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O erro no processo de aquisição de segunda língua

Aprender uma outra língua é um fenômeno tão complexo e multifacetado que hoje, pode-se dizer, há uma multiplicidade de teorias, modelos e princípios na área da aquisição de segunda língua que preten- dem descrever ou explicar um ou vários aspectos de como o aprendiz de- senvolve seu conhecimento sobre a segunda língua e como a utiliza nas interações sociais. São vários os mecanismos internos (dimensão cognitiva e afetiva) ou externos (dimensão social, cultural e política) que influenci- am o processo de aquisição de línguas. Hoje se sabe que a aquisição da segunda língua não é um fenômeno uniforme nem prognosticável, como a princípio se acreditou, nem há uma única maneira pela qual o aprendiz adquire esse conhecimento3 .

Inicialmente, as diferentes configurações adotadas por pesquisa- dores da área, para explicar a aquisição de segunda língua, refletiram (e ainda refletem) dois paradigmas. De um lado, tem-se o estudo do código linguístico para desvendar os processos cognitivos da aquisição ou os universais linguísticos; de outro, tem-se a exploração da natureza social

da linguagem para mostrar que os conhecimentos linguístico e cognitivo estão aliados a funções sociais.

No tocante ao que se sabe sobre o papel do erro na aprendizagem, pode-se dizer que o estudo da natureza da língua do aprendiz de segun- da língua nasce sob a égide do erro, isto é, o erro é mostrado como com- ponente inerente ao processo. O olhar dos pesquisadores ao se dirigir para os enunciados falados ou escritos dos aprendizes incidiu sobre o erro. Identificar, descrever e explicar os tipos de erros que os aprendizes faziam foi a tônica das pesquisas iniciais na área. Quer dizer, os estudos de aquisição de segunda língua focalizavam mais o que os aprendizes erravam do que o que eles acertavam. Conforme a teoria psicológica behaviorista norte-americana dominante dos anos cinquenta e sessenta explicava, a aprendizagem ocorria quando os aprendizes tinham a opor- tunidade de praticar a resposta correta de um dado estímulo. Os alunos aprendiam imitando modelos de formas linguísticas, recebendo reforço positivo quando acertavam e correção quando erravam.

As influências da psicologia behaviorista e do estruturalismo linguístico são notadas na primeira hipótese conjeturada análise contras- tiva (LADO, 1957) para explicar a abundância de erros cometidos por aprendizes. Conforme essa teoria, os erros ocorriam por conta das diferen- ças das estruturas linguísticas da segunda língua e da língua materna. Me- diante o estabelecimento de uma relação de causalidade, ao comparar as semelhanças e diferenças existentes entre a estrutura da segunda língua e da língua materna, a linguística contrastiva estipulou que a causa primei- ra de dificuldade e do erro na aprendizagem da segunda língua decorria do grau de divergência entre as estruturas das duas línguas.

Essa visão, como sabemos, teve consequência desastrosa na sala de aula evidenciada pelo método do audiolinguismo. Nesse método, a língua materna tornou-se a “madrasta” da aprendizagem. As estruturas linguísticas da língua materna que não convergiam com as da segunda língua interferiam e conduziam os aprendizes a cometer erros. Os “maus

hábitos” deveriam ser corrigidos pelo professor. O desenvolvimento da segunda língua consistia, então, num conjunto de “bons hábitos” a ser adquirido e demonstrado pelo aprendiz da língua. Aprender uma segun- da língua significava criar novos hábitos sem a interferência daqueles da primeira. Os traços da língua materna seriam/deveriam ser apagados à medida que os aprendizes repetissem as formas corretas da língua-alvo. O professor oferecia o modelo para o aluno mimetizar. Se a repetição da forma linguística pelo aluno não correspondesse ao modelo ditado pelo professor, seguia-se uma série de drills (repetições) até que o aluno conse- guisse repetir o modelo corretamente.

Nos anos setenta do século passado, no entanto, começa a ocorrer uma virada positiva da visão dos “erros” sob a influência de mudanças que ocorreram na linguística e na psicologia cognitiva. Block (2003), citando Michael Sharwood Smith (1994), salienta dois conceitos-chave predominantes a determinar as pesquisas na área de aquisição de segunda língua do final da década de sessenta ao final da década de setenta: o conceito de ‘interlíngua’ e o conceito de ‘construção criativa’.

A mudança da visão da análise contrastiva para a visão da análise de erros é marcada por vários conceitos centrais4 desenvolvidos pelo linguista britânico Pit Corder (1967) e, mais tarde, por Nemser (1971), Selinker (1972) e outros. Um desses conceitos que me interessa relembrar aqui é de que os erros, sistematicamente produzidos por aprendizes, não eram prova de aprendizagem incompleta, mas de que os aprendizes ao desenvolverem a língua possuem alguma forma de competência linguística que é sistemática. Em outras palavras, os aprendizes possu- em um sistema linguístico próprio, baseado em parte na língua mater- na, mas também diferente dela e da segunda língua, chamado por Corder de sistema transitório e cunhado pelo linguista norte-americano Larry Selinker (1972) de ‘interlíngua’.

