbados’.

O que é importante (...) é que se tenha a consciência de que o direito à vida, como matriz de todos os demais direitos fundamentais do Homem, é que há de orientar todas as formas de atuação no campo da tutela do meio ambiente. Cumpre compreender que ele é um fator preponderante, que há de estar acima de quaisquer outras considerações como as de desenvolvimento, como as de respeito ao direito de propriedade, como as da iniciativa privada. Também estes são garantidos no texto constitucional, mas, a toda evidência, não podem primar sobre o direito fundamental à vida, que está em jogo quando se discute a tutela da qualidade do meio ambiente. É que a tutela da qualidade do meio ambiente é instrumental no sentido de que, através dela, o que se protege é um valor maior: ‘a qualidade da vida’. (SILVA, 2004, p. 30, 69-70, grifo nosso).

Nesse mesmo sentido, Milaré (2009, p. 818) salienta que o “direito a um meio ambiente sadio configura-se, na verdade, como extensão do direito à vida, quer sob o enfoque da própria existência física e saúde dos seres humanos, quer quanto ao aspecto da dignidade dessa existência – a qualidade de vida –, que faz com que valha a pena viver”.

Esse entendimento, que insere o meio ambiente ecologicamente equilibrado no catálogo dos direitos fundamentais com base no disposto no art. 225 da CF/1988, também encontra guarida em nossa jurisprudência constitucional, conforme exemplifica a decisão proferida pelo Pleno do STF na ADI 3.540 MC, de Relatoria do Ministro Celso de Mello, julgado em 01/09/2005. No mesmo sentido também podem ser citados: o Mandado de Segurança (MS) 22.164, o Recurso em Habeas Corpus (RHC) 88.880, a Ação Cautelar (AC) 1.978, o Recurso

Extraordinário (RE) 627.189 e o Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) 955.846. (BRASIL, 2005; 2008; 2017j; 2017k).

No contexto da concordância prática ou harmonização dos direitos fundamentais, esse caráter fundamental do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado foi vigorosamente reafirmado pelo Pleno do STF no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 101, de Relatoria da Ministra Cármen Lúcia, julgado em 24/06/2009. Para decidir as questões debatidas nessa ADPF, a Corte Suprema teve de examinar a colisão entre o livre exercício de atividade econômica e o direito ao meio ambiente equilibrado. Mediante um juízo de ponderação realizado no caso concreto, foi reconhecido, nas palavras do ministro Joaquim Barbosa, que “o risco de danos ao meio ambiente [...] deve prevalecer sobre o interesse econômico, que pode ser compensado de outras formas”. (BRASIL, 2009d).

Firmado esse ponto, resta saber se a natureza de direito fundamental que o meio ambiente ecologicamente equilibrado conquistou alcança também o próprio desenvolvimento sustentável.

De acordo com o art. 5º, § 2º, da CF/1988, “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. (BRASIL, 1988). Assim, no cenário nacional, as normas (regras e princípios) de direitos fundamentais podem estar expressas na Constituição, ou resultar da interpretação de seus dispositivos. Mesmo porque, esse caráter fundamental está ligado à essencialidade de determinado direito para a implementação da dignidade humana. (PEREIRA, 2006).

No que tange aos direitos fundamentais expressos, a doutrina identifica três situações: a) os direitos previstos no Título II da CF/1988, cuja natureza fundamental foi declarada pelo próprio constituinte; b) os direitos dispersos ao longo do texto constitucional, assim considerados em razão do seu conteúdo, como é o caso das disposições contidas no Título I, arts. 1º a 4º (onde se encontram delineados os contornos básicos do Estado Democrático e Social de Direito que identificam a nossa República), e do próprio direito ao meio ambiente, já mencionado; e c) os direitos expressamente enunciados nos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil. (SARLET 1996, 2010, 2015).

