A aprendizagem de uma LE, principalmente voltada para alunos oriundos de espaços populares, antes de ser delineada formalmente em um curso qualquer, necessita passar por um processo de conscientização étnico-cultural que reforce a identidade dos sujeitos envolvidos. Por acre- ditarmos em tal premissa, a maioria das respostas relativas à (a) decisão por estudar inglês, (b) adequação do material didático e (c) relação do
aprendiz com outras culturas nos surpreendeu, principalmente pela au- sência de uma visão crítica por parte dos informantes. Ou seja, no to- cante a (a), nota-se que o fator motivador é basicamente o acesso ao inglês para fins de crescimento profissional e não como forma de afirma- ção de identidade ou elemento propulsor da construção do cidadão críti- co. Com relação a (b), o material didático também funciona como ele- mento positivo, servindo de ponte para a motivação, apesar dos conteú- dos monoculturais que tematizam. Já em (c), o contato com outras cul- turas realiza muitas vezes o desejo de conhecer o outro mesmo que no espaço limitado da sala de aula, não provocando com isso a esperada estranheza ou até a confrontação saudável entre cenários pluriculturais. Os depoimentos não revelaram, assim, a perspectiva política que defende uma “pedagogia de apropriação”, como nos fala Canagarajah (1999). E esse silêncio não é por acaso, já que tanto a classe dominadora quanto a dominada, parecem orientar-se pelos mesmos parâmetros socioculturais, faltando à segunda apenas o poder para perseguir e reali- zar seus intentos. Ou seja, a condição de dominação imposta ao longo de séculos a essa parcela da população, de certa maneira, vem calando sua voz e, infelizmente, as oportunidades que são proporcionadas a essas pessoas servem, no máximo, para que almejem ser iguais ao dominador, deixando-se de lado toda uma postura crítica que venha contribuir para o seu desenvolvimento como indivíduos e como cidadãos plenos de direi- tos e cientes do seu papel transformador numa sociedade cada vez mais refratária a discursos não-hegemônicos.
Falar a língua global sim, desde que isso signifique um meio de empoderamento para a pessoa colocar-se no mundo, sendo respeitados os seus contextos culturais e discursivos, e não apenas transformando-a em mera receptora de informações, teorias, crenças e valores advindos de países hegemônicos ou reprodutora de certos discursos pré-fabrica- dos supostamente neutros e/ou isentos de conotação política.
Um outro aspecto, já brevemente mencionado, nos remete à ques- tão dos diversos mitos relacionados ao aprendizado de uma LE. O mais comum deles é o que preconiza que os alunos oriundos de espaços popu- lares, principalmente aqueles da escola pública, não são competentes para aprender línguas estrangeiras. “Não sabem português, quanto mais in- glês” é o preconceito vigente contra esses aprendizes. Assim, estigmati- za-se que o acesso ao inglês é uma prerrogativa das elites, hipótese com- provada até na música que serve de epígrafe ao nosso escrito.
Diante disso, considerando que a maioria dos alunos que perma- neceu nos programas seguiu adiante nos próximos níveis, cai por terra a expectativa de fracasso eminente que tal clientela suscitaria. É impor- tante observar também que o sistema de avaliação desses alunos vem passando por um processo de re-estruturação com o objetivo de se privi- legiar uma metodologia de aferição de aprendizagem menos formal e mais centrada no aprendiz, especialmente a partir da introdução do com- ponente de auto-avaliação, produzindo, assim, resultados mais condi- zentes com a ideologia democratizante dos projetos apresentados.
Finalmente, ao se aproximarem das ideias freireanas que conce- bem a educação como prática de liberdade e como busca pela consciên- cia crítica (FREIRE, 1970), tais iniciativas reforçam o cunho humanizador inerente a todo processo de aprendizagem, demonstrando que inglês for
all não é uma utopia. Além disso, programas dessa natureza firmam o
compromisso de fomentar entre aprendizes e professores um diálogo produtivo que privilegia o respeito às diferenças e dá visibilidade aos tra- ços de identidade como construtores de uma política de solidariedade.
Notas
1As reflexões desenvolvidas nesta seção, bem como na próxima, “O
ensino de inglês no Brasil”, serão retomadas na tese de doutorado em
gogia intercultural crítica”, na UFBA, por Sávio Siqueira, sob a orienta-
ção da professora Dra. Denise Scheyerl. 2
Aqui, o autor refere-se à região do Atlântico Norte, pertencente ao Reino Unido, outrora riquíssima em petróleo.
3
Agradecemos aos professores Robério Rubem de Matos co- coordenador do NELG-UFBA, à Dra. Florentina Souza, co- coordenadora do Projeto Conexões de Saberes-UFBA e aos superintendentes da ACBEU, José Antonio Lago França e Athiná Arcadinos Leite, por viabilizarem o acesso dos pesquisadores aos grupos de informantes e pelo acolhimento à nossa iniciativa.
Referências
ALPTEKIN C.; ALPTEKIN, M. The question of culture: EFL teaching in non-English speaking countries. ELT Journal, v. 38, n. 1, p. 14-20, jan. 1984.
BOHN, H. I. The educational role and status of English in Brazil.
World Englishes, v. 22, n. 2, p. 159-172, 2003.
