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2. CAMINHOS PERCORRIDOS

2.3. O espaço pedagógico

“Cada vez que eu penso que eu um dia poderei sair da escola pública e precisar viver da escola particular, eu penso em ‘mudança do eu’!” (Professora Gil, 18/10/99)

A Escola Estadual EP constituiu-se o espaço pedagógico no qual os registros videográficos foram coletados. Como toda prática é contextualizada, visamos propiciar um panorama geral deste contexto pedagógico, através de dados colhidos com o diretor e com a professora, registrados em depoimentos gravados e no Diário de Campo.

A escola é relativamente nova. Entrou em funcionamento em março de 1997. Sua arquitetura é diferenciada em relação ao padrão das demais construções escolares da região, sendo que a entrada principal se dá por meio de um portal. Sua construção comporta três níveis; no nível superior estão as salas de aula. Durante o ano em que lá estivemos, a escola contava com 330 alunos distribuídos em três quintas, três sextas, duas sétimas e duas oitavas séries do ensino fundamental, sendo que cinco turmas funcionavam no turno da manhã e cinco à tarde. Nossa coleta de dados foi realizada sempre nas turmas da manhã (uma sexta, duas sétimas e duas oitavas).

A região em que a escola está localizada é extremamente populosa. A comunidade formada pelos pais dos alunos tem um bom nível de escolaridade (2o. Grau) e há indicativos de que pertençam a um segmento da

classe média que poderíamos denominar de classe média descendente, pois as perspectivas do diretor e da professora apontam nessa direção. Observemos o que contam:

“Nossa comunidade não é paupérrima, mas ela não tem condições econômicas para esbanjar o que quer que seja. Então, numa sondagem rápida, o que temos? Temos filhos de professores da rede municipal e estadual, filhos de policiais militares, filhos de bancários. Em geral, o nível cultural dos pais é de 2º Grau e não poucos têm 3º Grau. Não há aqui uma clientela extremamente carente. (...) 10% pode se chamar de carentes, o resto, não. (...) E temos alunos que vieram da escola particular”. (Diretor).

“Em relação à clientela, essa escola tem uma característica diferente das outras que eu trabalhei. A maioria são alunos que vieram por causa da decadência econômica dos pais, em relação à escola particular, não podiam pagar. (...) A questão econômica é um pouquinho mais avantajada do que as outras públicas em que eu estive.” (Profa. Gil)

Alguns aspectos indicam que a escola possui uma identidade com aquela região, havendo reconhecimento positivo da comunidade frente ao trabalho que realiza. Algumas famílias, apesar de residirem próximas de outras

escolas, optam por esta; a disputa por vagas a cada ano letivo é intensa e já ocorreu pernoite de pais frente à escola para garantir vagas para os filhos; sua organização interna é bem definida (cumprimento dos horários de aula, pontualidade de professores, funcionários e alunos, utilização de carteirinhas para controlar a entrada e a saída dos alunos, limpeza, entre outros). Basta circular pelos corredores para se verificar essa condição.

Dois fatores ainda merecem ser destacados: o perfil de seus recursos humanos e as iniciativas de organização do trabalho escolar que compõem o seu projeto político-pedagógico. Em relação aos recursos humanos, a descrição do Diretor fala por si:

“a escola tem um quadro de professores em que ‘todos’ têm especialização lato-sensu, todos com graduação e pós-graduação. (...) Eu estou na Direção, eu não tenho formação específica em Administração Escolar, mas tenho especialização na minha área e estou fazendo Mestrado em Educação na área de formação de professores. As duas secretárias têm 2º grau completo, a auxiliar de Biblioteca com superior incompleto, o inspetor está no 2º ano do 2º Grau, a cozinheira cursa Magistério [risos dos interlocutores], as duas serventes – uma tem 8a. série e a outra está terminando a 8a., e o guardião possui 4a. série concluída. Quer dizer, isso também é uma coisa que favorece o andamento do trabalho interno. (...) Pela própria escolaridade, você vê que são pessoas que têm um maior grau de formação, portanto, têm, também, um alto grau de exigência e expressão. (...) Eu não trabalho com um grupo de cordeiros... Pelo grau de qualificação do grupo, ele não aceita ser conduzido pura e simplesmente...(...) A gente tem que estar negociando o tempo todo. (...) Isso favorece que a margem de erro seja menor na implementação dos projetos e dos processos. (...) A gente vai com muitas arestas aparadas porque vai com várias visões sobre um problema e que vêm de pessoas que têm opiniões respaldadas.” (Diretor).

Quanto às iniciativas pedagógicas e organizacionais, destacamos: a adoção de salas-ambiente para todas as disciplinas; o layout das salas com

as carteiras umas ao lado das outras formando dois us; a inexistência de forma ou filas; a utilização de carteirinhas; a restrição do número de alunos por turma ao limite de 35; o uso de uniforme escolar; a avaliação com ênfase em objetivos havendo a proposta de recuperação paralela dos objetivos não atingidos pelos alunos. Merecem destaque alguns registros sobre tais iniciativas:

“As salas de aula são todas salas-ambiente. Os alunos é que se locomovem de uma sala para outra. Observei que esses deslocamentos são tranqüilos, não há balbúrdia. Também, não se adotam filas (ou formas). Os alunos entram e saem das salas sem gritarias, agitação ou empurra-empurra. (...) Percebo que se sentem bem na escola.” (DC – nota da pesquisadora no dia 10/05/99).