Na análise de erros, os erros não são creditados à “má” interferên- cia da língua materna, pelo contrário, indicam estágios do desenvolvi-

mento do processo de aprendizagem da segunda língua, salientando o papel criativo da linguagem e o papel ativo do aprendiz. Os erros são resultados de vários processos cognitivos, entre eles, a suprageneralização (alguns elementos da interlíngua são resultantes de generalizações errô- neas de aspectos semânticos e gramaticais da segunda língua) e a trans- ferência (alguns itens ou subsistemas da interlíngua do aprendiz podem ser transferidos da língua materna).

Aprendizes lançam mão de estratégias complexas e criativas de aprendizagem. Eles constrõem uma série de interlínguas (representações mentais) e revisam essas gramáticas de maneira sistemática na medida em que avançam no continuum da interlíngua. Os aprendizes criam re- gras únicas que não aparecem na língua materna ou na segunda língua. No dizer de Corder, trata-se de uma espécie de “idioleto” na segunda língua, único ao indivíduo em contraste a “dialeto”, compartilhado por muitos. Gradualmente, os aprendizes complexificam essas regras em direção àquelas da segunda língua. Usam também estruturas da língua materna e, gradualmente, as reestruturam quando descobrem que são diferentes da segunda língua.

Na virada da análise de erros, a idéia behaviorista de que a aquisi- ção de linguagem é meramente uma questão de formação de hábitos é desbancada. O erro, então, adquire outro status: ele é parte dos sistemas de regras que aprendizes constroem e revisam continuamente, ele é um recurso salutar para a aprendizagem e demonstra que os alunos estão aprendendo. Esse argumento toma como base pesquisas com crianças aprendendo a língua materna em que se observou que erros típicos de crianças não aparecem na fala dos adultos.

Pode-se dizer que o erro concebido como “construção criativa” não carece de correção. O próprio sistema o reestrutura na medida em que a língua se desenvolve. Na sala de aula, professores poderiam ignorar o erro e refrear-se de corrigi-lo ou de fazer os alunos repetirem modelos corretos oferecidos por eles. O desenvolvimento das estruturas linguísticas

passa a ser entendido como apresentando uma ordem natural de aquisi- ção resultante de estratégias universais semelhantes àquelas observadas na aquisição de língua materna, seguindo seu próprio curso5 . A noção de “gramática interna” (inbuilt syllabus), proposta por Corder (1967), se associa à ideia de que aprendizes não aprendem aquilo que não estão prontos para aprender. Neste sentido, a noção de “construção criativa” mantém a visão de que a aquisição de L1 e a de segunda língua são seme- lhantes e desenvolvidas pelos mesmos mecanismos inconscientes de aprendizagem, não afetados por intervenção consciente e translinguística. As pesquisas desenvolvidas à luz da construção criativa e influên- cia mentalista, para examinar a ordem natural do desenvolvimento da aquisição via análise de aquisição de morfemas e estruturas linguísticas como a estrutura interrogativa e negativa, por exemplo, culminaram na teoria desenvolvida por Krashen (1981) com base em cinco hipóteses. Aqui, faço referência a apenas uma: a do insumo compreensível, por ser nuclear à construção do modelo interacionista psicolinguístico, denomi- nado por Block (2003) de insumo-interação-produção (Input-Interaction-

Output)6, no início da década de 1980, vigente até os dias de hoje. Na teoria do insumo compreensível, Krashen (1981) postulou que a segunda língua é adquirida através da compreensão de insumo linguístico7que contém vocabulário e estruturas novas, um pouco além do nível linguístico atual do aprendiz. Pesquisadores como Long (1983), Swain (1985) e Pica (1993), entre outros, empreenderam, então, uma série de pesquisas quase-experimentais para examinar a forma e a fun- ção dos enunciados dirigidos ao aprendiz na interação professor-aluno e aluno-aluno ou em atos comunicativos entre falantes nativos e aprendi- zes da segunda língua e determinar se haveria aspectos formais e interacionais necessários à aquisição. Concluíram que aprendizes, por meio de modificações interacionais (e não da modificação do insumo linguístico per se), fazem ajustes linguísticos que permitem a eles enten-

der o insumo da segunda língua e manipular e modificar a sua própria produção em direção a formas mais precisas8 .

A introdução da análise da interação e comunicação na agenda dos pesquisadores de segunda língua também respondeu ao apelo de Wagner_Gough e Hatch (1975) de que a conversação era a base para o desenvolvimento da sintaxe sob a influência da teoria sociolinguística da competência comunicativa9 proposta por Hymes (1971).