Por outro lado, ao mencionar no aludido dispositivo direitos “decorrentes do regime e dos princípios”, a Constituição evidentemente ainda “consagrou a existência de direitos fundamentais não-escritos, que podem ser deduzidos, via ato interpretativo, a partir dos direitos constantes do ‘catálogo’, bem como do regime e dos princípios fundamentais da nossa Lei Suprema.” (SARLET, 1996, p. 12). Nesse sentido, ainda sob a égide da Constituição Federal

de 1969, ao interpretar o art. 153, § 36, que trazia redação semelhante, Jacques (1983, p. 453) já ressaltava que “o Legislador-Constituinte, ao se referir aos termos ‘regime’ e ‘princípios’, quis ensejar o reconhecimento e a garantia de outros direitos que as necessidades da vida social e as circunstâncias dos tempos pudessem exigir.” Segundo a doutrina:

Os direitos implícitos ou implicitamente positivados abrangem todas as posições jurídicas fundamentais não direta e explicitamente consagradas pelo texto constitucional, mas que podem ser deduzidos de um ou mais direitos (e mesmo princípios) expressamente consagrados, em geral mediante a reconstrução (ampliação) hermenêutica do âmbito de proteção de um determinado direito, como é o caso, entre outros, do sigilo fiscal e bancário, que tem sido deduzido do direito à privacidade. (SARLET, 2015, p. 2).

Para analisar se o princípio do desenvolvimento sustentável pode ser arrolado na categoria dos direitos fundamentais – sem embargo dos diversos dispositivos constitucionais já mencionados, que buscam conjugar a ordem econômica, o bem-estar social e o equilíbrio ambiental, e também auxiliariam no exame da questão –, cabe reproduzir especificamente o texto dos arts. 3º, II e IV; 170, VI; 225, caput, da CF/1988:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (...)

II - garantir o desenvolvimento nacional; (...)

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

(...)

VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;

(...)

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. (...). (BRASIL, 1988, grifo e destaque nosso).

Ora, a partir dos dispositivos constitucionais citados, podem ser decompostas as seguintes proposições e relações lógicas:

a) “garantir o desenvolvimento nacional” e “promover do bem de todos” são objetivos fundamentais da nossa República (art. 3º, II e IV, CF/1988);

b) a ordem econômica está constituída com base nos fundamentos da nossa República (art. 1º, IV, da CF/1988) e visa garantir a existência digna (art. 1º, III, da CF/1988);

c) os objetivos e fundamentos referidos nos itens anteriores ostentam natureza jurídica de direito materialmente fundamental, a teor do disposto no art. 5º, § 2º, da CF/1988; d) o meio ambiente, reconhecido expressamente como princípio da ordem econômica, mostra-se essencial à sadia qualidade de vida, considerado como um dos mais relevantes aspectos da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/1988);

e) por fim, o desenvolvimento sustentável, em seu sentido jurídico-político, surge como resultado da interação harmônica da dimensão econômica, social e ambiental dos direitos consagrados no texto constitucional.

Esse raciocínio demonstra que o desenvolvimento sustentável, enquanto consectário lógico “do regime e dos princípios” adotados pela Constituição, notadamente do princípio da dignidade humana e de suas interfaces, assume caráter de direito fundamental, tanto para os indivíduos como para a coletividade. Mais que isso, o desenvolvimento sustentável, em muitos casos, torna-se pressuposto e condição necessária para o exercício de inúmeros outros direitos fundamentais.

Mesmo que a lógica formal não seja considerada instrumento hábil à solução de problemas jurídicos, por ser meramente explicativa de conexões entre causas e efeitos (SICHES, 1973), a interpretação sistemática e teleológica das normas constitucionais, tendo em conta sua unidade, interdependência e finalidade, não deixa espaço para conclusão diversa da que reconhece o desenvolvimento sustentável como direito fundamental. De fato, como ensina Siches (1973, p. 279), “o logos do razoável, concernente aos problemas humanos – e, portanto, aos problemas políticos e jurídicos – intenta ‘compreender e entender’ sentidos e nexos entre significações, assim como também operações de valoração, e estabelece finalidades e propósitos”. Sendo assim, consideradas as interações entre as citadas normas constitucionais, não apenas a lógica clássica, mas também a lógica do razoável, garante a presença do desenvolvimento sustentável no rol dos direitos fundamentais.

Diante desse contexto, pode-se concluir que o desenvolvimento sustentável, enquanto resultado da conjugação entre os direitos socioeconômicos e o equilíbrio ambiental, também ostenta inegável natureza de direito fundamental, ou seja, ocupa lugar entre os mais básicos direitos do ser humano, não podendo ficar à mercê de pressões reformista de momento, seja por parte de iniciativa estatal ou do próprio corpo social.