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2 SISTEMA DE GERENCIALMENTO PESQUEIRO ARTESANAL

2.4 O enfoque ecossistêmico e sua relação com a pesca

Os ecossistemas representam um complexo dinâmico de comunidades vegetais, animais e de microrganismos e seu meio não vivente, interagindo como uma unidade funcional. Esses mesmos ecossistemas nos quais se sustentam a pesca e outras atividades econômicas, estão sujeitos a uma série de alterações de relevância significativa para o seu funcionamento e resiliência que podem comprometer a produção de bens e serviços provenientes destes (GARCIA, et al., 2003; UNEP, 2014).

O quadro histórico sobre o enfoque ecossistêmico na pesca desenvolveu-se sobre os princípios fundamentais e objetivos conceituais que emergem do processo de elaboração das bases para o desenvolvimento sustentável, visando o bem-estar humano e do ecossistema (PRESCOTT-ALLEN, 1996; GARCIA et al., 2003; FAO, 2015).

De acordo com Garcia et al., (2003, p. 311, tradução nossa),

Vários instrumentos internacionais de grande relevância ao Ecossystem Approach to Fisheries – EAF (Enfoque Ecossistêmico para a Pesca), foram adotados durante as últimas três décadas: 1) A Convenção de Ramsar sobre Zonas Úmidas, 1971; a Convenção sobre Direito do Mar de 1982; a Convenção sobre Diversidade Biológica, 1992; 2) O Acordo sobre os Estoques de Peixes, 1995; o caminho para o desenvolvimento sustentável pavimentada pelo resultado da Conferência de Estocolmo sobre o Desenvolvimento Humano em 1972; 3) Conferência Mundial de 1987 sobre Ambiente e Desenvolvimento; 4) A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento de 1992; 5) O Mandado de Jacarta, 1995; 6) Conferência de Rekjavik, 2001; e, 7) A Cimeira Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável em 2002. Todos estes instrumentos fornecem interseção, por vezes contraditórias em seus princípios e objetivos conceituais.

A abordagem holística sobre a gestão da pesca surgiu em meados da década de 1970 com a introdução da Zona Econômica Exclusiva (ZEE) e da adoção da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM). Momento no qual se buscava um novo ordenamento internacional mais justo e equitativo. A CNUDM, negociada durante mais de nove anos e firmada em Montego Bay, na Jamaica, em 1982, constitui o principal arcabouço político e jurídico para regulamentar o uso dos oceanos. Conhecida como “A Constituição do Mar”, o instrumento normatiza todos os aspectos do universo marítimo, inclusive delimitação das fronteiras, regulamentos ambientais, investigação científica,

comércio e resolução dos conflitos internacionais envolvendo questões marinhas, como importante fator de sustentabilidade dos espaços oceânicos (FAO, 2006; BRASIL, 2014).

A Convenção definiu os conceitos dos espaços marítimos (Águas Interiores, Mar Territorial, Zona Contígua, Zona Econômica Exclusiva, Plataforma Continental, Alto-Mar e Fundos Marinhos) e criou três órgãos de solução de controvérsias para assegurar o cumprimento dos seus dispositivos: Autoridade Internacional para os Fundos Marinhos, sediada em Kingston, Jamaica; Tribunal Internacional sobre Direito do Mar, sediado em Hamburgo, Alemanha; Comissão dos Limites da Plataforma Continental, instalada na sede das Nações Unidas em Nova Iorque (BRASIL, 2014).

Esses avanços foram necessários para uma gestão eficaz em prol do desenvolvimento sustentável da pesca, embora insuficientes. No final dos anos 1980 já era evidente que não se deve continuar a manter uma explotação acelerada e muitas vezes descontrolada dos recursos haliêuticos. Mas sim, uma urgente e necessária nova abordagem, que levasse em conta as questões relativas à conservação dos recursos pesqueiros e o seu meio ambiente.

Em 1992, na Convenção das Organizações das Nações Unidas (ONU) sobre Diversidade Biológica (CBD) reconheceu-se que de fato, o ecossistema é uma unidade funcional em qualquer escala espacial, onde os seres humanos são partes integrantes, e exige técnicas adaptativas de manejo. Geralmente usada como abordagem ecossistêmica para a pesca ou para a proteção ambiental, por reconhecer explicitamente a complexidade dos ecossistemas e as interações existentes entre suas partes componentes.

Na sua segunda reunião realizada em Jacarta, a Conferência das Partes (COP) da CBD adotou a abordagem ecossistêmica como o principal quadro de ação no âmbito da Convenção, para o desenvolvimento e implementação de várias questões temáticas e transversais no seu programa de trabalho. Desde então se prosseguiu à busca de mecanismos que possam conciliar a exploração pesqueira com o meio ambiente marinho até que em outubro de 1995 a FAO aprovou o Código de Conduta para uma Pesca Responsável, o qual constitui um marco importante dos esforços tanto a níveis nacionais quanto internacionais em assegurar a exploração sustentável dos recursos aquáticos vivos. Neste instrumento, foram estabelecidos os princípios e normas aplicáveis à conservação,

ordenamento e desenvolvimento de toda a pesca (GARCIA et al., 2003; UNEP, 2014).