No modelo interacionista, o erro é parte do insumo que quando não compreendido ou aceito pode desencadear uma interrupção na co- municação, levando os interlocutores a negociar sentidos via sequências interativas para reparar a compreensão e retomar o fluxo da conversa. O erro não é empecilho para a aprendizagem, ele é visto como um com- ponente dos enunciados linguísticos que pode ser auto-reparado ou re- parado por outros mediante movimentos interativos em que sentido e forma se integram por meio de processos de negociação encetados por interlocutores em busca de mútua compreensão10.

Todavia, em um artigo anterior, Assis-Peterson já reconhecia que, apesar de aprendizes negociarem o sentido com seus interlocutores na interação, trabalhando dentro de uma relação social proveitosa para os aspectos linguísticos e cognitivos da aprendizagem, o modelo interacionista me parecia limitado por investigar “processos lingüísticos e cognitivos sem levar em conta que as ações dos participantes na interação são socialmente construídas e estão imersas em redes culturais de sentido” (ASSIS-PETERSON, 1998, p. 35).

Argumentei na época, embora timidamente, que o modelo psicolinguístico continuava tendo como maior ponto de referência pro- cessos cognitivos ao invés de uma noção de lingua(gem) constituída por processos históricos, sociais e culturais. De certo modo, ainda perpassa- va a idéia de que os falantes eram falantes ideais a trocar informações e não pessoas concretas, vivendo em contextos concretos de aprendiza- gem (dentro e/ou fora da sala de aula), ao modo como postulava Hymes

na sua Etnografia da Fala, ao investigar a competência comunicativa de grupos de falantes. Alinhando-me com Erickson (1991), posicionei-me que para entendermos a aquisição da segunda língua,

[...] é importante identificar quais são os propósitos sociais da interação, as relações sociais entre as pessoas envolvidas e as suas ações durante o desenrolar da interação, assim como iden- tificar os recursos linguísticos pelos quais se realizam os obje- tivos e processos da interação. Todo conhecimento existe pri- meiramente no plano social e então é adquirido no plano indi- vidual. (ERICKSON, 1991, p. 341 apud ASSIS-PETERSON, 1998, p. 36)

Fala, falantes e ouvintes são relações sociais inseparáveis. A apren- dizagem não é somente abstração, mas é intrínseca ao contexto sócio- cultural em que os aprendizes participam, pois a lingua(gem) é forma de ação ou interação, um processo pelo qual interlocutores em situação face a face criam os próprios eventos em que estão engajados. No dizer de McDermott (1976, p. 33 apud ERICKSON, 1996, p. 284) “as pessoas em si constituem o próprio ambiente para as suas ações”. Nesse sentido, a lingua(gem) deixa de ser vista apenas como um código linguístico ou um sistema formal/abstrato de relações entre várias unidades cujo signi- ficado pré-existe a qualquer contexto. A lingua(gem) é emoldurada e moldada pelo contexto, por construtos culturais, conhecimento mútuo dos membros de uma comunidade de fala, situações e práticas sociais, identidades sociais dos falantes/ouvintes.

Nas teorias de aquisição de segunda língua aqui revistas, a relação de poder a mediar qualquer interação entre pessoas encontra-se silencia- da. No paradigma que estuda o código linguístico para desvendar os processos cognitivos da aquisição, o erro é interpretado, por exemplo, ou como decorrente da interferência da língua materna, ou como compo- nente inerente do sistema da interlíngua a ser reestruturado em direção

à segunda língua. No paradigma que explora a natureza social da lin- guagem para mostrar que o conhecimento linguístico e o cognitivo estão aliados às funções sociais, o erro é visto como insumo não compreendido a ser reparado mediante negociação.

A concepção de que o erro pode arranhar a face ou a imagem pú- blica de uma pessoa na interação com o outro não é aventada11, pois nesses modelos não se concebe que a relação entre uma primeira língua e uma segunda é sempre uma relação de poder e de exposição do self ou identidade. Conforme Block (2003, p.81), na interação, “há muito mais em jogo do que simplesmente transferência de informação de uma men- te para outra”. Assim, continua ele, “se há negociação de sentido em um nível, na comunicação, há também negociação de identidade num senti- do geral e, particularmente, negociação de solidariedade, apoio e face”1 2 . Tal visão é componente central da Linguística Aplicada Crítica e das pe- dagogias críticas (CANAGARAJAH, 1999, COX; ASSIS-PETERSON, 1998, 1999, 2001, GARCEZ, 2006, KRAMSCH, 1995, MOITA LOPES, 2006, NORTON; TOOHEY, 2004, PENNYCOOK, 1994, 1998, PHILLIPSON, 1992, RAJAGOPALAN, 1998, 2003, entre outros).