“A partir do momento em que ele [aluno] entra na escola, ele entrega uma carteirinha que receberá de volta na saída. É uma margem de segurança nossa, já que o aluno está transitando dentro da escola com o seu material, para que ele não deixe o estabelecimento sem o conhecimento da escola. É claro que é um mecanismo de controle mas, mesmo assim, confere a ele a liberdade de se movimentar por dentro da escola, a liberdade de poder ir tomar água, de ir ao banheiro sem ter que pedir autorização. (...) eles estão exercitando autonomia.” (Diretor).

“A sala de Ciências é muito agradável. As carteiras estão dispostas em “dois us” (um semi-círculo maior ao redor de um semi-círculo menor).”(DC – nota da pesquisadora no dia 10/05/99).

“... a gente fez a proposta de 35 alunos no máximo na sala de aula” (...) Nós não admitimos desistências... não temos alunos que simplesmente ‘desaparecem’. A gente vai atrás do aluno que some para ter um posicionamento da família ”. (Diretor).

A questão da avaliação por objetivos, com recuperação paralela, enquanto elemento integrante do projeto pedagógico da escola, embora já implantada, ainda provoca polêmicas, resistências e impasses, tanto por parte do corpo docente, como pela parte dos pais e do próprio sistema educacional, em virtude da cultura sócio-escolar centrada nas notas. O Diretor, refletindo

acerca do tema, evidenciou obstáculos concretos que interferem na dinâmica escolar. Disse ele: “... o que muda e caracteriza uma escola é o seu sistema de avaliação, porque ele interfere na relação de poder entre professor e aluno. A avaliação é um tabu extremamente grande por parte dos professores. Eles cuidam da questão como se fosse um ‘bibelô’ dos mais preciosos porque é nela que está uma garantia de força. (...) A partir do momento em que a gente está se propondo a mudar algumas concepções – sair da nota e passar para o conhecimento – a idéia que a gente tem que passar para o aluno é que ‘ele precisa aprender’ e não que precisa ‘tirar nota para passar’. (...) E aí, a gente tem outro dado interessante: os alunos até que aceitam, os pais têm restrições fortíssimas, (...), a cabeça dos pais ainda está voltada para a nota. O pai só quer saber quanto ele tirou para saber se ele vai passar... (...) E tem mais um entrave grande porque a avaliação, no sistema, de rede..., ela é nota! Ela é nota!” (Diretor).

Como qualquer outra, a escola não é livre de problemas. Já passou por situações de depredação e vandalismo e luta por verbas para construir uma habitação para um vigia permanente. A equipe pedagógica não é completa. O excesso de trabalho dos professores aliado à precária autonomia da escola e dos professores diante de imposições dos órgãos superiores de gestão educacional e os entraves que se colocam para efetivar um processo de formação contínua, dentro da própria escola, sugerem empecilhos que ultrapassam a realidade desta escola, uma vez que necessitam ser superados na esfera mais ampla das políticas de organização educacional. Notemos o que ressalta o Diretor:

“O ideal seria que nós tivéssemos capacitação contínua com a discussão de nossos problemas para ver o que existe de produção científica a respeito, aliando à situação real vivida dentro de cada escola. (...) mas há dificuldades grandes. (...) o sistema de avaliação que contempla várias avaliações, porque se dá através de objetivos, trouxe uma carga de trabalho bastante alta para os professores. E devemos considerar, também, que há o sistema de recuperação

paralela, ou seja, o aluno que não atingiu tais objetivos, terá que refazer o processo com trabalhos paralelos, testes, provas. Então, a carga de trabalho que foi agregada ao professor fora da escola e do horário exclusivo de suas aulas, também aumentou muito. E essa carga horária é não-remunerada mas é implícita ao trabalho docente. (...) Nós estamos recebendo documentos da SEED15 que estão nos ‘mandando fazer’. Daí, é engraçado porque a LDB vai falar em gestão democrática..., autonomia para elaboração da proposta pedagógica da escola. Daí, como se diz: - ‘autonomia’, ‘vírgula’, ‘desde que’ ‘dentro’ das propostas das Secretarias, etc, etc... autonomia ‘desde que’ você seja aliado deles”. (Diretor).

As asserções do Diretor que se referem ao papel da escola pública em nossa sociedade refletem visões e práticas que permeiam o contexto de trabalho em que a professora Gil está inserida. Disse ele: “... o trabalho é necessário e é necessária a formação profissional. Mas, a formação crítica do cidadão também é necessária, para que ele tenha uma leitura dessa sociedade que ele está encontrando. (...) Nós queremos dar condições para que as crianças que passam por aqui tenham condições de igualdade numa luta. (...) O que acontece? Hoje, o aluno da escola particular está com uma espada afiada de dois metros, e o nosso, da pública, está com um canivetinho que nem fio tem. É desumano isso!! Assim, não se dá condições de enfrentamento. (...) A importância da escola está aí, no conhecimento. O aluno ‘tem que aprender’ e não, simplesmente, passar por ela.” (Diretor).

15 SEED= Secretaria Estadual de Educação