Com a aprovação do Código de Conduta, a Abordagem Ecossistêmica para a Pesca ganhou espaço na pauta dos principais debates dos organismos internacionais sendo mais tarde adotada pela Consultoria Técnica da FAO sobre Ecossistemas na Conferência realizada em Reykjavik no período de 16 a 19 de setembro de 2002 (FAO, 2006; 2015).

A Declaração de Reykjavik sobre Pesca Responsável no Ecossistema Marinho foi dirigida direta e especificamente à questão de se levar em consideração à base ecossistêmica em qualquer modelo de gestão convencional da pesca. Na quinta reunião da Conferência das Partes da CBD (COP5), o modelo foi simplesmente mencionado como abordagem ecossistêmica, definido pela FAO de seguinte modo:

Uma estratégia para a gestão integrada da terra, água e recursos vivos que promove a conservação e uso sustentável da diversidade biológica de uma forma equitativa. Baseia-se na aplicação de metodologias científicas apropriadas que se concentram em níveis de organização biológica que abrangem os processos essenciais, funções e as interações entre os organismos e seu meio ambiente (FAO, 2003, p.5).

Referindo-se ainda à Convenção de 1982, a Comissão para o Meio Ambiente e Desenvolvimento da ONU, reconheceu a necessidade de ter em conta o impacto da pesca sobre o ecossistema marinho e vice-versa, e destacou também que o objetivo de incluir essas considerações no processo de gerenciamento pesqueiro é contribuir para a segurança alimentar ao longo prazo e para o desenvolvimento humano. Essas ações visam assegurar uma conservação eficaz, o uso sustentável do ecossistema e dos seus recursos.

Na temática da pesca, o modelo pode ser visto como uma extensão de gestão convencional desta atividade (WARD et al., 2002), reconhecendo mais explicitamente a interdependência entre o bem-estar humano, a saúde do ecossistema e a necessidade de manter a sua produtividade para as gerações. O propósito de Enfoque Ecossistêmico para a Pesca (EAF) é planejar, desenvolver e gerir a pesca de uma forma que aborda a multiplicidade das necessidades e desejos da sociedade, sem pôr em causa as opções das futuras gerações de

beneficiarem de uma gama completa de produtos e serviços prestados por ecossistemas marinhos (FAO, 2006).

Para Garcia et al. (2003) toda abordagem que tem a intenção de promover a utilização de estruturas de gestão existentes, melhorar a sua aplicação e reforçar a sua relevância ecológica, contribuirá significativamente para alcançar o desenvolvimento sustentável.

Portanto, o EAF busca o equilíbrio entre diversos objetivos da sociedade, tendo em conta o conhecimento e as incertezas sobre os componentes bióticos, abióticos e humanos, dos ecossistemas e suas interações e aplicação de uma abordagem integrada para pesca dentro de limites ecologicamente relevantes. Um fato relevante é que o enfoque não contradiz nem substitui uma abordagem convencional da ordenação pesqueira, mas busca melhorar sua aplicação a fim de contribuir para o desenvolvimento sustentável. Trata-se, então, de uma extensão necessária do paradigma de gestão convencional da pesca (KIMBALL, 2001; FAO, 2010).

Por conseguinte, a relação do enfoque ecossistêmico com a pesca perpassa pela aplicação de uma abordagem para a conservação, gestão e exploração dos recursos haliêuticos (FAO, 2008). Para tanto, é necessário que haja a confiabilidade em pareceres de estudos científicos na formulação, adoção e aplicação de medidas que acercam, entre outros aspectos, as capturas ilegais, a poluição, a sobrepesca, os conflitos, com vista à proteção dos recursos e outros ecossistemas de interesse específico.

Do modo geral, considera-se que todos os esforços conjugados para a concepção de uma visão sistêmica no domínio da pesca, foram importantes na medida em que contribuíram para a sensibilização da sociedade e aos Estados, em levar em conta no seu programa de governação à sustentabilidade dos ecossistemas e a contribuição da atividade para o bem-estar social da presente e futuras gerações.

A Figura 3 ilustra a complexidade entre os componentes do ecossistema e suas interações com o setor pesqueiro.

Ecossistema

Sistema Pesqueiro Biodiversidade

Outras atividades antrópicas

Clima Me rca d o Interações bióticas, espécies-alvo, outras espécies, predadores, habitat Fatores abióticos, água, topografia, sazonalidade Dimensão humana, alcance social, institucional e governança

Figura 3 – Componentes básicos do ecossistema e suas interações por meio do EAF.

Fonte: Adaptado de Garcia et al. (2003; FAO, 2010).