BRUN, M. (Re)construção identitária no contato da aprendizagem as línguas estrangeiras. In: MOTA, K.; SCHEYERL, D. (Org.). Recortes
interculturais na sala de aula de línguas estrangeiras. Salvador: EDUFBA,
2004. p. 73-104.
BURNS, A. Interrogating new worlds of English language teaching. In: BURNS, A. Org.). Teaching English from a global perspective. Alexandria, VA: TESOL, 2005. p. 01-15.
CAMPOS, E. Souza. Educação superior no Brasil. Rio de Janeiro: Mi- nistério da Educação, 1940.
CANAGARAJAH, S. Critical ethnography of a Sri Lanka classroom: ambiguities in student opposition to reproduction through ESOL.
TESOL Quarterly, v. 27, n. 4, p. 601-626, 1993. Winter.
______. Resisting linguistic imperialism in language teaching. Oxford, UK: Oxford University, 1999.
CORTAZZI, M.; JIN, L. Cultural mirrors: materials and methods in the EFL classroom. In: HINKEL, E. (Ed.). Culture and second language
teaching and learning. Cambridge: Cambridge University, 1999. p.
196-219.
CRYSTAL, D. English: the global language. United Kingdom: The US English Foundation, 1996.
CRYSTAL, D. English as a global language. Cambridge, UK: Cambridge University, 1997.
DAMIANOVIC, M. C. Aprender inglês para não perder o bonde da história. SOLETRAS: Revista do Departamento de Letras da Faculdade
de Formação de Professores da UERJ, v. 12, p. 20-31, 2006. Disponível
em: <www.filologia.org.br/soletras>. Acesso em: 27 ago 2006. DUFF, P. A.; UCHIDA, Y. The negotiations of teachers. Sociocultural identities and practices in postsecondary EFL classrooms. TESOL
Quarterly, v. 31, n. 3, p. 451-486, 1997. Autumn.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970. GRADDOL, D. The future of English? A guide to forecasting the popularity
of the English language in the 21st century. The British Council. London:
The English Company, 1997.
KACHRU, B. B. World Englishes: Approaches, issues, and resources. In: BROWN, D. H.;. GONZO, S. T. (Org.). Readings in SLA. New
Jersey: Prentice Hall, 1995. p. 229-259.
MATOS, F. Gomes de. Foreign language teaching in Latin America. In: In: R. LADO, W. et al. (Ed.) Current Trends in Linguistics. The Hague: Mouton, 1968. p. 446-488. (Ibero-American and Caribbean Linguistics, v. 4).
McKAY, S. L. Teaching English as an international language: rethinking
goals and approaches. Hong Kong: Oxford University, 2002.
______. Teaching English as an international language: the implications for cultural materials in the classroom. TESOL Journal, p. 07-11, 2001. Winter.
LOPES, L. P. da Moita. Inglês no mundo contemporâneo: ampliando oportunidades sociais por meio da educação. In: SIMPÓSIO INGLÊS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO: AMPLIANDO OPORTUNIDA- DES SOCIAIS POR MEIO DA EDUCAÇÃO, 2005, São Paulo. [Anais...]
São Paulo: Centro Brasileiro Britânico, 2005. Patrocínio da TESOL International Foundation. Realizado em 25-26 de abril de 2005. ______. Oficina de lingüística aplicada. Campinas: Mercado das Le- tras, 1996.
OMAGGIO HADLEY, A. Teaching language in context. 2. ed. Boston: Heinle & Heinle, 1993.
PAIVA, V. L. M. O.; PAGANO, A. S. English in Brazil with an outlook on its function as a language of science. In: AMMON, Ulrich (Ed.).
The dominance of English as a language of science. Mouton de Gruyter,
2001. p. 425-445. Disponível em: <www.veramenezes.com/ outlook.htm>. Acesso em: 9 maio 2006.
PHILLIPSON, R. Linguistic imperialism. Hong Kong: Oxford University, 1992.
RAJAGOPALAN, K. The concept of .World English. and its implications for ELT. ELT Journal, v. 58, n. 2, p. 111-117, apr. 2004. ______. O ensino de línguas estrangeiras como uma questão políti- ca. In: MOTA, K.; SCHEYERL, D. (Org.). Espaços lingüísticos: resis- tências e expansões. Salvador: EDUFBA, 2006.
______ .; RAJAGOPALAN, C. The English language in Brazil: a boon or a bane? In: BRAINE, G. (Org.). Teaching English to the world: history, curriculum, and practice. Mahwah, NJ, USA: Lawrence Erlbaum Associates, 2005. p. 01-10.
REVUZ, C. A língua estrangeira entre o desejo de um outro lugar e o risco do exílio. In: SIGNORINI, Inês (Org.). Língua(gem) e identidade. Campinas: Mercado das Letras, 2001. p. 213-230.
SERRANI-INFANTE, S. Identidade e segundas línguas: as identifica- ções no discurso. In: Signorini, Inês (org.). Língua(gem) e identidade. Campinas: Mercado das Letras, 2001, p. 231-264.
QIANG, N.; WOLFF, M. China and Chinese, or Chingland and Chinglish? English Today 74, v. 19, n. 2, p. 09-11, apr. 2003.
YAJUN, J. English as a Chinese language. English Today 74, v. 19, n. 2, p. 03-08, apr. 2003.
Maria Lina Garrido